Reportagens

Consumo europeu de carne amplia desmate do Pantanal

A JBS compra gado da maioria das fazendas autorizadas a comercializar com o continente, indica estudo internacional

Aldem Bourscheit ·
13 de novembro de 2023

Maior planície alagável do planeta e um grande abrigo de emblemática vida selvagem, como a onça-pintada, o tuiuiú e a sucuri, o Pantanal encolhe à medida que mais e mais vegetação natural dá lugar a pastagens exóticas para a pecuária, atividade em expansão no Brasil.

Às margens do Rio Paraguai, Porto Murtinho é um dos líderes nacionais em criação de gado. Apenas uma fazenda no município sul-mato-grossense transformou quase 830 ha de flora nativa em campos para alimentar a boiada, de 2010 a 2021. A área soma 11% do imóvel, de 7,4 mil ha.

Mas essa expansão de pastagens comerciais não é isolada, ocorre no bioma todo e até nas cerca de 400 propriedades no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul que fornecem carne bovina para países europeus. Todos os imóveis estão no Pantanal ou parcialmente no Cerrado.

“Crise climática, desmate, drenos para lavouras e barragens de hidrelétricas reduzem as cheias, prejudicam a pecuária tradicional e beneficiam o agronegócio em áreas antes inviáveis do Pantanal”, resume Solange Ikeda, professora e pesquisadora na Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT). 

Na década passada, 46,2 mil ha de pastos naturais, alagados e savanas foram trocados por campos exóticos naquelas fazendas exportadoras. A área é similar a um terço do território de São Paulo (SP). Há mais de 3,8 milhões de bois no Pantanal, onde a cobertura de pastagens saltou 127,5% desde 1990.

As conclusões integram uma análise inédita da Fundação para a Justiça Ambiental (EJF, sigla em Inglês). Desde Londres (Inglaterra), há mais de duas décadas a entidade promove melhorias em políticas públicas para defender o meio ambiente e os direitos humanos. 

“A grande e crescente demanda mundial por carne bovina, e soja, é o principal motivo da expansão da agricultura no Pantanal e de todas as violações ambientais e de direitos humanos que isso causa”, afirma Steve Trent, presidente e um dos fundadores da EJF.

A fazenda em Porto Murtinho (MS) que desmatou o Pantanal para criar mais gado. Foto: EJF / Divulgação

Apoiada em informações do governo brasileiro e de bases como do MapBiomas, a EJF estimou que, no período analisado, uma parcela de vegetação nativa análoga a 30 campos de futebol foi eliminada diariamente nas fazendas pantaneiras cuja carne chega aos mercados europeus. 

“A expansão da fronteira produtiva que ocorreu, por exemplo, na Amazônia, agora se dirige ao Pantanal, como resultado de acordos como a Moratória da Soja e de legislações como a da cadeia de suprimentos livres de desmatamento, da União Europeia”, destaca Trent (EJF).

A moratória reduziu as vendas de soja cultivada em terras desmatadas na Amazônia, desde 2008. Enquanto isso, dados do MapBiomas apontam que a área com o grão no Pantanal cresceu 81%, entre 2010 e 2021. Há pelo menos 600 ha com soja no bioma no Mato Grosso do Sul, revelou ((o))eco.

O avanço do agronegócio no Pantanal torna o estudo da EJF igualmente um alerta para que a União Europeia inclua rapidamente outras regiões naturais no acordo comercial em tratativas com o Brasil e outros países do Mercosul. O aperto de mãos pode ser anunciado em dezembro.

“O regulamento do acordo exige que a Comissão Europeia avalie e, se for o caso, apresente entre 1 e 2 anos uma proposta para estender seu escopo para outros ecossistemas naturais, inclusive com grandes estoques de Carbono e de biodiversidade”, traz a publicação.

O Pantanal sul-americano protege ambientes e paisagens únicas no mundo. Foto: EJF / Divulgação

“É preciso atentar às mudanças na produção no Pantanal diante do que ocorreu na Amazônia e no Cerrado, onde as pastagens abriram alas à soja e outras monoculturas”, agrega Solange Ikeda, professora na UNEMAT em Cáceres, município com a maior boiada no Mato Grosso.

A proteção urgente de formações não florestais também foi lembrada por mais de 40 cientistas em carta na revista Nature. Para eles, sua destruição se deve à conjunção de alta conversão de vegetação nativa e negligência quanto a demais regiões ricas em biodiversidade e serviços ambientais. 

Publicado na primeira semana de novembro, o manifesto lista entre outros ecossistemas vulneráveis a Caatinga, o Pampa e o Pantanal, no Brasil, o Chaco, distribuído especialmente na Bolívia, Argentina e Paraguai, savanas africanas e grandes planícies americanas.

“Os mesmos esforços para reverter o aumento do desmatamento na Amazônia devem ser estendidos para combater a perda de vegetação nativa em outros biomas brasileiros”, pedem os autores, em nota do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

Convergência econômica

A JBS é a principal abatedora de bois criados no Pantanal e cuja carne chega à Europa. Criada nos anos 1950, em Goiás, ela atua hoje em mais de 20 países com produção e processamento de carnes, couros, biodiesel, embutidos, higiene e limpeza, embalagens e transportes.

As unidades da empresa que mais recebem gado estão em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e em Diamantino e Araputanga, no Mato Grosso. Nos dois estados, as compras diretas da JBS envolvem 36 fazendas que atendem requisitos para exportação. Elas adquirem carne de outras centenas de pecuaristas.

Entre os maiores importadores da carne pantaneira estão a Itália, Holanda, Espanha, Alemanha, Portugal, Grécia, Bélgica, Suécia, França e Dinamarca. Alguns desses países revendem o comprado para outras nações, dentro e fora da Europa. 

Procurada por ((o))eco, a Assessoria de Imprensa da JBS não retornou aos nossos pedidos de entrevista até a publicação desta reportagem. 

O Brasil é o maior exportador global de carne bovina, desde 2003. O país deve encerrar este ano com 2,3 milhões de toneladas despachadas a mercados internacionais, incluindo carcaças. A quantidade é similar a de 2022. De carnes em geral, as vendas podem chegar este ano a 9 milhões de toneladas.

Boiada sendo conduzida no Mato Grosso. Foto: Giovanna Colombi / Creative Commons

Equilíbrio delicado

O Pantanal sul-americano é compartilhado por Bolívia, Paraguai e Brasil. Aqui, 80% de sua vegetação natural esta preservada, sobretudo graças a economias baseadas numa pecuária extensiva histórica e conectada aos ciclos de cheias e vazantes do bioma. Mas trata-se de um equilíbrio delicado.

A lei pede que fazendas pantaneiras mantenham apenas 20% de vegetação nativa, parcela onde o uso econômico deve ser regrado. Sem norma federal, o bioma depende de leis estaduais que associem conservação e uso sustentável. Na prática, só crescem os prejuízos ao clima e à biodiversidade. 

O desmate registrado nas centenas de propriedades avaliadas pela EJF jogou na atmosfera 4,6 milhões de toneladas de CO2. A destruição de vegetação natural é a maior fonte nacional desse gás, que amplia o efeito estufa e aumenta a temperatura média global.

Florestas, pastos naturais e savanas somam 85% das perdas de flora nativa no período relatado pela ong inglesa. Além disso, as fazendas analisadas estão em regiões onde vivem quase 300 espécies de mamíferos, anfíbios e répteis, incluindo espécies em risco de extinção.

Associando impactos negativos, os incêndios de 2020 queimaram um terço do Pantanal, ou 38 mil Km2 de florestas e campos naturais. A área torrada foi similar a do estado do Rio de Janeiro. A tragédia emitiu quase 116 milhões de toneladas de CO2 e matou 17 milhões de animais. 

“O Pantanal está queimando novamente. Cerca de 25% do Parque Estadual Encontro das Águas está em chamas e a situação parece que vai piorar. Após repetidos incêndios, está claro que a inação não é mais uma opção para os governos”, alerta Steve Trend (EJF).

Nas duas primeiras semanas deste novembro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) já contou 1.224 focos de incêndios no bioma, cinco vezes mais que os 201 registrados no mesmo período do ano passado. Até áreas protegidas e grandes refúgios de onças são calcinados pelas chamas.

Globalmente, as planícies alagáveis desaparecem três vezes mais rápido que as florestas, diz a ong. A situação é ainda mais dramática porque apenas 5% do Pantanal brasileiro está em reservas ecológicas públicas e privadas, ou 7,4 mil km2 de seus 140 mil km2.

Em 2023, o fogo devora novamente o Pantanal, bioma que pede mais atenção da sociedade brasileira e global. Foto: Gustavo Figueiroa / SOS Pantanal
  • Aldem Bourscheit

    Jornalista brasilo-luxemburguês cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Sel...

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