Reportagens

BR-319: rumo à realidade

Vila Realidade, às margens da BR-319, no sul do Amazonas, é um lugarejo à espera do asfaltamento da estrada que ameaça abrir caminho para derrubadas na parte mais íntegra da floresta amazônica.

Maria Emília Coelho ·
13 de dezembro de 2010 · 14 anos atrás

O mato crescido em meio ao esburacado asfalto da BR-319 parece cenário de cidade fantasma, mas é a “Realidade”. Na comunidade à beira da estrada, a 100 quilômetros do centro de Humaitá, município do sul do Amazonas, as pessoas se alimentam de esperança. A possibilidade da reabertura da única ligação terrestre entre Porto Velho e Manaus sustenta a imaginação dos moradores desta região há mais de 20 anos.

A última boa notícia para essa gente veio em 1º de dezembro, quando o presidente Lula instituiu o Macrozoneamento Econômico Ecológico da Amazônia Legal. O decreto prevê, entre outras estratégias, o reasfaltamento da polêmica estrada que corta uma importante área da floresta brasileira. Sem dúvida, o sonho da população de Humaitá – e o pesadelo de quem se preocupa com a integridade da floresta amazônica – vai se transformando em vida real.

Trecho em obras na BR-139 em Humaitá, sul do Amazonas. (Daniel Pena)
Trecho em obras na BR-139 em Humaitá, sul do Amazonas. (Daniel Pena)

A BR-319 foi construída entre 1968 e 1973, como parte da agressiva política de integração nacional do governo militar – construção de rodovias e incentivos à ocupação da Amazônia pela população das outras regiões do país. Wilson dos Santos veio do Pará para trabalhar na obra e acabou ficando em Humaitá, a 200 quilômetros de Porto Velho, e às margens do rio Madeira. “A pavimentação foi feita às pressas. No inverno, quando vinha chuva, a gente cobria a estrada com plástico para proteger o asfalto fresco”, conta o, hoje, taxista no percurso até a “Realidade”.

Para o viajante que segue a Manaus, o vilarejo é o último lugar onde é possível encontrar um prato de comida e algum comércio. Dali em diante são quase 400 quilômetros tomados de volta por uma floresta que abriga uma das mais ricas biodiversidades da Amazônia. Repleta de fauna e flora, as exceções são os poucos moradores que resistiram ao isolamento com a interdição da estrada em 1988.

Movimento e abandono

Dona Nilza Ferreira, a mulher do “Cuiabano”, referência à origem da família, foi a primeira a fincar sua casa à beira do igarapé Realidade, há 39 anos, atrás de terra: “Quando funcionava a estrada tinha muito movimento, fazendeiro rico, e serrarias grandes”, conta logo no início do papo em seu estabelecimento comercial, o ponto de encontro de quem chega ao lugar.

Seu filho, Ademir Ferreira Santana, de 35 anos, recorda que seus pais naquele tempo viviam bem da agricultura: “Farinha, abacaxi, galinha, porco. Era só colocar na beira da BR que se vendia tudinho para os caminhões “bananeiros”, que levavam banana e outros produtos até Manaus. Depois que a estrada fechou, plantamos e criamos apenas para a nossa subsistência”.

Por um lado a BR-319 dinamizou a economia do sul do Amazonas, a cinco dias de barco da capital, mas por outro foi irrelevante para o setor industrial de Manaus, que optou escoar sua produção para o resto do país por vias mais baratas: a fluvial e a aérea. A escassa utilização da rodovia gerou o pouco interesse por sua manutenção, aliado à falta de qualidade do pavimento: a estrada se deteriorou. Muita gente conta que o fechamento “atendeu aos interesses pessoais do governador da época, dono de balsas de mercadorias no rio Madeira…” Dona Nilza jura que viu tratores arrancando o asfalto da rodovia.

Com a via fechada, o movimento tomou rumo contrário: migrantes abandonaram suas terras ocupadas. Quem ficou, foi abandonado. Na Realidade, restaram três famílias. Ademir se lembra do tempo que a estrada era ruim: “Vinha gente furar o nosso dedo (teste de malária) e voltava depois de 10 dias com o resultado. A pessoa já podia ter morrido. Todo ano o governo dizia que ia reasfaltar, mas as máquinas nunca chegaram, só as promessas.”

Reabertura

Sua recuperação entrou no plano Brasil em Ação, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1996. Mas parte da proposta só saiu do papel no seu segundo mandato, dentro do Avança Brasil (2000-2003), quando trechos entre Manaus e Careiro-Castanho, e entre Porto Velho e Humaitá começaram receber manutenção. O projeto ganhou força a partir de 2005, após o Ministério de Infraestrutura e Transportes anunciar a repavimentação de toda a rodovia como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo Lula.

Hoje, dos cerca 900 quilômetros da estrada, quase 500, nas extremidades sul de Manaus e norte de Porto Velho, já foram pavimentados, ou estão em obras, feitas pelo Exército desde 2008. O debate gira em torno dos 405 quilômetros do trecho do meio, ainda sem licença ambiental, e que vai do km 250 ao km 655,7 no entroncamento com a BR-230 (Transamazônica), a 30 km ao oeste de Humaitá.

Mapa ilustrativo da BR-319, que liga Porto Velho a Manaus. A parte amarelada da estrada ainda não está pavimentada e se torna intransitável na maior parte do ano. (DNIT)
Mapa ilustrativo da BR-319, que liga Porto Velho a Manaus. A parte amarelada da estrada ainda não está pavimentada e se torna intransitável na maior parte do ano. (DNIT)

A melhoria da estrada e o anúncio da sua reabertura completa já interferem na dinâmica social e no meio ambiente do município do sul do Amazonas, que indica o que pode vir pela frente. Na Vila Realidade, não pára de chegar gente. Há três anos o lugar virou um assentamento do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Cerca de 800 pessoas vivem no lugar agora. Um dia antes da nossa visita, oito famílias chegaram de mudança.

Pura realidade

Qual será o futuro das crianças que moram na beira da BR-319 com a reabertura da estrada? (Daniel Pena)
Qual será o futuro das crianças que moram na beira da BR-319 com a reabertura da estrada? (Daniel Pena)

“Vim com 10 mil reais achando que dava, mas estou há oito meses sem poder trabalhar. O assentamento está liberado, mas precisam vir delimitar a área e dar financiamento. Fiz meu barraco e o dinheiro acabou. Agora vivo com dois piás (filhos) e a mulhé do fiado da Dona Nilza”, conta Valdomiro Ribeiro, que veio de Colniza (na frente de desmatamento do extremo norte mato-grossense) e já tem planos para sua nova propriedade: “Para ser amazonense tem que saber subir no açaizeiro. Açaí dá dinheiro e é bonito demais”.

Na sequência, a conversa na vendinha do Cuiabano volta para o mundo real. Enquanto a terra não sai, alguns optam por explorar a madeira. Ademir, que foi presidente da Associação do Produtor Rural e Extrativista da Comunidade Realidade, explica para seu Valdomiro: “Se estão tirando madeira ilegal aqui, tem que denunciar. É um problema de todos do assentamento. Se der problema, todos serão prejudicados”.

Duas serrarias já se instalaram. Uma delas foi fechada pelo Ibama, órgão federal de fiscalização e licenciamento ambiental, em 2007. Um funcionário ficou no local para usá-lo como alojamento dos trabalhadores da outra serraria, em operação há três anos. “Vendo 350 metros de madeira por mês, mas só trabalhei seis meses por falta de documentação. O problema aqui é a BR, o frete demora muito”, reclama o dono, Waldemar Strege, catarinense que morou em Mato Grosso e decidiu montar sua serraria na beira da BR-319.

A grilagem em volta da estrada também mostra sua cara e apelido. “O Galo Véio grila mesmo. Chegou aqui uma vez e falou para eu abandonar a terra porque era dele. Falei: Olhe, o rapaz do Incra que mandou fazer minha casa aqui. Não vou sair, não. Aqui ele desistiu, mas ali pra frente fala que é tudo dele”, conta seu Preto, um caboclo de 70 anos que vive a 40 quilômetros do centro de Humaitá.

Floresta conectada à frente de desmatamento

Em um contexto macro, o principal impacto da BR-319 é possibilitar a conexão do “Arco do Desmatamento” da parte sul da floresta brasileira à Amazônia Norte e Central, a porção mais preservada de toda a região. O sul do Amazonas faz divisa com os estados de Rondônia e Mato Grosso, onde a abertura de rodovias causou, e causa, danos ao meio ambiente e às populações tradicionais e indígenas.

A maioria das casas é feita de madeira na comunidade Realidade, a 100 quilômetros de Humaitá. (Daniel Pena)
A maioria das casas é feita de madeira na comunidade Realidade, a 100 quilômetros de Humaitá. (Daniel Pena)

Humaitá fica na confluência da BR-319 com a rodovia Transamazônica, a porta de entrada para o mais verde dos estados brasileiros, com 98% de sua área preservada, segundo o Governo do Estado do Amazonas. O município, que tem 40% do seu território dentro de áreas protegidas, já figura na lista dos mais desmatados da Amazônia Legal. “Estamos no olho do furacão, na tríplice fronteira. Isso influencia a cultura e a economia local, e traz degradação descontrolada da floresta”, alerta a educadora Leila Mattos, que fundou em 2003 a ONG Pacto Amazônico.

De acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), organização social brasileira que monitora o desmatamento na Amazônia, em outubro de 2010, Humaitá ocupou o sexto lugar entre os municípios que mais derrubaram a floresta na região.

As possíveis consequências da volta da estrada são discutidas desde o seu anúncio, interferindo no processo de licenciamento. Em 2009, o Ibama rejeitou a concessão, criticando o estudo de impacto ambiental apresentado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura (Dnit), empreendedor da obra. Exigiu novos estudos e o cumprimento de dez condicionantes, que estão em fase de execução.

Ano passado foi firmado um acordo entre o Dnit e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão federal responsável pelas 27 Unidades de Conservação (UC) da área de influência direta e indireta da rodovia. Estão previstos investimentos superiores a 14 milhões de reais para a consolidação¬ e o monitoramento de onze unidades de conservação que margeiam a estrada: sete foram já criadas no Amazonas, outras ganharam ampliação.

Açaí perdido

A Floresta Nacional (Flona) Balata-Tufari já recebeu entre R$400 e R$500 mil do Dnit. Criada em 2005, foi ampliada em 2008, com cerca de 275.836 hectares, totalizando 1.077.859 ha. de área nos municípios de Tapauá e Canutama. Mas uma das vias de acesso da área protegida é por Humaitá, próxima a comunidade Realidade, e a poucos quilômetros da BR-319.

“Nossa dificuldade é o transporte”, reclama Delcely Benigno, da Associação de moradores da comunidade Santo Expedito, na Balata-Tufari, onde cada família ganha em média R$ 2 mil por ano com a castanha e o açaí: “Colhemos mil latas de açaí todo ano. Queremos uma despolpadora para poder armazená-lo. O açaí tem que tirar hoje e vender amanhã. Um amigo já atolou com 300 latas nessa BR. Primeiro sol quente, e depois chuva: o açaí amoleceu e ele perdeu tudo”. O extrativista também sente falta de um posto de controle: “Gente de fora entra para pescar peixe-boi e pirarucu, e caçar anta e queixada pra vender. Não falo quem é porque temo minha vida e não ganho nada com isso. Quem fiscaliza está no computador, ganhando salário. Se investissem nos reais guardiões da floresta, imaginaria um futuro melhor”.

Combinar desenvolvimento econômico e preservação da sensível floresta da região é o maior desafio dos promotores da “estrada-parque”, como foi apelidada a BR-319 em Brasília, bem distante da “Realidade”.

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