Um acordo assinado por autarquias federais mantém pessoas e a caça de animais silvestres numa reserva biológica, no Paraná. A categoria é o tipo mais restritivo à presença humana na legislação federal. Fontes apontam riscos à biodiversidade e ao sistema nacional de unidades de conservação.
Traçados em 2012 sobre uma fazenda que pertenceu ao falido banco Bamerindus, os 34 mil hectares da Reserva Biológica (Rebio) Bom Jesus abrigam plantas e animais raros ou em risco de sumir do mapa, como bugio, palmeira-jussara, cachorro-do-mato-vinagre e até o pararu-espelho, ave tida como “possivelmente extinta”.
Armadilhas fotográficas também registraram três onças-pintadas (Panthera onca) em sua porção mais preservada, em um ano. Elas são parte dos estimados últimos 200 desses animais em toda a Mata Atlântica, da qual restam menos de ¼ da vegetação original.
Distribuída nos municípios de Antonina, Guaraqueçaba e Paranaguá, a Bom Jesus mantém igualmente estoques de Carbono, para aliviar a crise do clima, fontes de água, manguezais – fundamentais à reprodução e alimentação de inúmeras espécies, de caranguejos a guarás –, bem como florestas estendidas das planícies a até cerca de 500 m de altitude.
Ajustadas dentro da Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba, a Rebio e unidades de conservação próximas, como as Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) Papagaio-de-cara-roxa e Guaricica, são ainda testemunhos da natureza ancestral do país.
“É um bloco indispensável à conservação da vida selvagem brasileira, inclusive de espécies muito ameaçadas”, explica o biólogo Roberto Fusco-Costa, coordenador do Programa de Grandes Mamíferos da Serra do Mar, uma iniciativa dos institutos de pesquisas Cananéia e Manacá.


Conservação em alerta
Contudo, um termo assinado entre o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) acendeu um alerta vermelho e colheu duras críticas de entidades civis e pesquisadores.
O documento prevê a caça de animais silvestres para manter o modo de vida tradicional de 7 famílias da etnia indígena Mbyá Guarani em 6,7 mil ha na porção mais preservada da Bom Jesus, ou quase 20% dela. Essas pessoas habitam hoje menos de 20 ha, ou 0,06% da área protegida.
“Nessa área de uso intensivo estão hoje a aldeia, as moradias, a roça e são desempenhadas atividades cotidianas pelos indígenas”, descreve o gerente do ICMBio para a Região Sul, Walter Steenbock.
Documentos obtidos pela reportagem (linkados ao final) mostram que as caçadas não serão regradas pois, diz o ICMBio, teriam baixo impacto, ocorreriam apenas no outono-inverno e atingiriam sobretudo animais como queixada (Tayassu pecari) e cateto (Pecari tajacu).
A autarquia ambiental avalia que o diminuto e muito ameaçado pararu-espelho não interessaria à caça e que, por questões culturais e espirituais, a onça-pintada não seria caçada e cada indígena só poderia abater durante sua vida apenas uma anta (Tapirus terrestris).
“Evidentemente, não se está com isso avaliando que seja “normal” caçar em uma Reserva Biológica, mas considerando que o baixo impacto desta caça pode ser considerado aceitável em um contexto de compatibilização de direitos”, diz o órgão ambiental.
Em cartas aos Ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e Público Federal (MPF) no Paraná, entidades civis avaliam que o acordo não equaliza direitos, pois menosprezaria a conservação ambiental frente aos direitos indígenas.
“A única parte que está cedendo é o meio ambiente, ao permitir a absurda caça de uma espécie já vulnerável e cuja morte não deve ser admitida por nenhum cidadão”, dizem.
No preto-e-branco da legislação nacional, as Rebios são criadas para manter a biodiversidade sem interferências de pessoas ou modificações dos ambientes naturais. Só pesquisas e educação ambiental seriam permitidas.
Nas cartas repassadas aos órgãos federais, as ONGs lembram que os indígenas rumaram à unidade de conservação pouco antes de seu decreto e desde uma terra indígena a 500 km de lá.
Conforme a Funai, conflitos com indígenas Kaingang fizeram o grupo retornar ao local, do qual seus antepassados “saíram para fundar a aldeia Palmeirinha na Terra Indígena Mangueirinha”.
“O grupo empreendeu uma peregrinação, guiada pelos sonhos e pela cosmologia guarani, até que, no início de 2011, encontrou o local que vinha buscando para viver o nhandereko [modo de viver guarani], onde hoje é a aldeia Kuaray Haxa”, detalha a Fundação.
Desde então, os impactos ambientais teriam sido mínimos. “O número de habitantes e a vegetação natural da reserva não mudaram de forma significativa ao longo desse tempo todo”, diz Steenbock. “Além disso, a caça não é prioritária para alimentar as famílias”, afirma.

Caça escassa
Conforme Steenbock (ICMBio), o termo assinado com a Funai precisa ser validado pela Justiça Federal e permitirá monitorar as condições ambientais da reserva e da caça indígena, o que até então não ocorria.
“Há uma tendência de melhoria na gestão, pois o ICMBio não tem qualquer sede ou estrutura na Rebio, onde a comunidade já denunciava a atuação de caçadores, palmiteiros e outros criminosos”, diz o doutor em Ciências pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Caso aprovada pelo judiciário, a execução do termo será acompanhada por uma comissão dedicada, cuja composição não estaria fechada.
“Sem esse acordo provisório, a sequência de cuidados que foi definida não seria possível”, ressalta Steenbock. “Mas, caso ele não seja respeitado, não se descarta restringir ou impossibilitar qualquer caça na área protegida”, diz.
De acordo com a Assessoria de Comunicação da Funai, estudos demonstram que conhecimentos e modo de vida indígena contêm o desmatamento e contribuem para a conservação.
O MapBiomas mostra que “as terras indígenas possuem os menores índices de perda da vegetação nativa e estão entre as áreas mais protegidas”, diz. “A presença da comunidade indígena contribui com os objetivos de conservação da Reserva Biológica Bom Jesus”, conclui.
Contudo, isso é contestado ao menos desde 2001 por cientistas brasileiros, em capítulo do livro “Ornitologia e Conservação – da Ciência às Estratégias”. “Muitas espécies são intolerantes a atividades como a exploração madeireira, caça e a competição humana por recursos, enquanto a maioria das que toleram se sai muito melhor na ausência daquelas”, detalham.
Por questões como essas, outros cientistas e ongs analisam que o abate continuado de animais na Bom Jesus será um grave retrocesso para manter e recuperar a combalida vida selvagem da Mata Atlântica.
“A situação da Mata Atlântica e de suas espécies não admitem mais qualquer tipo de caça”, reforça Roberto Fusco-Costa, pós-doutor em Ecologia e Conservação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Segundo ele, ao contrário da Amazônia, a Mata Atlântica já não tem grandes áreas contínuas de vegetação para manter adequadamente populações de animais ou repovoar regiões degradadas. Espécies como onça-pintada e anta já perderam cerca de 80% da área no bioma, diz.
“Os animais caçados compõem cadeias alimentares com outras espécies, vegetais e animais, que ocorrem e circulam além das áreas protegidas”, diz. “Sua eliminação pode desequilibrar todo o ecossistema regional”, projeta o pesquisador.
Fontes de entidades ambientalistas e de áreas técnicas do ICMBio relataram a ((o))eco que a caça ilegal é a maior fonte de danos à conservação na região da Rebio Bom Jesus e avaliaram que os abates autorizados aumentarão as perdas de fauna silvestre.
Além disso, avaliam que monitorar será insuficiente se, só depois, mostrar que uma espécie foi exterminada ou afugentada da área protegida. “É um risco muito grande”, diz o biólogo Paulo Pizzi, presidente da ong Mater Natura e parte do Conselho Regional de Biologia da 7ª Região (CRBio-07).
A ameaça pode crescer pela parca proteção do bioma. A ong Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) calculou que reservas biológicas e outras unidades de proteção estrita cobrem apenas 0,92% do território total da Mata Atlântica.
“Mesmo com essa fração minúscula de área razoavelmente protegida, abocanham fatias para outras finalidades que não a da conservação”, critica Clóvis Borges, diretor-executivo da SPVS, mestre em Zoologia pela UFPR e conselheiro de ((o))eco.
Convergência setorial
Na carta aos órgãos federais, as ongs não se opõem aos direitos de populações indígenas, mas não poupam críticas a outros pontos do termo ICMBio-Funai.
As entidades apontam que ele permite o aumento do número de pessoas e vincula pesquisas e monitoramento da biodiversidade na área protegida à permissão comunitária. Para elas, isso converte parte da Rebio em Terra Indígena.
“O termo foi assinado com as 7 famílias e pessoas listadas na aldeia, não com o povo Mbyá Guarani. Mudanças demográficas também serão acompanhadas no âmbito do termo”, replica Walter Steenbock (ICMBio).
O gerente da autarquia conta que o acordo era desenhado desde 2018 junto a um processo judicial disparado em 2014 e inicialmente voltado à reintegração das terras da Rebio ocupadas pelos indígenas. “Mesmo sem discussão pública mais ampla, ele foi debatido e demandado no processo judicial”, diz.
Um decreto de 2002 propõe que populações tradicionais e indígenas permaneçam em unidades de conservação até sua eventual realocação, sob regras definidas em termos de compromisso.
Contudo, faltaria transparência e avaliação pública ao processo. “ICMBio e Funai fizeram tudo às escuras no caso da Bom Jesus”, avalia Clóvis Borges (SPVS). “Soa como uma estratégia que avança nas sombras, sendo vendida como um ‘avanço’ para a conservação”, diz.
Ao mesmo tempo, ele estima que o caso estimula a ocupação de outras unidades de proteção integral e, de bandeja, alivia pressões para a desapropriação ou indenização de fazendas eventualmente em terras de populações tradicionais e indígenas.
Os ruralistas parecem ter captado a ideia. O deputado federal Lúcio Mosquini (MDB-RO) propôs em fevereiro um projeto de lei que prioriza indígenas na ocupação de qualquer tipo de Unidades de Conservação, desde que desvinculadas de seu território tradicional.
“É incrível a convergência de propósitos entre grupos tão antagônicos. Isso demonstra que a conservação efetiva da biodiversidade não está na pauta nem da Direita nem da Esquerda”, avalia Borges, mestre em Zoologia pela UFPR.
Já Paulo Pizzi (Mater Natura) projeta que o proposto à Bom Jesus aumentará a pressão pela legalização da caça de animais silvestres no Brasil, como querem as bancadas Ruralista e da Bala. “Se pode abrir isso para outros setores pelo lobby da caça”, lembra.


Foco humano
O polêmico episódio da Rebio Bom Jesus não é único. ((o))eco mostra que ao menos desde o fim de 2021, no governo Bolsonaro, o ICMBio aceita populações tradicionais e indígenas em unidades de conservação (UCs) de proteção integral, como parques nacionais e reservas biológicas.
A Assessoria de Comunicação da Funai reforçou que o proposto à Bom Jesus atende a legislação e decretos federais, bem como a normativas, pareceres e despachos do ICMBio. A política também é baseada em análises da Advocacia Geral da União (AGU).
“A assinatura do Termo de Compromisso tem como objetivo a compatibilização de regimes jurídicos e não conta com nenhum óbice na esfera técnica ou jurídica”, afirma.
Por sua vez, entidades conservacionistas têm outra avaliação. “São justificativas muito discutíveis para algo completamente insustentável”, avalia Paulo Pizzi, presidente da ong Mater Natura.
Já Clóvis Borges, diretor-executivo da SPVS, pondera que se trata de “um movimento orquestrado e ideológico para transformar as UCs de uso indireto em áreas passíveis de uso por todo tipo de comunidades humanas”.
De carona, isso poderia enfraquecer todo o sistema nacional de unidades de conservação da natureza, o SNUC, tido ainda como principal instrumento para manter a biodiversidade brasileira, aponta Pizzi.
“O termo desvirtua a finalidade dessas áreas protetoras, atropela a legislação e a Constituição federais”, diz. “É uma aberração que duas autarquias decidam sobre temas que competem ao estado brasileiro e não a governos pontuais”, destaca o biólogo.
Enquanto isso, a acomodação provisória ou permanente de pessoas em UCs de Proteção Integral não é um consenso dentro dos próprios órgãos ambientais federais.
Há forte resistência dentro do ICMBio. A reportagem apurou também que áreas técnicas da autarquia, como o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP), foram consultadas apenas na última semana sobre o proposto à Rebio Bom Jesus.
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Caminhos do meio
Para Clóvis Borges (SPVS), localizar e comprar terras para os Mbyá Guarani seria a melhor alternativa para a Rebio Bom Jesus e para os próprios indígenas, que viveriam com menos restrições em outro território.
Solução similar serviu comunidades Avá Guarani que pleiteavam parte do Parque Nacional do Iguaçu (PR) após o alagamento de suas terras pelo lago da Usina Binacional de Itaipu. A empresa comprará 3 mil ha por R$ 240 milhões para acomodá-los.
“Há dinheiro de termos de ajustes judiciais ligados a empreendimentos no Paraná que serviria frouxamente para comprar terras adequadas e criar uma terra indígena”, afirma o mestre em Zoologia pela UFPR.
Os termos citados incluem recursos de compensações pelo derrame de petróleo nos rios Iguaçu e Barigui pela Repar (Refinaria Getúlio Vargas), em 2000, e por despejo similar pelo oleoduto Olapa, no ano seguinte. Cerca de R$ 140 milhões estariam disponíveis em apenas um dos acordos.
Entretanto, Walter Steenbock avalia que esse dinheiro deve priorizar a compra de terras para consolidar limites de unidades de conservação no Paraná. Apenas 10% da área da Rebio Bom Jesus está regularizada. Ainda há cerca de 120 imóveis a serem indenizados ou desapropriados.
“Devemos usar os recursos para reduzir impactos maiores, como de áreas com uso intensivo agropecuário, que nada têm a ver com a conservação”, ressalta o gerente da Região Sul do ICMBio.
Outra possibilidade seria converter parte da Rebio Bom Jesus em Terra Indígena, evitando conflitos entre os indígenas e a conservação estrita da reserva. Contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou em 2018 que mudar limites de UCs depende de lei aprovada no Congresso.
Mas, Steenbock afirma que a prioridade do ICMBio é manter os limites da reserva biológica, uma “área de imensa importância para a Mata Atlântica”. Recortar a área protegida seria mais danoso para a conservação do que a convivência monitorada com os indígenas.
“Não está na perspectiva do ICMBio abrir mão de 1 ha que seja da Rebio”, afirma.
Consultados por ((o))eco, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e o Ministério Público Federal (MPF) no Paraná não se manifestaram até a publicação desta reportagem. Confira aqui documentos citados na mesma e a íntegra da resposta da Funai.
*Esta reportagem teve informações corrigidas às 15h30min de 18.03.2025.
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Recomendamos a leitura de conteúdos adicionais e antes publicados, como https://oeco-org-br.webpkgcache.com/doc/-/s/oeco.org.br/reportagens/e-possivel-garantir-a-conservacao-com-pessoas-vivendo-em-parques-nacionais/