Cali (Colômbia) – Presidentes e ministros nacionais que chegam esta semana na COP16, a 16ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas (CDB), terão pela frente a duríssima tarefa de destravar o dinheiro para tirar a conservação mundial da pindaíba.
O tema nada avançou entre os quase 200 países reunidos desde segunda (21). Até agora, foram mobilizados apenas US$ 200 milhões dos US$ 200 bilhões anuais até 2030, acordados há dois anos na COP15, em Montreal (Canadá).
Seriam R$ 9 trilhões somados até o fim da década, três vezes o PIB brasileiro, de governos, doações e setor privado. Isso incluiria US$ 20 bilhões anuais a países em desenvolvimento até 2025 – faltam dois meses – e US$ 30 bilhões por ano até 2030.
“Nenhum dos compromissos para conservar a biodiversidade global sairá do papel sem financiamento”, destacou Ane Alencar, diretora de Ciência da ong Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e doutora em Recursos Florestais e Conservação pela Universidade da Flórida.
A falta do dinheiro emperra uma das principais metas globais, a proteção de ao menos 30% das terras e regiões de águas doces, mares e oceanos – incluindo o máximo de diferentes espécies e ecossistemas – e recuperar 30% de ambientes degradados, tudo até o fim da década.
Dinheiro não deveria ser um problema para países que estão arcando com muito dinheiro e vidas humanas pelos prejuízos da perda de biodiversidade e da crise do clima. “As lacunas de financiamento em conservação aumentam a exposição a esses impactos”, disse Martin Stuchtey, fundador do Landbanking Group, plataforma que recompensa a restauração ambiental.
Sem dúvida, mas muitos recursos planetários seguem fluindo, firmes e fortes, para bem longe da urgente proteção de todas as formas de vida. Isso compromete fortemente a meta da CDB para cortar US$ 500 bilhões anuais em investimentos prejudiciais à natureza, ou cerca de R$ 2,8 trilhões.
Afinal, impressionantes US$ 7 trilhões anuais – quase R$ 40 trilhões – em subsídios privados e de governos, por volta de 7% do PIB global, afetam a conservação, mostrou um relatório das Nações Unidas. Aportes em soluções baseadas na natureza são 30 vezes menores, de US$ 200 bilhões ao ano.
((o))eco mostrou que os maiores bancos mundiais injetaram US$ 395 bilhões em setores ligados ao desmate e violação de direitos humanos, de janeiro de 2016 a junho deste ano. O Brasil responde por 72% dos créditos para produzir e processar commodities ligadas à destruição dos biomas.
Além disso, os gastos mundiais militares somaram US$ 2,44 trilhões só no ano passado, ou cerca de R$ 14 trilhões. Foi um aumento de 6,8% sobre os custos de 2022 e o mais agudo desde 2009, mostra o Sipri, sigla em Inglês do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz, de Estocolmo (Suécia).
Um dos grandes nós de financiamento são recursos prometidos na COP15 passando por uma conta atrelada ao Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, sigla em Inglês), uma organização fora da Convenção da Biodiversidade onde doadores ricos controlam projetos para liberar recursos, como para conservação e clima.
Entidades e povos mundiais criticam as supostas lentidão e burocracia do fundo. “Os recursos não chegam onde estamos”, resume Gilmer Castro, diretor de Programas na associação indígena Bari Wesna, em Coronel Portillo, no centro-leste do Peru.
Uma proposta para azeitar o acesso ao dinheiro a esses povos e países mais ricos em biodiversidade sofre alta resistência nas negociações de Cali, de países como Estados Unidos, Canadá e do Reino Unido.
Para a advogada e cientista política Denisse Linares Suárez, da ong Direito, Ambiente e Recursos Naturais (DAR), atuando em vários pontos do mesmo vizinho Peru, o que pesa mesmo é manter o fluxo de recursos naturais a economias globalizadas.
“Reforçar a conservação nos países e dar maior autonomia aos povos indígenas da América Latina pode melhor controlar ou reduzir o acesso a matérias-primas florestais, minerais e biológicas”, avaliou.
Enquanto o dinheiro não flui mais e mais rápido, as metas da Convenção da Diversidade Biológica estão indo para o beleléu, junto com os ambientes naturais.
Quase ¼ da Amazônia sul-americana, ou 193 milhões de ha, uma área equivalente a do México ou aos limites somados dos estados do Amazonas e do Mato Grosso do Sul, já não têm conectividade ecológica, mas sim nacos de vegetação separados uns dos outros.
O estudo da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG) e Aliança NorAmazônica (ANA) também indica que outros 108 milhões de ha correm o mesmo risco. Isso aproxima a floresta do colapso ecológico e emperra movimentos de animais para comer, reproduzir e migrar. A destruição não é menos intensa nos demais biomas.
“É urgente mudarmos a lógica de exploração econômica dos recursos e passarmos de um modelo que degrada para um que cria valor econômico a partir da regeneração da natureza”, disse Luísa Santiago, diretora na América Latina da Fundação Ellen MacArthur, que incentiva economias circulares.
A grana também pesa nos bloqueios para reforçar a repartição de benefícios pelo uso da biodiversidade, ligada ou não a conhecimentos de povos indígenas e comunidades tradicionais. A digitalização de recursos genéticos ameaça não recompensar adequadamente os países e pode abrir alas à biopirataria.
Uma das pedras-no-caminho é a Suíça, onde há 250 farmacêuticas. O assunto está na mira do setor e da biotecnologia, que desejam pagar o mínimo possível a países megadiversos. Já companhias como Microsoft e Amazon podem lucrar muito mantendo dados genéticos em “nuvens”, para criar inúmeros produtos.
Cada nova droga derivada de florestas tropicais vale US$ 194 milhões, ou R$ 1,1 bilhão, para uma farmacêutica, e US$ 927 milhões, similares a R$ 5,3 bilhões, para a sociedade global, estimou a Zero Carbon Analytics, grupo de análises sobre crise do clima e transição energética.
Enquanto o dinheiro segue escasso nas vias abertas pela COP15, os governos nacionais aplicam menos de 2% dos orçamentos anuais em conservação, informou Kumi Kitamori, diretora-adjunta de Meio Ambiente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). “Eles deveriam liderar pelo exemplo”, disse. A entidade reúne quase 40 países.
“Uma alternativa é mobilizar mais capital privado, mas isso depende de políticas públicas confiáveis para reduzir riscos de investimentos”, destacou. “É possível pagar por serviços ambientais, cortar taxas e oferecer compensações. Os governos podem fazer muito nesse sentido”, avaliou.
A OCDE e o Fórum Internacional sobre Apoio Oficial Total para o Desenvolvimento Sustentável (TOSSD, sigla em Inglês), levantaram que, em 2022, doações globais para financiar a conservação somavam apenas US$ 25,8 bilhões, hoje cerca de R$ 147 bilhões. “É um avanço, mas ainda longe da meta estipulada em Montreal [COP15]”, constatou Kitamori.
Há movimentos de outras fontes e setores. O financiamento global para proteger e restaurar ambientes naturais cresce e somou US$ 15,4 bilhões em 2022, graças sobretudo a empréstimos de bancos multilaterais, indicou um balanço divulgado na COP16. O valor é atualmente similar a R$ 88 bilhões.
Contudo, nem tudo pode ter efeitos reais em conservação, alertou Brian O’Donnell, diretor no grupo Campaign for Nature. Há diferenças entre financiar projetos “específicos para a biodiversidade” e iniciativas “relacionadas à biodiversidade”, com benefícios indiretos.
“Embora tenha aumentado o financiamento geral da biodiversidade, o valor com o objetivo principal de combater a perda de diversidade biológica diminuiu, caindo de US$ 4,6 bilhões em 2015 para US$ 3,8 bilhões em 2022”, disse ao Climate Home News.
Menosprezados no recebimento de dinheiro para manter terras e culturas, quilombolas e indígenas recebem outros tipos de apoios e até constroem meios próprios de financiamento.
No interior do Piauí, a vegetação é recuperada no Quilombo Lagoas com apoio técnico e financeiro do GLF, sigla em Inglês do Fórum Global de Paisagens, mantido sobretudo com doações de países europeus. A iniciativa dissemina mais reflorestamento pela Associação de Produtores Agroecológicos do Semiárido Piauiense (Apaspi). Lagoas é o maior quilombo da Caatinga, com cerca de 62 mil ha.
“O bioma é único no mundo. Agrega uma grande diversidade de plantas e animais, além de preservar em territórios como os quilombos a cultura de nossos ancestrais”, diz a administradora Maria Geanne Magalhães, filha de agricultores agroecológicos, técnica em agropecuária e apicultura.
Mais de um quarto do planeta estaria em terras indígenas, ou cerca de 38 milhões de km2 em 87 países, aponta a base Protected Planet, que agrega dados e informações de governos, ongs, setor privado e academia. Financiar a conservação nessa área toda é um desafio colossal.
Tentando cobrir essa lacuna no Brasil, o Fundo Jaguatá permitirá doações diretas aos territórios, sem pagar pedágio a bancos e outros intermediários. Ele é conectado à Aliança Global de Comunidades Territoriais (AGCT), à frente de 35 milhões de pessoas de 24 países na Ásia, África e América Latina.
“É uma resposta àqueles que seguem financiando a destruição da natureza”, resumiu Kleber Karipuna, líder do Povo Karipuna e Coordenador Executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
O repórter viajou a convite do IPAM.
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