Agentes públicos como fiscais ambientais e aduaneiros reforçarão o combate ao tráfico e outros delitos com um guia e cursos para identificar partes e produtos feitos com felinos selvagens brasileiros. Onças-pintadas mortas sobretudo na Amazônia abastecem mercados asiáticos ilegais.
Uma incessante demanda nacional e global por itens traficados mantém aquecidas a matança e os maus tratos de animais selvagens. Os altos lucros de indivíduos e redes criminosas dependem de dribles na fiscalização física e eletrônica, em rodovias, portos, aeroportos e correios.
Diante do problema, um guia detalha partes de felinos americanos e meios usados por traficantes tentando se safar da fiscalização. Lançado no fim do ano passado, o material capitaneado por entidades brasileiras é inspirado em ação semelhante na Bolívia, onde é intenso o comércio ilegal de animais.
“A publicação supre a lacuna do desconhecimento generalizado sobre como identificar peles, crânios, dentes e outras partes, bem como onde e como procurar por itens traficados”, explica a bióloga Yara Barros, editora do guia e coordenadora-executiva do projeto Onças do Iguaçu, desde o oeste do Paraná.
O manual permite identificar itens ilegais nos raios-x de aeroportos, distinguir entre peles naturais e artificiais, verificar se notas fiscais são mesmo “quentes”. As 10 espécies de felinos abordadas têm proteção legal e não podem ser transportadas sem uma licença federal. A lista tem de grandes onças ao gato-palheiro, do porte de um gato doméstico.
Versões impressas e eletrônicas da publicação chegam a órgãos ambientais e policiais para ampliar a vigilância, sobretudo em alfândegas, tríplices fronteiras e postos de controle rodoviário. Assim, investigações podem ser disparadas mesmo que haja dúvida sobre um possível crime de tráfico.
Mais apreensões ajudarão a mapear as rotas, identificar criminosos e a endurecer a fiscalização contra o tráfico. “Também podem aumentar a penalização de responsáveis e a conservação da biodiversidade”, avalia Juliana Ferreira, co-autora do guia e diretora-executiva da Freeland Brasil.
Além disso, treinamentos para detecção de crimes alcançam agências policiais, ambientais e fiscais brasileiras. Com órgãos similares de países vizinhos, uma força tarefa combate o tráfico global da onça-pintada. Para tanto, conhecer técnicas usadas pela bandidagem é indispensável.
Produtos como a “Tiger Balm” são usados para disfarçar o cheiro de peles, dentes e outras partes de felinos transportadas em carros, ônibus e aviões. A pasta analgésica de cheiro intenso é fabricada e distribuída pela Haw Par Healthcare, de Cingapura. É vendida online por cerca de R$ 50,00.
Técnicas como essa foram denunciadas pelas entidades brasileiras à Organização Mundial de Aduanas. Os 184 países conectados à entidade respondem por 98% do comércio global.
Tigre americano
O território da onça-pintada nas américas encolheu pela metade nos últimos 100 anos. O felino já foi extinto em El Salvador e no Uruguai, e em biomas como o Pampa. O Brasil abriga 56% das pintadas no continente, mas desmate e caça reduziram seu espaço no país em ⅓ nas últimas duas décadas.
“Uma grande ameaça ao sul da Amazônia é a morte de onças por retaliação de ataques a rebanhos”, descreve Yara Barros, do projeto Onças do Iguaçu.
Ilhada em pedaços de matas, a espécie fica mais vulnerável à extinção, pois depende de grandes territórios para sobreviver. A maior proteção sobre populações decadentes do tigre asiático ampliou a demanda por itens traficados da onça-pintada, o “tigre americano” nos mercados ilegais.
“O recente aumento do tráfico transnacional de partes de onça-pintada coloca ainda mais pressão sobre uma espécie que sofre com a perda e degradação de habitat, o conflito com humanos, e a caça de troféu”, ressalta o Guia de Identificação de Partes de Felinos.
Garras, dentes e outros itens de grandes felinos viram amuletos ou servem a um curandeirismo taxado de “medicina tradicional” em países asiáticos. Apreensões listadas na publicação reforçam o tráfico das américas àquela região.
Entre 2012 e 2018, quase 2 mil dentes, peles e crânios da espécies foram confiscados nas américas Central e do Sul, retirados de 800 onças mortas na Bolívia, Brasil, Colômbia e Suriname. A China era o destino de 1 ⁄ 3 dos itens. Partes de onças já foram apreendidas até na Sérvia, no sudeste europeu.
Em 2015, 119 dentes de onça-pintada foram flagrados no aeroporto de Beijing. Em 22 apreensões na Bolívia, 17 tinham a participação direta de chineses. Há evidências de cidadãos do país asiático comprando e utilizando partes de onças-pintadas no Suriname ao menos desde 2003.
Tentamos contato por telefone e email com a Embaixada, em Brasília, e com o Consulado da China, em São Paulo, mas não tivemos retorno até o fechamento da reportagem. Os escritórios não informam os contatos de sua Assessoria de Imprensa no Brasil.
No país também há casos extremos. Em 2016, patas e cabeças de 19 onças foram apreendidas num refrigerador em Curionópolis (PA). Itens similares foram confiscados em Roraima, estado fronteiriço à Venezuela e à Guiana. Crimes disparam em estados bolivianos junto ao Brasil, mostrou ((o))eco.
Esforço regional
Detentores de rica biodiversidade distribuída num vasto território – em torno de 7 milhões de km2 –, os países da Bacia Amazônica estão entre as maiores fontes para o tráfico interno e mundial de animais e plantas retirados de ambientes naturais.
Para começar a mudar esse quadro, recursos alemães são investidos pela Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) em maior controle dos negócios via Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção (Cites).
O esforço é focado em 18 espécies listadas no acordo e com grande procura por traficantes. Algumas só podem ser legalmente comercializadas para estudos científicos, como harpia e onça-pintada. Uma plataforma na Internet informa sobre quantidades, rotas, meios e regiões críticas do tráfico regional.
Os aportes levaram à emissão de licenças eletrônicas para o comércio de espécimes no Brasil. Sistemas nos demais países devem ser usados a partir de abril deste ano. A tecnologia permitirá uma maior rastreabilidade sobre o negociado via Cites, da produção ao destino.
“Cada país poderá usar as informações para mitigar impactos e promover políticas públicas contra o tráfico e outros ilícitos”, avalia Mauro Ruffino, coordenador na OTCA do Projeto Bioamazônia e do Observatório Regional Amazônico (ORA).
As iniciativas promoveram estudos sobre a sustentabilidade de populações de espécies selvagens, forneceu equipamentos e capacitou comunidades para seu extrativismo. Tudo para danos aos animais e garantir a higiene do que será comercializado, como pele e carne de pirarucu.
“Na próxima fase do projeto queremos fortalecer e integrar os sistemas de controle dos países. Isso permitirá o cruzamento de registros e uma melhor fiscalização, especialmente em áreas de fronteiras”, destaca Ruffino, mestre em Oceanografia Biológica pela Fundação da Universidade Rio Grande (FURG).
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