Reportagens

Conservar para lucrar: o capitalismo na pauta ambiental 

Debate em podcast aborda formas obtidas por grandes empresas, governos e atores corporativos para continuar lucrando sob a lógica da conservação do meio ambiente

Júlia Mendes · Bruno Araujo ·
11 de abril de 2025

“Temos uma estrutura de poder ligado a esse processo de financeirização da natureza muito ampla e muito forte, são diversos atores que estão envolvidos.” Foi o que disse Fabrina Furtado, professora do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em desenvolvimento, agricultura e sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em conversa com o geógrafo Bruno Araújo para o podcast Planeta A. O episódio aborda as atuais relações entre a preservação ambiental e o capitalismo. 

Em mais de 30 minutos de discussões, Bruno e Fabrina debateram sobre as diversas formas pelas quais o capitalismo, empresas e corporações em geral vêm tentando se apropriar da pauta ambiental e lucrar em cima dela.  “Se a gente olhar para o nome que foi dado ao mercado de carbono, a gente já começa a perceber o seu objetivo: ele foi determinado como um mecanismo de flexibilização, ou seja, um primeiro grande acordo onde se estabelece metas de redução de emissões e a principal resposta foi criar esses mecanismos de flexibilização. (…) Grande parte desses mecanismos foram criados para a gente não discutir isso, não discutir petróleo ou, no caso brasileiro, a gente não discutir o desmatamento que está conectado com o agronegócio, com o modelo e paradigma de desenvolvimento que a gente tem baseado na extração dos chamados recursos naturais. Nada muda”, explicou ela. 

Fabrina Furtado é professora do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DDAS/UFRRJ) e do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da mesma universidade.Tem experiência na área de Ecologia Política, Sociologia Ambiental e Planejamento Urbano e Regional, atuando principalmente nos seguintes temas: conflitos ambientais, mudança climática, instituições financeiras multilaterais, indústria extrativa e movimentos sociais.

Escute o episódio completo do podcast Planeta A no link. 

Confira a entrevista abaixo:

Bruno Araújo: Hoje estamos percebendo os eventos extremos cada vez mais frequentes no nosso dia a dia e a percepção de que a gente está em um mundo em que as mudanças climáticas são uma realidade e algo importante de se debater também já vem sendo percebida em âmbito internacional. Como a pauta ambiental começa a ganhar relevância nos espaços de poder? 

Fabrina Furtado: A gente que vem acompanhando essa questão chamada “questão ambiental”, a gente analisa a partir de uma percepção de que os problemas ambientais sempre existiram, mas que existe uma conjuntura política que faz com que determinadas questões se tornem mais relevantes do que outras. Então sim, a gente sabe que o clima está mudando, a gente vê objetivamente os efeitos na vida principalmente de comunidades indígenas, comunidades tradicionais no mundo inteiro, mas a gente entende também que existem atores políticos que se articulam na construção desses problemas para dizer como que esse problema vai ser visto e quais são as soluções que devem ser consideradas nesse processo. 

Então a gente tem um processo histórico de construção da questão ambiental, desde as primeiras conferências da ONU até os dias de hoje, onde as conferências de clima se tornaram os temas de maior atenção. Então esses processos dependem também dessas articulações.

Primeiro, de pressões de organizações e de movimentos sociais denunciando as implicações, principalmente a desigualdade ambiental que a gente vê, na qual nem todo mundo é afetado da mesma forma, onde existe uma desigualdade. Daí surgem esses debates sobre racismo ambiental, sobre mulheres afetadas pela mudança climática até isso: os agentes dominantes que buscam determinar o problema da sua própria forma. A gente vem acompanhando essa construção nesse sentido: tem uma questão objetiva desigualdade ambiental, as implicações nos territórios, mas tem também atores dominantes, uma diversidade de atores, desde instituições financeiras multilaterais como o banco mundial e os governos, como também as corporações que acabam influenciando e construindo o problema da sua própria forma para depois determinar, se a gente vê o problema dessa forma, a solução vai ser essa. Então a gente analisa não só objetivamente, mas também essa construção política em torno da problemática ambiental.

Em uma pesquisa rápida no google eu encontrei que os Estados Unidos gastaram 700 bilhões de dólares, o que na época equivaleria a 1,75 trilhões de reais, para salvar as instituições financeiras, ou seja, os bancos e as seguradoras imobiliárias, durante a recessão de 2008. Em contrapartida, na última conferência da ONU, os Estados Unidos anunciaram a doação de 17,5 milhões de dólares, o que no ano passado era em torno de 86 milhões de reais, para o fundo de perdas e danos. Esse valor pode ser considerado um troco dinheiro de bala para os Estados Unidos em comparação a esse valor estratosférico doado aos bancos. Há muita resistência por parte dos países ricos em contribuir com recursos para os bancos para a gente sair do caminho da barbárie climática. Por qual razão há mais empenho em salvar os bancos do que em contribuir para a resolução da crise climática? 

Grande parte desse debate, que ocorre nas conferências de meio ambiente, nas conferências de clima, as soluções que são colocadas, não têm a ver com o meio ambiente, não tem a ver com o clima. Tendem a ser propostas que são pensadas para salvar não necessariamente só os bancos mas para salvar o capitalismo. Então o que se pensa é isso: Está tendo pressão, está tendo denúncia, está tendo relatórios produzidos sobre os efeitos da questão ambiental, da degradação ambiental, da mudança climática… Então eles se adiantam para responder a essa crítica se apropriando da própria crítica para pensar em formas de se legitimar, em formas de encontrar novas fronteiras de acumulação. Ou seja, para além de pensar quanto foi gasto para salvar os bancos e quanto é gasto no fundo de perdas e danos, que é óbvio que tem uma desigualdade absurda e a gente sabe que a questão não é financeira, é a gente olhar também para o que está tentando ser salvo nessas conferências, nessas políticas, nesses acordos. E não é o clima, não é o combate à mudança climática, é salvar o capitalismo de uma crise que é muito mais profunda do que a climática. A gente pode chamar isso de crise civilizatória, de caos sistêmico, tem diversas formas de chamar. Então é uma forma de se salvar dessa crise, uma forma de se legitimar, porque o capitalismo não precisa só de lucro para se manter, precisa salvar a sua imagem, precisa de legitimidade. A gente vê essas discussões sobre mudança climática e a questão ambiental sendo uma forma de salvar o capitalismo de sua própria crise, criando novas fronteiras de acumulação e de garantir a legitimidade perante a crítica – inclusive neutralizando e desmobilizando a crítica – afirmando que está respondendo a um problema que é grave, que é estrutural, de forma muito periférica como a gente vê. Então muitas dessas discussões e promessas que são feitas não são cumpridas. Mas além disso vamos olhar também para que tipo de promessa, que tipo de fundo, que tipo de política se está fazendo, se está sendo discutido.

Eu queria aproveitar essa resposta para engatar numa outra pergunta que tem a ver com esses mecanismos e essas ferramentas que o capital cria para então salvar a si próprio diante dessa iminente crise. O mercado de carbono vem sendo falado há muito tempo e sua discussão  avançou nas últimas COPs. O Brasil também tem um projeto de lei regulamentando o mercado de carbono. Eu queria que você falasse um pouco mais sobre essa estratégia, como você enxerga o mercado de carbono? E se puder explicar também para quem está nos ouvindo o que é o mercado de carbono e como ele funciona.

Eu acho que a primeira coisa que é importante a gente ressaltar é que o mercado de carbono e políticas relacionadas não é algo novo, não surgiram agora esses esquemas de comercialização. Nesse caso em que a gente está falando de emissões, o mercado de carbono surgiu no Protocolo de Kyoto em 1997 . Se a gente olhar para o nome que foi dado ao mercado de carbono, a gente já começa a perceber o seu objetivo: ele foi determinado como um mecanismo de flexibilização, ou seja, um primeiro grande acordo onde se estabelece metas de redução de emissões e a principal resposta foi criar esses mecanismos de flexibilização. E flexibilizar o que? A forma que os estados, os governos e as empresas têm de cumprir com a meta. Então o mercado de carbono naquele momento, legitimou primeiro uma solução de mercado para um problema causado pelo mercado. E a outra coisa que ele legitimou e tornou dominante foi a lógica de compensação, que é: eu tenho uma meta de redução de emissões e para eu cumprir essa meta, eu não preciso reduzir as minhas emissões, eu posso comprar crédito para o mercado de carbono de um outro ator que não cumpriu com sua meta porque não emite tanto quanto eu. 

Então eu estou comprando o direito de continuar emitindo e os dois atores ganham porque um ganha dinheiro e esse que ganha dinheiro tende a ser uma ação que não exige muita emissão, uma atividade econômica que não tem extração de combustíveis fósseis que emite tanto. Então ele está lá já emitindo menos da meta e ele vende crédito ganhando dinheiro e o outro que tende a ser o setor dos combustíveis fósseis que é o que mais contribui para a mudança climática e é o que tem mais dificuldade – porque como é que você reduz as emissões de uma petroleira? Só se não extrair tanto petróleo e se não extrair tanto petróleo, não vai lucrar – Então essa empresa lucra comprando crédito, por isso é mecanismo de flexibilização. Eu flexibilizo a forma de fazer com o que eu tenho para cumprir uma meta.

Grande parte desses mecanismos foram criados para a gente não discutir isso, não discutir petróleo ou, no caso brasileiro, a gente não discutir o desmatamento que está conectado com o agronegócio, com o modelo e paradigma de desenvolvimento que a gente tem baseado na extração dos chamados recursos naturais. Nada muda. Para não dizer que nada muda, muda porque tem implicações nos territórios, conflitos que são intensificados, você tem um setor dos combustíveis fósseis que hoje diz que não desmata… Porque a gente fala em mercado de carbono e pensamos só naquele sistema clássico que é o Cap and Trade, que você tem uma meta e comercializa o crédito, mas existem outros mecanismos relacionados.

Então ali no Protocolo de Kyoto já foi criado esse mercado de carbono, foi criado um mecanismo de desenvolvimento limpo e a gente sabe que não existe desenvolvimento limpo. Mas isso inclusive foi uma proposta do governo brasileiro de pensar: já que só os países do norte tinham o mercado de carbono naquele momento, a gente também quer lucrar com isso. Então vocês não só comercializam o crédito entre vocês mas vocês podem investir em projetos que estariam evitando emissões Que projetos são esses? As usinas eólicas, plantação de eucalipto, hidrelétricas… Vários projetos que a gente vem no brasil historicamente denunciando por diversos problemas ambientais, por diversos conflitos e muitos desses ganharam um crédito de carbono com argumentação, quase uma pressão ali de “olha se a gente não construir essa hidrelétrica de Belo Monte, a gente vai extrair petróleo. Então dê um dinheiro para a gente do mercado de carbono”.

Esses dois mecanismos foram criados naquela época e a gente tem visto o fracasso deles. A União Europeia tem seu esquema, vários países tem seu próprio esquema, que têm demonstrado um absoluto fracasso no combate à mudança climática. As emissões não têm reduzido e nunca foi sobre isso. Se você olhar nas falas dos empresários que fazem parte desse processo, eles deixam bem claro que isso não é sobre corte de emissões, isso é tornar mais barata a forma que as empresas têm de atingir as suas metas.

Aqui no Rio de Janeiro, na época da Rio+20, a então Secretária de Economia Verde falou sobre criar um “pacote de bondade” para as empresas, porque se a gente botar uma meta de redução de emissões, elas vão para outro lugar e a gente não pode ter isso. Então vamos criar um pacote de bondade.

Então eu queria agora que você falasse sobre outro mecanismo, outra ferramenta que o capital criou para expandir sua gestão de fronteira de acumulação, que é o REDD. O que é o REDD? Que sigla é essa? O que ela significa?

Quando começou a discussão, lá no Protocolo de Kyoto em 97, sobre a criação de mecanismos de flexibilização do mercado de carbono como a gente conhece, naquele momento já tinha uma discussão sobre como que não eram são só as emissões dos combustíveis fósseis e outros processos que causam a mudança climática. As florestas captam o carbono, as florestas contribuem para o enfrentamento à mudança climática. Isso veio de novo do nosso governo brasileiro mas em articulação com países biodiversos que tem muita floresta, então a discussão era um pouco de como também se beneficiar desse processo, garantindo um processo uma redução do desmatamento, um enfrentamento ao desmatamento.

Só que por vários conflitos, inclusive de uma afirmação muito segura, muito cientificamente comprovada de que não era possível você medir exatamente quanto de carbono tem nas florestas ou criar comparações desse carbono com o carbono emitido pelos combustíveis fósseis, essa proposta foi paralisada, não entrou no acordo. Mas desde então vem sendo debatido como incluir as florestas nesses mecanismos de mercado. Mesmo não avançando na Convenção Quadro das Nações sobre Mudança Climática, os países começaram a fazer seus próprios projetos. 

O Banco Mundial é um ator fundamental nesse processo. Inclusive eu comecei a trabalhar com a questão climática e REDD quando eu vi documentos do Banco Mundial, lá no início dos anos 2000, sobre florestas, financiamento e mudança climática. E eu trabalhava numa rede que monitorava instituições financeiras e tudo que tinha o Banco Mundial envolvido a gente já suspeitava. Então mesmo não tendo uma regulamentação nacional ou internacional, vários atores começaram a promover esse mecanismo chamado REDD, que significa redução de emissões do desmatamento e da degradação florestal. O que isso significa na prática? Eu vou te dar um exemplo muito prático que eu acho que é mais fácil a gente compreender de casos de projetos de REDD que eu tenho acompanhado no estado do Acre que existem há mais de 10 anos. Então, de novo, não é uma discussão de agora. O que a gente vê é que estamos vivendo uma segunda onda de boom desses projetos, dessas políticas, dessa lógica, mas são mecanismos que existem há mais de 10 anos. 

Tem um caso que a gente acabou de visitar no Acre que a CPT, a comissão pastoral da terra, acompanha. Tem ribeirinhos e comunidades tradicionais vivendo nesses territórios, que um latifundiário local junto com alguns políticos da região e empresas que desenvolvem projetos de carbono chegaram nesses territórios e afirmaram: Essa terra não é de vocês, vocês são posseiros. Vocês não são proprietários dessa terra, mas eu vou deixar que vocês fiquem, mas vocês vão precisar assinar um contrato de um projeto de REDD onde vocês vão receber para manter a floresta em pé, que é o nome que se dá para esse processo todo – Óbvio que eles não falaram dessa forma. Mas esse mecanismo é uma forma de você pagar – eu vou dizer primeiro como eles afirmam depois a gente vai destrinchando – é você pagar para que as florestas não sejam desmatadas.

Então você passa um recurso para uma comunidade, para quem está vivendo num pedaço de terra, e para que essa comunidade não desmate mais aquela floresta. Aquela floresta vai ser mantida em pé, como eles falam, vai evitar emissões de carbono Assim, você estaria combatendo também a mudança climática.

O REDD em si não necessariamente vem de carbono, então eu vou dar um exemplo primeiro de REDD ligada ao mercado de carbono, depois a gente fala de outros processos. Então é isso, tem um latifundiário que está conectado com uma empresa que desenvolve projetos de carbono, ele chega numa área e diz: a gente vai te dar dinheiro para você não mexer mais na floresta, então você não mexe. A gente já calculou nessa área quanto de carbono existem nessas árvores, desse cálculo a gente gera crédito de carbono e passa um recurso e vende esse crédito de carbono para uma empresa que vai compensar suas emissões. Esse é o mecanismo de REDD.

E aí começamos a ver vários problemas: primeiro aqueles posseiros têm direito àquela terra porque estão lá há mais de 100 anos. Muitos deles foram para lá para trabalhar na seringa e com a queda da seringa quem era o proprietário, largou. Então eles estão lá há muitos anos vivendo daquela terra, vivendo da agricultura camponesa, vivendo como ribeirinhos ali naquela terra há mais de 100 anos. Então aquela terra é deles. Em um caso, por exemplo, a gente viu o projeto, ele cobre quase 30 mil hectares. Aí a CPT exigiu do Incra uma análise daquela terra e descobriu que na verdade aquele latifundiário é proprietário só de 3 mil hectares. Então aquela terra não é daquele latifundiário que está vendendo crédito de carbono. Isso é uma coisa que a gente vê nesses projetos de REDD, gera conflito fundiário e a gente vê que intensifica conflitos no campo. Vemos diversos projetos que estão localizados em área de assentamento e não estou nem falando ainda daqueles projetos que envolvem povos indígenas, tanto que a gente está vendo uma explosão de denúncias de conflitos fundiários envolvendo esses projetos, comunidade que não sabe que está dentro de projeto de REDD e está. Então diversos conflitos vêm sendo gerados, sobreposição de terras indígenas, terras de comunidades tradicionais, assentamentos dentro de projetos de REDD… Muitos dos quais sem o conhecimento dessas comunidades.

Isso é uma coisa que a gente tem visto: são projetos que estão gerando conflito nos territórios. As comunidades não sabem nem o que é carbono na maioria das vezes. Hoje em dia, depois de dez anos vivendo com o projeto, conseguem compreender e até falar: estão alugando o carbono? o que estão fazendo? Porque uma coisa que eles falam quando a gente tem uma madeireira, a madeireira entra pega a madeira e vai embora, mas o carbono ninguém vê. O que eles estão extraindo daqui? Então é muito difícil compreender o processo, inclusive para combater o processo. A gente vê um desconhecimento das comunidades sobre o projeto, sobre o que significa. Muitos já falaram: “a história que a gente escuta é muito distinta dessa história que vocês estão falando”.  Chegam promessas de benefícios, então as comunidades não sabem direito os projetos dos quais elas estão envolvidas, inclusive porque muitos já falaram que não assinaram o contrato mas que, por exemplo, participaram de uma reunião que quem estava organizando a reunião pediu para assinar uma ata e essa ata de participação da reunião virou assinatura do contrato. Outra coisa é que os benefícios não chegam, então a promessa de recursos para manter a floresta em pé, é muito difícil, não chega na maioria dos casos.

Teve uma senhora que disse “me prometeram 30 mil reais para eu não brocar”, ou seja, para ter sua plantação, para alimentar a sua família, porque não podia mexer na floresta. Então parou de plantar e nem o dinheiro recebeu, e tem outra coisa também: terror psicológico, como se fosse a nossa plantação, a nossa roça, nosso roçado que fosse responsável por causar a mudança climática.

Se a gente quer falar de redução do desmatamento no brasil, a gente tem que falar do agronegócio, da mineração, do neo-extrativismo e esses projetos de REDD envolvem comunidades, povos indígenas e comunidades tradicionais que não são responsáveis pelo desmatamento. E com isso a gente para de discutir as causas reais do desmatamento e nem falamos mais de petróleo que era o início da conversa. Não existe mais discussão sobre petróleo. Então o que a gente vê? Projetos de REDD que afirmam ser um mecanismo de remuneração daqueles que mantém suas florestas em pé, não remunera, então não gera benefícios na maioria das vezes. Pelo menos em todos os casos que a gente ouviu falar não gera benefício, não reduz o desmatamento, porque não são esses atores que são os grandes responsáveis pelo desmatamento. Geram conflitos internos, a maioria das reuniões que a gente vai tem uma pessoa que foi mandada pelo latifundiário para gravar a reunião para ameaçar, contratam alguém da comunidade para ser vigilante e denunciar “fulano acabou de construir uma casa”.  Aí vão até lá e mandam a senhora derrubar a casa que ela construiu para o filho. “Ciclano está tirando aqui um pedaço da árvore que é para construir uma canoa”, é denunciado e muitas vezes preso, que é outro processo. Intensificam e criam conflitos internos, como muitos desses projetos vendem o crédito de carbono ainda tem a ver com aquela lógica de compensação sobre a qual já falei porque as empresas que compram são empresas mineradoras, são empresas de energia, de petróleo, de aviação, que em vez de reduzir as suas emissões botam dinheiro nesses projetos de REDD, compensam e dizem que estão investindo.

Fora que muda nossa percepção da questão ambiental. Eu lembro uma vez que uma das lideranças de uma comunidade me disse: “eu nunca vi floresta que não é em pé”. Então de onde saem essas caracterizações? O território vira floresta em pé, uma ampla diversidade de modos de vida, de formas de conviver com o mundo material, vira estoque de carbono. Então para além a gente começa também a ver uma mudança na nossa percepção sobre o que é a natureza e sobre essa relação que a sociedade tem com a natureza a partir dessa ideia de métrica de carbono, de estoque de carbono, floresta em pé, muitos desses conceitos que inclusive tem a ver com o mundo financeiro, com o mundo capitalista.

A financeirização da natureza primeiro tem a ver com a transformação de tudo em ativos, tanto que se fala ativos ambientais. A lógica de serviços ambientais tem a ver também com a incorporação de justificativas ditas ambientais por parte do capital. As corporações que inserem no seu discurso, nas suas práticas justificativas ditas ambientais: “estamos contribuindo para a luta contra a mudança climática”, ganhando legitimidade, mas o processo de financeirização da natureza também tem a ver com uma crescente influência, de atores, de linguagem, de lógicas do capitalismo financeirizado no nosso dia a dia, na nossa relação com a natureza.

Para você que está nos ouvindo e nos vendo agora também, o mercado de carbono se baseia em algo que é muito concreto e físico que é a fotossíntese, a forma como a planta respira. Ou seja, ela puxa o CO2 e emite o oxigênio. Então é justamente nesse processo de “sequestro de carbono” ou respiração da planta que o capital monetiza, financeriza justamente algo que é natural, que a planta faz por fazer porque é o jeito dela sobreviver. E algo que eu fico muito espantado também com o mercado de carbono é como eles contabilizam as emissões evitadas. Por exemplo, o itaú tem bikes, as pessoas circulam com elas e eles utilizam essa quilometragem que a pessoa circulou de bike para dizer que foi evitado o uso de transporte automóvel ou transporte público e essa quantidade de quilometragem se transforma em quantidade de emissões evitadas e isso entra no saldo final da contabilização do mercado de carbono. Ou seja, algo que nem foi emitido entrou na conta para ser compensado. E uma última coisa que eu acho que é um comentário interessante também. Tem uma prefeitura aqui do estado do Rio que tem uma Secretaria do Clima e essa Secretaria do Clima teve uma iniciativa de pagamento por redução de emissões de gás de efeito estufa para pessoas em situação de vulnerabilidade, ou seja, se a pessoa economizou na luz ou na água, ela recebe a moeda social do município. Eu tive a oportunidade de conversar com o secretário e falei assim “olha, eu acho que esse projeto está indo nas pessoas erradas, eu já tenho críticas ao mercado de carbono, mas eu acho que ele está indo nas pessoas erradas justamente porque são essas pessoas que menos emitem”. Ou seja, são as pessoas que menos têm que reduzir suas emissões. Não são elas que contribuem para a crise climática, mas esse projeto existe, está lá rodando e essa Secretaria e essa Prefeitura são referência no debate climático no país. Eu acho que a gente ainda tem muito que avançar nesse sentido. Bom, passando a próxima pergunta: de que maneira se organiza a financeirização da natureza do ponto de vista geopolítico? Há uma divisão internacional de responsabilidade dentro dessa perspectiva para os países do sul global ficarem com as florestas, ficarem com as matérias-primas, enquanto os países do norte global continuam permitindo seus cidadãos andarem de svu elétrico. Me parece que há um neocolonialismo dentro dessa perspectiva e eu queria que você abordasse isso 

Fundamental essa pergunta. Inclusive, a gente pode ver de uma forma mais formal, que é um conceito que existe, inclusive nas Nações Unidas, que é de responsabilidade comum, porém diferenciada. Ou seja, houve lá atrás um reconhecimento de que os países do Norte industrializado são mais responsáveis pela mudança do clima do que os países do Sul e que, portanto, deveriam inclusive pagar pelas políticas. Por isso, toda a discussão sobre financiamento está sempre nas conferências e é sempre um conflito porque não se quer assumir esse conceito, esse posicionamento, que os países do norte são mais responsáveis pela mudança climática.

Até o que a gente está vendo hoje em termos dessas ditas soluções, ou que muitos movimentos e organizações chamam de falsas soluções, que a gente pode falar do mercado de carbono, quais são as empresas que estão mais comprando os créditos de carbono? Empresas do norte, para que essas empresas continuem emitindo. Quando a gente olha para os projetos de REDD e para as empresas que desenvolvem esses projetos, grande parte dessas empresas estão nos países do norte. A gente tem um caso recente de um estadunidense, o Michael Green, que tem mais de 20 projetos de REDD no Brasil, inclusive muitos projetos envolvendo povos indígenas e envolvido em conflitos em grande parte desses projetos, envolvido em grilagem de terra, criando associação onde a sua esposa é presidente da associação, ocupando terras ou comprando terras que são terras públicas, terras de assentamento…

Tem por exemplo o projeto Portel lá no Pará que foi bastante denunciado, inclusive teve que ser paralisado, e o governo do Pará agora está entrando com um processo para que os créditos já vendidos sejam devolvidos. Então a gente vê uma relação com a estrangeirização da terra nesses projetos de REDD, porque muitas dessas empresas envolvidas são empresas estrangeiras internacionais e muitos atores envolvidos nesses projetos são estrangeiros. 

A outra coisa que a gente vê também nos projetos da chamada transição energética, das grandes usinas eólicas que estão gerando conflito com comunidade de pesca, que estão causando crimes ambientais, que estão gerando inclusive exploração sexual… A gente pode falar de diversas implicações que esses projetos têm muito parecido com qualquer outro projeto de combustível, de petróleo, de mineração, esses projetos da chamada transição energética também tem. Carros elétricos da União Europeia vão funcionar com bateria que vem de onde? Da mineração de lítio. Que está onde? nos países do sul global. E aí a China também tem um papel de liderança nessa noção de transição energética, mas os Estados Unidos e a União Europeia com seus novos green deals da vida e seus compromissos de transição energética e de combate à mudança climática vão ser cumpridos como? nas terras dos países do sul. 

Isso continua e intensifica essa inserção subordinada e dependente de países como o Brasil ao capitalismo global e os custos desses projetos em nome do clima, em nome de combater as mudanças climáticas, estão nos nossos territórios e nas nossas terras. Inclusive também em termos financeiros com apoio do nosso estado, do governo, apoio ideológico e muitas vezes financeiro.

Importa as empresas poluentes para os países do sul aqui no Rio de Janeiro. A gente tem o exemplo da TKCSA Ternium que não se instalou na Alemanha, mas vem se instalar aqui. Era alemã e veio se instalar no Rio de Janeiro. Então tem essa exportação da poluição da degradação ambiental e agora os custos dessa chamada transição energética estão aqui nos nossos territórios também.

Em que medida a financeirização da natureza contribui ou atrapalha para a gente caminhar para a solução da crise climática? 

Atrapalha! Com certeza atrapalha. E aí atrapalha por quê? Não só atrapalha por todas essas implicações que a gente está falando aqui de não combater de fato, não reduzir as emissões, não reduzir o desmatamento, por gerar todos esses conflitos e outros problemas ambientais, porque a gente às vezes está muito focado na questão climática, por questões óbvias, porque estão intensos os problemas relacionados à mudança climática, mas esse foco reducionista que é: a gente na verdade está vivendo muito mais do que uma crise climática. Podemos dizer que estamos vivendo uma crise civilizatória, que é uma crise de humanidade, tanto que quando a gente está com lideranças e comunidades eles falam: “a gente está tendo combate de dois projetos, um projeto de morte que é a mineração, o agronegócio, o petróleo, mas também é REDD”. No encontro que eu fui agora afirmaram que REDD é um projeto de morte, enquanto essas comunidades, esses povos, os movimentos sociais, em resistência estão promovendo um projeto de vida. 

Então atrapalha [a financeirização] por todos esses conflitos, mas atrapalha também porque passam a sensação de algo está sendo feito.

A gente tem uma estrutura de poder ligado a esse processo de financeirização da natureza muito ampla e muito forte. São diversos atores que estão envolvidos: instituições financeiras multilaterais, as conferências, certificadoras de carbono, as corporações e a gente também tem outro ator que é fundamental nesse processo, que são as grandes ONGs conservacionistas. Se você olhar, elas estão em todos esses projetos, elas entram nas comunidades, elas às vezes financiam esses projetos. Tanto que a gente chama hoje em dia de uma “indústria da conservação”, que se coloca e que constrói argumentos muito impactantes, às vezes até catastróficas: o mundo vai acabar pela mudança climática e se ele não acabar a gente diz que o problema maior do mundo é a mudança climática e dentro da mudança climática é o carbono. E a gente elabora cálculos magníficos para dizer no fim “olha o mundo vai acabar, é o carbono, é a crise climática. Então a única forma de enfrentar isso são os mecanismos de carbono, é remunerando”. 

Eles tem argumentos muito fortes, “remunerar aqueles que mantêm as suas florestas em pé”. A gente está falando de reconhecer, em muitos casos, o papel histórico fundamental que povos indígenas e comunidades tradicionais têm tido na preservação do meio ambiente. Então reconhecem a contribuição desses povos para o meio ambiente, inclusive usando a linguagem de guardiões da floresta, mas reconhecem para incorporar na lógica mercantil.

Então atrapalha por todos os efeitos, por não combater, por não ser uma situação estruturante que lida com as causas, mas atrapalha também porque faz com que a gente não olhe mais para as causas estruturantes e a gente incorpore a lógica, a linguagem e a perspectiva de que não tem jeito, não tem outra solução e a gente sabe que tem, mas a gente não olha para essas soluções que são inclusive deslegitimadas e desqualificadas. E a gente afirma que essa é a única solução. Impõe essa ideia de que a única forma de combater a mudança climática é através desses mecanismos, então atrapalha de diversas formas.

  • Júlia Mendes

    Estudante de jornalismo da UFRJ, apaixonada pela área ambiental e tudo o que a envolve

  • Bruno Araujo

    Geógrafo, especialista em Clima e Políticas Públicas, mestrando em Planejamento Urbano com foco em clima, assessor parlamentar para justiça climática (ALERJ), comunicador no @BrunoPeloClima e apresentador do Podcast Planeta A.

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