-
Publicado originalmente por Agência Fapesp
Pesquisadores de vários países trabalharam cinco anos para produzir um quadro abrangente da situação atual das chamadas grasslands – termo em inglês que designa os biomas formados por campos e savanas, quase todos seriamente ameaçados pela degradação ambiental. Os estudos locais foram complementados por dois workshops presenciais e intensa troca de e-mails entre os cientistas envolvidos.
O resultado foi o artigo Combatting global grassland degradation, publicado na revista Nature Reviews Earth & Environment com a assinatura de estudiosos do Reino Unido, França, Alemanha, Suíça, China, Índia e Brasil.
“As grasslands estão ameaçadas em todo o planeta, mas os processos de degradação diferem de região para região. O maior problema é a conversão desses biomas em áreas agriculturáveis. Um exemplo é o Cerrado brasileiro, no qual a vegetação original, extremamente rica em biodiversidade, vem sendo suprimida para dar lugar a grandes plantações de soja, cana, eucalipto etc.”, diz à Agência FAPESP a brasileira Giselda Durigan, que participou da iniciativa.
Durigan integra a equipe do Instituto de Pesquisas Ambientais do Estado de São Paulo e é professora em programas de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Sua pesquisa de longa data sobre o Cerrado contou com vários apoios da FAPESP.
Na época em que foi iniciado o estudo em pauta, ela tinha dois projetos em curso financiados pela Fundação: “Impacto de fatores antrópicos (fogo, agricultura e pastoreio) sobre a biodiversidade em savanas” e “Invasão do campo cerrado por braquiária (Urochloa decumbens): perdas de diversidade e experimentação de técnicas de restauração” .
“Outra forma de degradação é a exploração à exaustão dos campos e savanas. É o que vem ocorrendo em boa parte do continente africano. Devido à superexploração, o bioma original perde sua capacidade de produzir, sua biodiversidade e seus serviços ecossistêmicos”, acrescenta a pesquisadora.
O agravante, segundo Durigan, é que pouca gente se importa com a degradação ou a perda desses biomas. Pode-se dizer que são “invisíveis” para a maioria das pessoas, que associam a ideia de ecossistemas naturais à presença de árvores.
“O desconhecimento é tanto que, no Brasil, nem sequer temos uma boa tradução para o termo grassland. Se colocarmos a palavra no Google Tradutor ou em outros dicionários inglês-português impressos ou disponíveis na internet, obteremos como resultado o termo ‘pastagem’. Faz até algum sentido, porque, grosseiramente, são enquadrados como grasslands todos os ecossistemas do planeta onde existem capins que os animais pastadores possam comer. Mas a palavra resultante é muito vaga”, comenta a pesquisadora.
No Brasil, estão entre as grasslands o Pampa, os campos de altitude no alto das serras, boa parte do Pantanal e praticamente todo o Cerrado – exceto o chamado “Cerradão”, que, na verdade, é um tipo de floresta empobrecida. Em síntese, estão entre as grasslands todos os campos e savanas naturais que dominam alguns de nossos principais biomas (Pampa, Cerrado e Pantanal). Mas elas podem ocorrer, também, como “ilhas” em meio às vegetações da Amazônia, da Caatinga e da Mata Atlântica.
“A proposta de nosso estudo e do artigo publicado foi mostrar a importância das grasslands em termos de biodiversidade e serviços ecossistêmicos. E apontar caminhos para cessar a degradação e promover a conservação e o uso sustentável dos campos e savanas em todo o planeta. Por isso o professor Richard Bardgett, da Universidade de Manchester, no Reino Unido, que liderou o projeto, procurou reunir pesquisadores de diferentes países. A representatividade era importante para que encontrássemos uma abordagem que fizesse sentido em escala global”, conta Durigan.
Soluções
As diretrizes apontadas pelo artigo, para que tudo isso resulte em políticas públicas realmente eficazes, são, em primeiro lugar, definir indicadores adequados, que possibilitem avaliar o nível de degradação e que possam ser bem compreendidos e adotados globalmente. Feito isso, desenvolver e disseminar técnicas de restauração ecologicamente efetivas e economicamente viáveis que atendam os diferentes interesses da sociedade. Finalmente, encontrar alternativas de exploração sustentáveis, que possibilitem utilizar economicamente esses ecossistemas sem degradá-los.
“Os campos e savanas são essenciais não só pelos serviços ecossistêmicos de proteção à água, aos solos e à biodiversidade, mas também pela provisão de alimentos e outros produtos essenciais para a vida das pessoas em diferentes regiões do mundo. O caminho para a conservação das grasslands não é a exclusão das pessoas. Existem povos cuja existência e cultura são totalmente dependentes desses ecossistemas. E as necessidades e visões desses grupos precisam ser contempladas”, pondera Durigan.
A questão, segundo a pesquisadora, é definir diferentes “níveis” de restauração, que possam ser aceitos, desenvolvidos e postos em prática pelos vários atores envolvidos no tema. Isso vai desde a simples recuperação da produtividade de pastagens naturais degradadas pela superexploração até a completa restauração de ecossistemas complexos. Cada coisa no seu lugar. As iniciativas bem-sucedidas, que são muito raras, precisam ser amplamente compartilhadas para que possam ser replicadas.
Esse conjunto de providências é especialmente urgente no Brasil, onde a degradação e a devastação vêm ocorrendo em ritmo acelerado. Grandes porções dos Pampas estão se convertendo em plantações de eucalipto para a produção de celulose. O ressecamento do Pantanal, em função da crise climática, tende a fazer com que vastas áreas, antes alagáveis, sejam convertidas em lavouras de soja. E o Cerrado, que constitui a savana mais biodiversa do planeta, já perdeu metade de seu território para a agricultura em larga escala.
“Há perdas irreversíveis no Cerrado. Uma coisa é recuperar um bioma degradado pelo sobrepastoreio. Outra é restaurar uma área que foi alterada pela agricultura a ponto de perder todas as suas características originais. Quando o capim nativo foi substituído pela braquiária, de origem africana, isso constituiu um grande impacto. Mas, ainda assim, muita diversidade se manteve, em flora e fauna. Porém, o pecuarista tradicional vem cedendo lugar ao grande agricultor. Com máquinas que cortam as raízes em profundidade e herbicidas poderosos que deixam o solo completamente limpo, não sobra nada do Cerrado que existia antes”, enfatiza Durigan.
Como foi divulgado em outra reportagem da Agência FAPESP, além da perda de biodiversidade e da destruição da paisagem, um eventual colapso do Cerrado pode ocasionar um impacto hídrico de consequências incalculáveis. Pois alguns dos mais importantes rios do Brasil – o Xingu, o Tocantins, o Araguaia, o São Francisco, o Parnaíba, o Gurupi, o Jequitinhonha, o Paraná, o Paraguai, entre outros – nascem nesse bioma.
“Preservar e utilizar de forma criteriosa o que resta e restaurar ao menos parcialmente o que se perdeu, ainda que isso possa constituir um enorme desafio científico, tecnológico e político, é fundamental para a sobrevivência desses rios, não apenas como manancial de água doce, mas também potencial hidrelétrico”, conclui a pesquisadora.
O artigo Combatting global grassland degradation pode ser acessado em: www.nature.com/articles/s43017-021-00207-2.
Leia também
Termo ‘savanização’ precisa ser revisto nos discursos sobre degradação florestal
Associar a savana à ideia equivocada de que esta seria uma vegetação degradada e pobre favorece o discurso de que não há nada a ser conservado →
Existirá futuro para o Brasil sem o Cerrado?
O discurso de que o futuro do Brasil depende do avanço do agronegócio sobre o Cerrado falha em reconhecer que sem ele, sua biodiversidade e suas águas, não haverá amanhã para o país →
Sai Cerrado, entra agropecuária: a dinâmica que devorou 26,5 milhões de hectares em 36 anos
Levantamento do MapBiomas revela que entre 1985 e 2020 o bioma perdeu 19,8% da sua cobertura remanescente quase inteiramente para o uso agropecuário. Estudo também alerta para redução de áreas úmidas →