Reportagens

Corrida contra o tempo para conhecer (e proteger) o mico-leão-caiçara

Pesquisadores reforçam monitoramento nas áreas de ocorrência da espécie para mapear grupos, estimar população e garantir o futuro deste primata ameaçado da Mata Atlântica

Duda Menegassi ·
16 de outubro de 2023 · 1 anos atrás

Descrito pela ciência há cerca de três décadas, o mico-leão-da-cara-preta ainda é um ilustre desconhecido. Diferentes das outras três espécies de micos-leões que colecionam registros, relatos e estudos há mais de um século, a vida deste pequeno macaco de corpo laranja e preto ainda é pouco estudada. Pesquisadores correm contra o tempo para responder perguntas cruciais sobre a espécie – a começar por quantos deles existem na natureza – e garantir seu futuro, ameaçado pelos eventos climáticos extremos cada vez mais comuns.

O mico-leão-da-cara-preta (Leontopithecus caissara) vive no litoral, na divisa entre os estados do Paraná e São Paulo. Apesar de estar na maior área contínua de Mata Atlântica preservada do país, tudo indica que ele se restringe a um habitat relativamente pequeno dentro dessa imensidão verde: as áreas de restinga, no nível do mar. Por esse estilo de vida costeiro, ele também é conhecido como “mico-leão-caiçara”.

Sua área de vida está protegida pelo Parque Nacional do Superagui, no lado paranaense, e pelo Parque Estadual Lagamar de Cananéia, do lado paulista. O tamanho e a distribuição dessa população atualmente, entretanto, é uma incógnita. Tudo indica que é uma espécie naturalmente rara, o que faz dela ainda mais vulnerável.

O último – e único – levantamento populacional da espécie foi feito em 2002, pelo pesquisador Alexandre Nascimento, do IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas), que estimou a existência de 392 indivíduos na natureza. A pesquisa concentrou-se na coleta de dados em Superagui, no Paraná, e apenas extrapolou os dados coletados para estimar o número total de micos. 

“O objetivo principal [do monitoramento] hoje é fazer a estimativa populacional, saber como está a população, se aumentou ou diminuiu”, conta a bióloga Danila Veluza, da SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental), encarregada do monitoramento dos micos. 

Desde 2018, a SPVS é quem lidera os esforços de pesquisa para responder às perguntas necessárias para conservação da espécie. E em julho deste ano, a ONG começou um trabalho de campo para poder realizar o novo censo da espécie.

“Agora nós atuamos apenas em Superagui e a Fundação Florestal está fazendo esse trabalho em São Paulo, com a mesma metodologia. Então vamos conseguir juntar todos os dados para fazer o censo da espécie”, explica Danila.

Responsável pela gestão das áreas protegidas do estado, a Fundação Florestal de São Paulo sempre acompanhou, ainda que de longe, os trabalhos desenvolvidos com o mico-leão-caiçara em solo paulista, onde está o Parque Estadual Lagamar de Cananéia. Em fevereiro deste ano, o órgão deu um passo além e abriu um edital para contratação de serviços técnicos para realizar as ações do programa de conservação do mico, a partir do qual contratou-se a empresa Hileia, de consultoria ambiental.

O Parque Estadual Lagamar de Cananeia, em SP, possui cerca de 40 mil hectares, mas o mico-caiçara é encontrado em apenas 300 a 500 hectares da área protegida. Foto: Parque Estadual Lagamar de Cananeia/Fundação Florestal de São Paulo

“Nós contratamos a empresa para fazer o diagnóstico da espécie no Parque Estadual Lagamar de Cananéia porque até então a gente não tem noção da densidade populacional que existe lá, é um vazio total de informação dos micos no Lagamar”, conta Edson Montilha, gerente de Unidades de Conservação da Fundação Florestal e coordenador do projeto.

O parque possui 40,7 mil hectares, mas o mico-caiçara vive em uma área de apenas cerca de 300 a 500 hectares, onde estão as restingas. Essa área será o alvo prioritário do esforço de monitoramento, para tentar identificar novos grupos. 

O contrato, no valor de aproximadamente 1,5 milhão de reais, prevê atividades até junho de 2026. O trabalho da empresa também começou em julho. No final de setembro, a equipe de campo realizou o primeiro registro do mico. “Reencontramos a espécie depois de muito tempo sem registros [em SP], isso nos deixou muito animados”, compartilha Edson.

Em Superagui, onde acredita-se que está concentrada a maior parte da população, os avistamentos são mais comuns, relata Danila, que já identificou dois grupos na ilha, um composto por cinco indivíduos e outro por seis.

Desconfiados, dois micos observam a bióloga Danila durante seu monitoramento no Parque Nacional do Superagui. Foto: Danila Veluza/SPVS

Um bicho raro

O trabalho das equipes de campo em suas campanhas atrás do mico-leão-caiçara é intenso. Os pesquisadores passam dias percorrendo as trilhas, às vezes sem ver um mico sequer. Isso reforça a suposição de que a espécie possui uma baixa densidade populacional. Ou seja, tem poucos deles por aí. Essa raridade pode ser natural ou pode ser consequência de desequilíbrios como a racha do seu habitat causada pela abertura do Canal do Varadouro, o excesso de predadores ou dos eventos climáticos extremos que castigam sua área de ocorrência.

Mesmo em áreas de restinga próprias pro mico, às vezes não trazem nenhum registro ou sinal da presença do animal. “Talvez o número de micos seja até mais baixo do que o estimado em 2002. Vamos descobrir daqui a três anos, mas eu estou bem preocupado”, alerta o gerente da Fundação Florestal, que também é primatólogo.

“Eles não ocupam todas as áreas que eles poderiam ocupar. Talvez eles não expandam mais porque os grupos não estão grandes o suficiente. Mas a gente vê filhotes, os grupos estão se reproduzindo. Pode ser também que eles tenham sofrido uma queda populacional muito alta e a população ainda não conseguiu se recuperar”, especula Elenise Sipinski, pesquisadora da SPVS e responsável técnica pelo projeto do mico-leão-da-cara-preta.

De acordo com os registros dos pesquisadores, os grupos, formados por um núcleo familiar, não costumam ter mais do que 6 indivíduos.

Uma nova etapa de trabalho em campo

Em 2018, quando a SPVS começou o trabalho com o mico-caiçara, o monitoramento era feito principalmente através de armadilhas fotográficas, conta Elenise. “Fazíamos o monitoramento mensal das armadilhas fotográficas, mas o número de micos registrados pelas câmeras é baixo. Agora estamos com uma outra metodologia a partir dos transectos”, explica.

Danila sobe numa estrutura improvisada para armar o trepeiro, onde são colocadas frutas para atrair os micos e fazer os registros com a armadilha fotográfica. Foto: Elenise Sipinski/SPVS

Os transectos são uma rede de trilhas pré-definidas com distâncias de um a três quilômetros. Desde julho deste ano, a bióloga Danila vai a campo mensalmente para percorrer essas trilhas, com duas metodologias distintas. A primeira consiste em caminhar bem devagar e registrar qualquer eventual observação de grupos do mico. A segunda estratégia é baseada no playback, técnica que reproduz a vocalização dos micos para atraí-los. A cada 250 metros, nas mesmas trilhas, a equipe solta o play e aguarda uma possível resposta. De comportamento territorialista, os micos-leões costumam se aproximar para investigar de quem é o chamado ou vocalizar uma resposta. Com isso, os pesquisadores documentam os registros visuais ou sonoros para indicar a presença ou ausência dos micos na área. Além disso, as armadilhas fotográficas, acionadas sempre que há movimento, continuam operantes.

Em São Paulo, o trabalho desenvolvido pela Hileia é similar, com uso de armadilha fotográfica, captura de som, uso de playback e transectos para buscar os grupos, identificar as famílias e fazer a contagem de micos.

“Outro objetivo é trabalhar com dois grupos através do monitoramento com rádio-colar e telemetria. E é nesse momento de monitoramento que a gente entra com a saúde, para fazer a avaliação sanitária dos bichos e futuramente coletar amostras de DNA para avaliar a questão genética”, explica Edson.

O projeto prevê ainda o desenvolvimento de atividades educativas com a comunidade local na Vila do Ariri, em Cananéia. “Nós vamos escolher 15 jovens da comunidade do Ariri para passar por um trabalho de formação de no mínimo um ano, para no futuro serem monitores ambientais, guias e ocupar esse espaço de pesquisa, liderança e conservação, dando esse apoio local ao projeto”, acrescenta o coordenador.

A empresa Hileia, contratada pela Fundação Florestal de São Paulo, iniciou o monitoramento dos micos-caiçaras e pretende responder lacunas importantes sobre a espécie no Parque Estadual Lagamar de Cananeia. Foto: Edson Montilha/Fundação Florestal de São Paulo

Do lado paranaense, a SPVS planeja realizar pelo menos dois anos de coleta de dados para uma amostragem mais precisa dos grupos de mico. Atualmente, o projeto conta com financiamento garantido até fevereiro de 2024, através da Re:wild. A expectativa é que este apoio seja renovado, para garantir a continuidade do trabalho. 

A SPVS também prevê a captura de alguns indivíduos para análise sanitária e genética, e colocar rádio-colares, que permitam monitorar de forma contínua o movimento e uso do território pelos grupos de mico-caiçara.

“Nesse momento vem a importância da parceria. Porque a SPVS está trabalhando no Superagui e nós no Lagamar. São trabalhos acontecendo de forma paralela, mas que tem que se cruzar para conservação. Porque é uma população única separada pelo Canal do Varadouro”, reforça Edson, da Fundação Florestal.

Esses dados são fundamentais para elucidar a real situação da espécie, atualmente classificada como Em Perigo pela Lista Vermelha da Fauna Ameaçada, produzida pelo ICMBio. A lista foi parcialmente atualizada em junho de 2022, mas os dados dos primatas ainda não foram reavaliados – o que está previsto para acontecer ainda este ano.

Ameaçado pela crise climática

Uma ameaça cada vez mais real para a espécie é a crise climática. A vida litorânea deixa o mico refém dos eventos extremos – cada vez mais frequentes – que atingem o litoral sul do país, como ventanias e tempestades extratropicais. Em 2018, um ciclone atingiu a região e devastou uma área de cerca de 2 mil hectares de restinga em que havia a presença de pelo menos seis grupos de micos. “Nós não podemos afirmar, mas pode ter matado alguns animais. É difícil de saber”, conta Elenise.

“Nós temos aquele leque de ameaças, mesmo nas unidades de conservação, caça, apanha, incêndio… mas no caso do mico-caiçara eu entendo que as mudanças climáticas são o principal fator [de ameaça]”, ressalta Edson Montilha. “Não sabemos o impacto que essa ventania [de 2018] teve nos animais, mas as árvores estão todas caídas lá ainda, a gente sabe que ele perdeu área de vida”, acrescenta.

A região que o mico-caiçara vive é de clima extremo, onde as frentes frias entram com força, trazendo muito vento, muita chuva e baixas temperaturas. E, diferentemente das outras espécies de mico, na restinga eles não possuem muitos ocos de árvores para se abrigar e acabam mais expostos. Essa característica climática adversa pode, inclusive, ser um dos motivos pelo qual a espécie possui uma baixa densidade, especulam os pesquisadores.

É comum, por exemplo, ver os micos-caiçaras se abrigando dentro de bromélias, conta o gerente da Fundação Florestal. “Em projetos paralelos, a gente tem pensado em construir abrigos artificiais e monitorar para ver como se dá a ocupação pela espécie. Essa é uma estratégia que já é utilizada para aves e espécies ameaçadas, inclusive com o mico-leão-preto [Leontopithecus chrysopygus], lá no Pontal do Paranapanema”, explica Edson.

Doenças como a febre amarela também preocupam. O último surto da doença, que atingiu a região sul e sudeste do país entre 2016 e 2018, vitimou quase um terço da população de micos-leões-dourados (Leontopithecus rosalia) no estado do Rio de Janeiro, mostrando a fragilidade destes pequenos primatas ao vírus. Com uma biologia muito similar entre as quatro espécies de micos-leões, é provável que a febre amarela também seja altamente letal aos caiçaras.

Os micos-leões

Ao todo, a ciência conhece quatro diferentes espécies de mico-leão, todas exclusivas da Mata Atlântica. Todas as quatro têm biologia e aparência similar, com a principal diferença presente na coloração e expressa em seus nomes populares. O cara-preta, por exemplo, possui o corpo laranja em contraste com sua juba e cauda na cor preta.

Já o mico-leão-dourado, estampado na nota de 20 reais, possui o corpo todo alaranjado e ocorre apenas no estado do Rio de Janeiro. O mico-leão-da-cara-dourada, por sua vez, nativo do sul da Bahia, possui apenas mechas alaranjadas na cabeça, com o resto do corpo preto. E o mico-leão-preto, nativo do interior do estado de São Paulo, possui toda sua pelagem preta.

Micos ilhados

Outro desafio para conservação do mico-leão-caiçara está no Canal do Varadouro. Aberto no início do século XIX e finalizado em 1953, o canal artificial foi feito para conectar o porto de Guaraqueçaba e Paranaguá, no Paraná, com São Paulo. Como resultado, transformou Superagui numa ilha e impediu para sempre que os micos que viviam ali se conectassem com os que vivem na outra margem.

Na vida dos micos-leões, os grupos são formados por família, com um macho e uma fêmea dominantes – o pai e a mãe – e seus filhos. Por volta dos dois anos, os filhotes atingem a maturidade e deixam o grupo para procurar um novo território e formar sua própria família. Essa dinâmica é o que garante a troca genética da espécie.

O barca diante da imensidão do Canal do Varadouro, que separou de forma irreversível as populações de mico-leão-caiçara. Foto: Danila Veluza/SPVS

Em alguns trechos, o curso d’água artificial chega a ter mais de 100 metros de uma margem a outra. Uma barreira intransponível para o mico-leão-da-cara-preta. Com a troca genética interrompida entre essas populações há quase um século, outra pergunta ainda a ser respondida é a diversidade de genes que circulam nos grupos insulares e no continente, e se ela é suficiente para manter as populações saudáveis no longo prazo.

“O Canal do Varadouro teve um problema concreto, separou as populações. Isso causou e está causando um impacto muito grande para essa espécie. Isso não dá para negar”, afirma o primatólogo. Numa população pequena como a do mico-caiçara, a baixa variabilidade genética pode ter um impacto avassalador no longo prazo.

As respostas que virão com a análise genética dos grupos apontarão o caminho, mas Edson acredita que o manejo populacional será inevitável. Já que uma passagem de fauna por cima do canal é considerada inviável, seria necessário fazer a translocação de indivíduos de um lado para o outro para garantir a troca genética entre os micos da ilha e do continente. 

Uma população de segurança é necessária

O mico-leão-da-cara-preta é um dos animais ameaçados contemplados pelo Plano de Ação Nacional (PAN) para Conservação dos Primatas da Mata Atlântica. A analista ambiental do ICMBio que integra o Centro de Pesquisa e Conservação de Primatas (CPB), Mônica Montenegro, reforça que as ações prioritárias para conservação do mico-caiçara são a retomada dos estudos populacionais e ecológicos. “Com prioridade para atualização do tamanho populacional e de como as populações estão distribuídas dentro de sua área de ocorrência”, conta a analista. O reforço na implementação das duas unidades de conservação que abrigam a espécie (os parques do Superagui e Lagamar-Cananéia) é outra prioridade. 

“Frente a essas demandas, sob a coordenação da SPVS e participação de várias instituições, foi elaborado o Programa de Conservação do Mico-leão-da-cara-preta”, explica Mônica.

Conhecer a população existente de micos é um passo fundamental para traçar as estratégias para sobrevivência da espécie. Uma das possibilidades, por exemplo, é fazer o manejo ex situ dos mico-caiçaras, ou seja, manter uma população e reproduzí-los fora do seu ambiente natural. Esse trabalho, normalmente feito por zoológicos, pode garantir uma população de segurança para espécie e até mesmo servir de fonte para reforçar o número de animais na natureza.

Atualmente, porém, ainda não há nenhum indivíduo de mico-leão-da-cara-preta em cativeiro. O que significa que para fazer isso, seria necessário retirar indivíduos do ambiente natural.

Um mico pega sol em meio as folhas no primeiro registro feito pela equipe da Hileia no Parque Estadual Lagamar-Cananeia durante expedição em setembro. Foto: Hileia

“Não dá para pegar animais na natureza de forma irresponsável, ainda mais um animal que já tem uma população pequena. Por isso a gente precisa entender melhor a situação da espécie. É um trabalho de longo prazo para garantir o futuro da espécie”, reforça Elenise.

Durante uma oficina em 2021 para avaliar as espécies contempladas no PAN dos Primatas da Mata Atlântica, debateu-se a situação – e o futuro – do mico-caiçara. Nela, chegou-se à conclusão de que para garantir a sobrevivência da espécie em longo prazo, é necessário o estabelecimento de uma população de segurança ex situ. Para isso, entretanto, é preciso ter mais dados. 

“Os maiores desafios dizem respeito à obtenção das informações populacionais. A espécie vive em baixa densidade e é de difícil detectabilidade. Para se ter resultados confiáveis, é preciso aliar vários métodos de estimativas populacionais e de área de uso (entrevistas, busca ativa, armadilhas fotográficas, playback, transecções lineares, gravadores acústicos autônomos, colares GPS, drone), o que envolve um certo custo para manutenção de recursos humanos e aquisição de equipamentos, por um certo período de tempo. O CPB, enquanto coordenador do PAN PPMA [Primatas da Mata Atlântica], vem trabalhando em articulações no sentido de obter estes recursos humanos e financeiros para implementação das ações de conservação necessárias e apoiando a SPVS e a FF/SP”, completa a analista do CPB/ICMBio.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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Comentários 1

  1. Paulo diz:

    Parabéns pela ação.
    Mas, neste momento, com uma previa análise de uma população baixa e com a falta de locais para nidificar, é urgente colocar ninhos artificiais para dormitório destes primatas. Sem dúvida nenhuma, que melhorará o ambiente para estes primatas. Colocar os abrigos, antes de completar o senso populacional.