Reportagens

Em risco de extinção, araras-de-lear brasileiras são traficadas globalmente

Entidade civil denuncia casos no país e no exterior e sugere uma força-tarefa nacional para proteger a espécie da Caatinga

Aldem Bourscheit ·
31 de julho de 2023 · 1 anos atrás

Apreensões neste ano reacendem um alerta sobre o comércio ilegal da arara-azul-de-lear. Entidade civil quer uma força-tarefa atuando contra os crimes, que se somam às pressões da energia eólica e do desmate da Caatinga.

Pouco mais de 2,2 mil de-lear vivem livres no Raso da Catarina, território distribuído em municípios como Canudos e Paulo Afonso, no interior da Bahia. Mesmo sob risco de desaparecer, a espécie segue na mira do tráfico.

O Serviço Florestal do Suriname apreendeu, há duas semanas, 29 dessas aves e 7 micos-leões-dourados. As autoridades do país vizinho avaliaram que os animais foram traficados do Brasil e seriam vendidos na Europa. 

Outras três de-lear foram confiscadas no fim de maio no Aeroporto Internacional Hazrat Shahjalal, em Daca, capital do Bangladesh. O país fica no sul da Ásia, entre a Índia e o Myanmar. 

Em março, 6 araras numa caixa foram flagradas em mídias sociais pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (RENCTAS). Havia adultos e filhotes, retirados de ninhos nos paredões de arenito da região.

À disposição também de criminosos, estudos científicos publicados na Internet por órgãos ambientais detalham onde grupos das de-lear se alimentam, pernoitam e reproduzem.

Adultos e filhotes (manchas amarelas menos intensas) em carga que circulou em Março deste ano. Vídeo: Renctas / Monitoramento.

Coordenador-geral da RENCTAS, Dener Giovanini afirma que os episódios indicam um tráfico intenso, estruturas profissionais e muito caras para retirar as aves do Brasil. “Não são traficantes ‘pé de chinelo’”, diz.

“O esquema passa por grandes rotas e usa até aeronaves particulares e aeroportos secundários, ambos menos fiscalizados”, avalia o ambientalista e documentarista cinematográfico. 

As barulhentas de-lear chegam a 75 centímetros de comprimento e 940 gramas. São menores que a arara-azul do Pantanal, Cerrado e Amazônia. Essa chega a 1 metro de comprimento e 2 quilos, detalha o Wikiaves.

No maior nível de risco junto à Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), exemplares das de-lear só podem deixar o Brasil com licenças federais. 

A base de exportações legais mantida pelo Ibama desde 2006 mostra apenas uma ave viva enviada à Espanha, em 2010. Amostras de sangue foram remetidas à Itália, Alemanha e Catar, entre 2007 e 2011.

As aves apreendidas no aeroporto de Bangladesh, em maio. Foto: Masud Al Mamun / The Business Standard

Pelo alto risco de tráfico, a espécie merece ações urgentes das autoridades públicas, defende a RENCTAS. Denúncia da entidade ao Ministério Público Federal (MPF) sugere uma força-tarefa nacional para protegê-la.

“Precisamos de um plano estratégico com reforço urgente de vigilância sobre as aves, as rotas e os traficantes. É preciso conter o problema agora”, destaca Dener Giovanini.

Órgãos ambientais e policiais baianos nada informaram sobre confiscos de de-lear nos últimos 12 meses. O Ibama investiga as apreensões e negocia a devolução das aves com os governos do Suriname e de Bangladesh.

Retorno incerto

A volta à natureza de aves apreendidas no Brasil ou em outros países nunca é garantida. Além de adultos e sobretudo filhotes muitas vezes perderem os conhecimentos para viver na natureza da Caatinga, há riscos aos animais livres. Diretor de Planejamento e Projetos da Fundação Biodiversitas, Paulo Machado avalia que a reintrodução de animais têm que ser precedida de quarentenas e exames rigorosos para evitar a transmissão de doenças, que podem dizimar populações inteiras. “Sempre soa melhor reintroduzir, mas é preciso pensar primeiro na população nativa”, avisa. Machado avalia, ainda, que aves apreendidas que não podem retornar à natureza poderiam ser reproduzidas em cativeiros bem fiscalizados e ser comercializadas legalmente para reduzir a pressão do tráfico sobre animais livres. Em 2017, um censo do ICMBio contou 133 araras-de-lear em criadouros autorizados no Brasil e em outros países. 

Tanques de gasolina

O roubo e a venda de espécies retiradas da natureza podem ter crescido nos últimos anos pela degradação da fiscalização ambiental orquestrada pelo governo Jair Bolsonaro, mas as araras-de-lear têm um histórico de tráfico.

“Muito raras, as aves são procuradas sobretudo para coleções particulares ou para tentativas de reprodução em cativeiro e venda”, conta Dener Giovanini, da RENCTAS.

Curador do Paradise Park de Cornualha (Inglaterra), David Woolcock relata que as primeiras três araras-de-lear chegaram àquele país nos anos 1980 dentro de um tanque de combustível de carro, importado do Brasil.

“Muitas, muitas aves foram contrabandeadas dessa forma”, revelou numa entrevista recente ao portal britânico iTV. Aquelas primeiras aves teriam se reproduzido e agora há 12 no parque.

No mesmo país, um trio de de-lear foi confiscado com um traficante de vida selvagem, em 1998. O criminoso internacional transportava as aves do leste europeu para a Inglaterra.

Outras três de-lear foram encontradas em casas e carros na República Tcheca, em 2010. A investigação conectou o tráfico de animais a rotas pelo Brasil, Portugal, Alemanha, Rússia, Ucrânia, Holanda, Bélgica e Luxemburgo.

Naquele ano, a CITES reconheceu que diferentes espécies de aves chegaram à República Tcheca com anilhas e documentos falsos de criação em cativeiro e para exportação. 

O Brasil (verde) e países (vermelho) onde até agora foram apreendidas araras-de-lear. Mapa: O Eco / Nomad Revelations

Em abril de 2017, uma arara-azul-de-lear apreendida em Buenos Aires foi repatriada ao Brasil. A ave havia sido encontrada numa casa dez anos antes, em 2007, e desde então habitava o zoológico da capital argentina.

O plano federal para conservar a espécie lista apreensões de 27 aves entre 1998 e 2005 e reconhece que os animais confiscados são “apenas uma pequena parte do total de aves retiradas da natureza”.

Conforme a RENCTAS, apenas cerca de um entre dez animais roubados de ambientes naturais pelo tráfico chegam vivos ao destino final. Uma realidade ainda mais grave para espécies no limiar da extinção. 

Presente e futuro

A maior ameaça às araras-azuis-de-lear no longo prazo é o desmate da Caatinga pela agropecuária e produção de lenha. Isso reduz a oferta de seu principal alimento, o fruto do licuri, uma palmeira de regiões áridas.

O bioma perdeu mais de 10% da vegetação e 160 mil hectares de superfície de água desde 1985, aponta o MapBiomas. No mesmo período, mais de 15% da área da Caatinga foi queimada. 

No curto prazo, o tráfico é um dos principais riscos à de-lear. O crime foi um dos motores da criação da Estação Biológica de Canudos, no início dos anos 1990. À época, apenas 50 aves voavam pela Caatinga. 

Paulo Machado é diretor de Planejamento e Projetos da Fundação Biodiversitas, responsável pela reserva particular. Para ele, o alarmante tráfico mostra que é preciso reforçar a parceria com a população do Raso da Catarina.  

“Sem as comunidades ajudando a vigiar e denunciar ações suspeitas será muito difícil conter o tráfico, pois a capacidade dos órgãos ambientais e policiais é sempre limitada”, diz. 

Na região, também devem proteger grupos de araras a Estação Ecológica do Raso da Catarina, gerenciada pelo ICMBio, e o território indígena Baixa do Chico, num território da etnia Pankararé.

Do voo livre às jaulas de colecionadores é o destino de muitas araras-de-lear roubadas da Caatinga. Foto: Ciro Albano / Brazil Birding.

As aves também são mortas ao atacar lavouras ou topando com geradores eólicos e cabos de transmissão. “Não somos contra, mas as usinas deveriam se instalar onde causem menos danos aos animais e pessoas”, ressalta Machado.

Centrais que geram eletricidade com a força dos ventos são licenciadas pelo Governo da Bahia inclusive na região onde vive a arara-azul-de-lear. Os empreendimentos são criticados por conservacionistas e Ministério Público.

A Bahia é líder nacional em geração eólica, com 272 centrais que podem gerar 7,42 Gigawatts, informa a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

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Comentários 1

  1. Márcio Lira diz:

    Gravissíma essa denúncia. Tá na cara que isso ai é coisa de gente grande mesmo. Os caras lutam para preservar e vem os traficantes levar tudo embora. Um absurdo.