O Dia da Caatinga, celebrado neste dia 28 de abril, por si só é uma data que traz visibilidade para o bioma – o único exclusivamente brasileiro – que ocupa 11% do território do país. Mas este mês de abril marca também os dois anos da criação do Mosaico de Unidades de Conservação do Boqueirão da Onça, no sertão baiano. Composto por um parque nacional e uma área de proteção ambiental que somam quase 900 mil hectares, o mosaico é uma das maiores áreas protegidas da Caatinga. Tão grande quanto as áreas são os desafios da gestão, que conta atualmente com apenas dois servidores do ICMBio, enquanto luta para implementação das unidades.
Criados em 5 de abril de 2018, o Parque Nacional do Boqueirão da Onça, com 347 mil hectares, e a Área de Proteção Ambiental do Boqueirão da Onça, com 505 mil, protegem o maior contínuo de Caatinga no Brasil. Como o próprio nome já indica, as protagonistas por lá são as onças, tanto a parda (Puma concolor) quanto a pintada (Panthera onca). Os predadores de topo de cadeia são apenas uma fração da rica fauna encontrada nas áreas, onde foram identificados 26 mamíferos de médio e grande porte. Tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla), tatupeba (Euphractus sexcintus), veado-catingueiro (Mazama gouazoubira), gato-do-mato (Leopardus tigrinus) e a jaguatirica (Leopardus pardalis) são outros dos habitantes do Boqueirão.
Os levantamentos de fauna e flora, entretanto, são apenas uma parte do trabalho feito nos últimos dois anos. A criação de uma unidade de conservação não é um fim e sim o começo de um grande ciclo de ações para consolidar a área protegida, que incluem a formação de um conselho gestor com participação do governo e da sociedade civil, a elaboração de um Plano de Manejo e o trabalho com as comunidades no entorno. Concomitante a isso, há os trabalhos rotineiros de uma unidade de conservação (UC), como a fiscalização.
“Não é fácil”, resume a chefe do Núcleo de Gestão Integrada do ICMBio Juazeiro, Cláudia Campos, responsável pela gestão do Mosaico do Boqueirão da Onça. A bióloga assumiu a gestão das áreas em janeiro deste ano e ressalta que o processo de implementação das unidades de conservação é lento, principalmente pelo tamanho do Mosaico e agravado pela equipe reduzida e ao fato das UCs terem ficado sem gestor durante todo o segundo semestre de 2019.
“As unidades de conservação do Boqueirão são muito recentes e tiveram a gestão interrompida, mas outras coisas foram caminhando enquanto isso na região. O Programa Amigos da Onça é um exemplo. Enquanto o ICMBio não conseguia caminhar na região, o projeto fez atividades com as comunidades do entorno e sempre levou o recado da importância da conservação da Caatinga da região, e toda sua fauna e flora”, explica Cláudia, que espera firmar uma parceria oficial com o projeto. “Também estou em busca de concretizar a parceria com universidades e outras instituições para aumentar os esforços de pesquisa para conservação na região”, acrescenta.
O Programa Amigos da Onça existe desde 2012, iniciado pela própria Cláudia, que na época fazia monitoramento das populações de onça no Boqueirão. Junto com outras duas pesquisadoras, uma bióloga e uma engenheira agrônoma, ela deu início ao programa que hoje faz parte do Instituto Pró-Carnívoros. “Em 2006 eu comecei a trabalhar no Boqueirão da Onça e entender que precisava ser feito um trabalho mais amplo com a onça-pintada, pois os grandes carnívoros são sempre acusados de prejuízos em rebanhos e de serem ameaça aos seres humanos. Historicamente na Caatinga existe uma disputa de território digamos assim, conscientemente pelos humanos e inconscientemente pelas onças. E até hoje são as onças que perdem”, conta a bióloga.
“O manejo na Caatinga é extensivo, onde os animais são criados livres. Nessa movimentação de ida e volta, alguns animais acabam ficando na Caatinga, e é nesse momento que eles podem ser predados por uma onça. Mas as cabras e ovelhas também são expostos à outros fatores, como picada de cobra, roubo e até predação com cães e porcos domésticos”, detalha Cláudia, “são vários fatores, mas quem paga a conta alta é a onça”.
A retaliação por perdas nos rebanhos de caprinos e ovinos, que são criados livremente na região, é um dos principais motivos de abates de onças. Por isso, uma das frentes do Amigos da Onça, além da pesquisa e monitoramento dos felinos, é a educação e o trabalho socioambiental.
Uma das pesquisadoras do programa, a bióloga Carol Esteves, explica que o Amigos da Onça atua – em maior ou menor grau – em todos os seis municípios compreendidos pelo Mosaico do Boqueirão: Campo Formoso, Juazeiro, Sobradinho, Umburanas, Sento Sé e Morro do Chapéu. “Não adianta a gente trabalhar com a conservação específica de uma espécie e deixar as pessoas de fora. Parte do trabalho é aliar as comunidades, empresas e o governo. O desafio é imenso, são mais de 100 comunidades no Boqueirão”, conta Carol.
Em duas delas, Queixo Dantas (município de Campo Formoso) e Vereda do Mari (em Sento Sé), o Programa conseguiu instalar um total de 18 currais para abrigar os rebanhos pelo menos durante a noite, para reduzir a chance de predação por onças. “Nós constatamos que houve uma queda de 23% na taxa de predação, então foi super positivo. Agora queremos replicar o manejo em outras comunidades, porque vimos que deu resultado”.
Outro desafio para as onças – e toda fauna da região – é a caça ilegal. Atualmente, de acordo com dados do Plano de Ação Nacional (PAN) para a Conservação da Onça Parda, a onça-parda é classificada como ‘em perigo’ na Caatinga. Já a onça-pintada é considerada ‘criticamente em perigo’ no bioma, de acordo com o PAN para conservação da espécie.
Segundo a pesquisadora, a densidade populacional das onças é menor na Caatinga, devido à própria escassez de recursos vitais como a água. No Boqueirão, o Programa Amigos da Onça estima uma população de 30 indivíduos de onças-pintadas e de 180 para onças-pardas, uma redução de 40% e 10%, respectivamente, na população nos últimos 10 anos.
A forte pressão da caça sobre as onças foi sentida diretamente durante o monitoramento pioneiro via rádio-colar que o Programa realizou onças pardas e pintadas entre 2016 e 2019, na região do Boqueirão. Das 4 onças monitoradas, 2 foram abatidas enquanto eram monitoradas pela equipe.
“A nossa expectativa é de que a implementação das unidades de conservação permita uma fiscalização melhor da área. Nós temos um histórico de caça ilegal no Brasil e na Caatinga isso é muito forte, quer seja apreensão de passarinho quer seja o abate mesmo de animais”, pondera Carol.
A lista de pressões e desafios para as unidades de conservação do Boqueirão da Onça incluem também a exploração ilegal de pedras semipreciosas, a ocupação irregular com abertura de áreas de plantio e pecuária com a utilização de fogo, assim como o interesse de empresas de energia eólica e solar, assim como de mineração, em explorar o Boqueirão.
“A gestão do parque requer um conjunto grande de atores para que ela seja positiva tanto para conservação da biodiversidade quanto para o bem dos moradores locais. E esse é o nosso maior desafio”, reforça a chefe das unidades de conservação.
“O Boqueirão da Onça é uma área enorme e com um valor de biodiversidade imenso para o bioma. Você encontra vestígios de Mata Atlântica, manchas de Cerrado e a Caatinga propriamente dita, que é a maior parte” exalta Cláudia. “Além disso, o Boqueirão tem nos seus paredões rochosos milhares de pinturas rupestres, além de fósseis de animais pré-históricos como a preguiça-gigante e o tigre-dente-de-sabre”, em referência ao patrimônio arqueológico da região, ainda pouco estudado. O Mosaico também abriga a maior caverna do hemisfério sul, a Toca da Boa Vista, com mais de 100 quilômetros de galerias já mapeados.
Carol acrescenta ainda que o Boqueirão da Onça é ainda um patrimônio pouco conhecido e valorizado, assim como a Caatinga como um todo. “O que mais me encanta é a beleza única e toda a singularidade do Boqueirão, que tão pouca gente conhece. E é um laboratório a céu aberto, a gente sabe muito pouco ainda sobre ele e sobre a Caatinga de um modo geral”.
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