A história da construção da BR-317, que une o sul do estado do Amazonas a Assis Brasil (no Acre), município da fronteira Brasil-Peru-Bolívia, é antiga, e faz parte das ações de políticas públicas de desenvolvimento nacional e de integração da infraestrutura Sul-Americana. Sua parte acreana está completamente asfaltada. As obras estão atualmente entre a cidade de Boca do Acre (AM) e a divisa dos dois estados, em um trecho de 110,7 quilômetros. Apelidada de Estrada do Pacífico, a rodovia se conecta ao corredor viário peruano até os portos do referido oceano.
“Há 20 anos reivindicamos este asfalto, mas agora vejo que não estamos preparados. Chegarão pessoas para comprar nossos produtos, mas não temos uma produção organizada para atender esse mercado. A estrada é importante, sim, liga a gente com o mundo, mas por enquanto só vai gerar renda para quem tem muito gado”, explica a líder sindical Luzia Santos da Silva, presidente do Conselho Nacional de Seringueiros (CNS) de Boca do Acre.
No município amazonense, extrativistas vivem da seringa, da castanha, da madeira, do açaí, produtos hoje irrelevantes na economia do lugar que tem o maior rebanho de gado de corte do estado. São mais de 350 mil cabeças de bovinos e bubalinos. A maioria é abatida no próprio município, e escoado pela BR com destino ao Acre e outras regiões.
A região
A cidade fica na foz do rio Acre com o Purus, afluente do rio Amazonas. Concentra diversas unidades de conservação e terras indígenas onde habitam povos tradicionais e das etnias Apurinã, Jamamadi, Kaxarari e Jaminawa. Esta floresta está ameaçada por uma frente de desmatamento que acompanha o avanço das fronteiras agropecuárias vindas de Rondônia e Mato Grosso e a construção de estradas na região.
O sul do Amazonas, onde estão os municípios de Boca do Acre, Lábrea e Humaitá, fica no estratégico entroncamento viário formado pelas BRs 317, 319 (Porto Velho-Manaus), e 230 (Transamazônica). Apesar de projetadas há décadas, trechos destas rodovias ainda estão em processo de abertura, asfaltamento, e até repavimentacão, por conta das difíceis condições geoclimáticas do lugar. Nos últimos anos, o governo retomou com força esses projetos, contribuindo para a valorização das terras do entorno das estradas.
As margens da BR-317 hoje servem de pasto para criação de gado. As fazendas crescem quase sempre sobrepostas a terras onde vivem índios e pequenos agricultores. Há conflitos entre posseiros e fazendeiros decorrentes da complicada equação: assentamentos rurais + pecuária extensiva + grilagem.
Interesses e impactos futuros
O asfaltamento representa a oportunidade de exportação da carne de Boca do Acre para o mercado asiático, através dos portos peruanos do Pacífico, mas um risco para a sobrevivência dos povos que dependem da conservação da floresta do lugar, sem falar da mata em si.
Em um estudo de 2008, elaborado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, aparecem os impactos ambientais já provocados pela pavimentação da parte acreana da estrada, entre as cidades Brasiléia e Assis Brasil, concluída em 2002: aumento do desmatamento, contaminação do solo e dos recursos hídricos, mortalidade da fauna local, alterações no micro-clima da região, depósito de lixo nas proximidades dos cursos d’água, entre muitos outros.
O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) elaborou dois mapas da região, que mostram as áreas desmatadas ao redor da BR-317 até 2008 (fig.1), e a simulação da sua progressão em 2030 (fig. 2). O diagnóstico aponta que a “madeira, a pecuária e a agricultura são os principais vetores do desmatamento, mas esta dinâmica é intensificada com a chegada do asfalto”, conclui Sonaira Souza, pesquisadora do IPAM.
Povos indígenas à beira da estrada
O trecho da BR-317 que liga Boca do Acre (AM) a Rio Branco, capital do Acre, começou a ser aberto nos anos 1950 com verbas federais. Nessa época, terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas apurinãs foram cortadas transversalmente em sua abertura. Na década de 1970, os índios reivindicaram a demarcação destas áreas, mas só em 1991 as duas terras indígenas foram homologadas: “TI Apurinã Km 124 BR-317” e “TI Boca do Acre”.
Quando o asfaltamento se iniciou em Boca do Acre, no ano de 2002, os apurinãs foram os primeiros a manifestar preocupação. Nas reuniões, as lideranças à beira da BR sempre lembram o que já sofreram com a estrada. “Hoje, não se fala mais a língua nativa nestas comunidades. Com o asfalto, vai chegar mais gente de fora, e com elas, violência, prostituição, acabando de vez com a nossa cultura”, explica Francisco Apuriña, dirigente da Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi de Boca do Acre.
Irregularidades
Se os impactos à cultura indígena são graves, também o são ao meio ambiente. De 2002 pra cá, vários processos administrativos foram instaurados no Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM) para averiguar irregularidades no licenciamento da rodovia, perpetradas por órgãos do poder público. A Fundação Nacional do Índio (Funai) também questionou a obra em inúmeros ofícios, e os índios bloquearam o tráfego com manifestações diversas vezes.
Em agosto deste ano, o MPF-AM entrou com uma ação pedindo a paralisação da obra até a revisão e a complementação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA), e do Estudo Etnoecólogico (EEE), preparados pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), o empreendedor da obra. Dois meses antes, apresentou um parecer que aponta que as licenças prévia e de instalação foram emitidas, respectivamente, pelo governo federal e pelo órgão ambiental do estado do Amazonas – este último em uma indevida delegação de responsabilidade, sem cumprir as normativas ambientais e as condicionantes estabelecidas por instituições brasileiras responsáveis pelo bem-estar indígena, do meio ambiente e do patrimônio histórico.
O parecer afirma que as populações indígenas foram consultadas inadequadamente, e extrativistas e trabalhadores rurais, sequer ouvidos. Isso se refletiu nos estudos e programas insuficientes para a mitigação dos impactos. Para o MPF, a principal deficiência do texto do estudo de impacto ambiental é não identificar de forma explícita a totalidade das terras ou comunidades indígenas efetivamente inseridas nas distintas áreas de influência do empreendimento.
Orçada em R$ 72 milhões, a obra também é investigada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Em julho deste ano, o órgão pediu explicações ao DNIT, à Secretaria de Estado de Infraestrutura do Amazonas, à Construtora Colorado, e ao Consórcio Maia Mello/Laghi, sobre o suposto superfaturamento e outras irregularidades envolvendo 12 milhões de reais do orçamento.
9 milhões
Há muita discussão em torno dos cerca de 9 milhões de reais do “Programa de Apoio ao Fortalecimento das Comunidades Indígenas”, elaborado pelo DNIT. Seu conteúdo foi apresentado pela primeira vez às lideranças pelo representante da Secretaria de Estado para os Povos Indígenas do Amazonas, em reunião em Boca do Acre, novembro do ano passado. O anúncio do recurso vem gerando conflitos internos no movimento indígena, agora confuso em definir a melhor estratégia para usar este dinheiro. “Um planejamento sem a nossa participação. Queremos elaborar um programa com o que necessitamos de verdade”, explica o cacique Juca Apurinã.
Em agosto deste ano, um grupo de indígenas, extrativistas e trabalhadores rurais enviou uma carta ao MPF-AM pedindo a paralisação da obra. Deixaram impresso que o governo está violando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e a Declaração das Nações Unidas, que garantem o direito de consulta prévia e participação dos povos indígenas na formulação, aplicação e avaliação dos planos de desenvolvimento nacional.
Apesar do embargo do MP, da investigação do desvio de verba, e das reclamações dos povos que defendem a floresta de Boca do Acre, máquinas e trabalhadores continuam operando normalmente. Até agora, a única recomendação dada pelos responsáveis da obra foi não asfaltar os trechos da estrada que cortam os territórios dos índios apurinãs.
Maria Emília Coelho é jornalista em Rio Branco, no Acre (Brasil).
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