O Programa Macacos Urbanos vem construindo pontes, tanto para bugios, quanto para os humanos que se envolvem com a causa há mais de três décadas. Em vários sentidos, literalmente. Desde travessias para fauna na zona Sul de Porto Alegre, onde os bugios-ruivos (Alouatta guariba clamitans) cruzam para atravessar uma estrada, a conexões entre estudantes, pesquisadores, operadores do direito, poder público e comunidade científica pelo mundo afora.
Recentemente, devido a onda de mortes de bugios por causa da rede elétrica, conforme relatado aqui em ((o))eco, o Ministério Público gaúcho entrou com uma ação civil pública para que a empresa CEEE Equatorial providencie uma série de medidas para a proteção desses animais. A Justiça atendeu em parte a ação do MP e estipulou que a companhia tem 90 dias para implementar um Plano de Ações Preventivas de Acidentes de Bugios por Eletrocussão.
Mais que um grupo de voluntários
O PMU nasceu entre alunos inquietos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que estavam preocupados com a sobrevivência dos bugios no extremo sul de Porto Alegre, devido à crescente expansão urbana no município. Esse processo até hoje gera várias ameaças aos bugios, como choques elétricos, atropelamentos, ataque por cães, entre outros conflitos.
O programa reúne um grupo de voluntários de áreas diversas que institucionalmente podem ou não estar ligados à UFRGS. Até hoje, tem o apoio da universidade, atuam sem hierarquia, respeitando as expertises de cada um que entra no grupo. Há veterinários, biólogos e membros da comunidade no grupo, que atua na promoção de ações transdisciplinares, educação ambiental e resgate de animais feridos.
O PMU foi e ainda é decisivo na vida de vários profissionais que atuam Brasil afora e também para muitos que se envolveram nas atividades voluntárias. “Para mim, foi uma verdadeira escola de conservação”, sentencia Leandro Jerusalinsky, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Foi no Macacos Urbanos que ele teve contato com o trabalho que até hoje está envolvido. “A minha dissertação de mestrado, que foi sobre a filogeografia do bugio-ruivo, eu dedico ao grupo. Porque de fato, foi onde eu aprendi abordagens, visões da conservação. Não foi na faculdade, nem no mestrado ou no doutorado, foi com esse grupo”, conta, emocionado, sobre o tempo que atuou junto ao programa.
Jerusalinsky atualmente ocupa a vice-presidência do Primate Specialist Group (Grupo Especialista em Primatas) da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, em Inglês). Ele destaca alguns aspectos que tornam o Macacos Urbanos tão peculiar e relevante, entre eles a valorização dos processos participativos e a colaboração. “Quando a gente chegava nos congressos, 25, 30 anos atrás, nos perguntavam quem era o coordenador. Daí respondíamos que nosso arranjo era diferente. Cada um aqui tem um orientador”, recorda o biólogo, que entrou no grupo para pesquisar genética dos bugios e acabou assumindo outras frentes. Ele avalia que hoje é mais comum se encontrar essa forma de organização. Naquele momento, o modo colaborativo de atuação era algo muito inovador.
Para ele, o Macacos Urbanos promoveu um expressivo impacto local. “Acho que o Macacos Urbanos teve uma função fantástica de fazer com que Porto Alegre conhecesse um pouco mais sobre a sua biodiversidade, além de saber que tinha um macaco grande, como aquele, em alguns remanescentes de floresta que a cidade desconhecia, ainda desconhece muito”, diz.
Jerusalinsky comenta que através de estudos do PMU foi possível ter argumentos para influenciar e direcionar políticas públicas pela conservação. “Nós participávamos do Orçamento Participativo, propúnhamos legislação municipal,” acrescenta. Para ele, um dos pontos fundamentais foram as trocas e o jeito do grupo se relacionar. Cada um tinha autonomia, as relações eram horizontais, simétricas. O representante da IUCN acredita que o estilo do Macacos Urbanos inspirou outros grupos pelo Brasil afora a funcionar desse jeito.
Programa nasceu em julho de 1993
Gerson Buss, um dos criadores do Macacos Urbanos e um dos pioneiros na pesquisa de primatas no Rio Grande do Sul, diz que a atuação do grupo é uma referência na área de primatologia no Brasil. Ele também é analista ambiental do ICMBio e está lotado no Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB) em Cabedelo, Paraíba.
Depois de ter passado um ano trabalhando em organizações não governamentais ambientalistas na Alemanha, Buss foi provocado por alguns amigos, entre eles o professor de Botânica da UFRGS, Paulo Brack. Por quê não fazer algo para compreender melhor a ocorrência dos bugios por aqui? Em julho de 1993 foi realizada a primeira reunião do Macacos Urbanos. Aliás, foram os integrantes do PMU que criaram o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), onde hoje Brack tem praticado seu ativismo.
Naquele tempo, Buss tinha tido a experiência de ter pesquisado bugios-ruivos em Itapuã, Viamão. Além disso, foi um dos fundadores da Comissão de Luta pela Efetivação do Parque Estadual de Itapuã (Clepei), onde participou de várias ações com outros estudantes das ciências ambientais. E o modus operandi das reuniões periódicas, com rodas de conversa e ações práticas, se estabeleceu como um terreno fértil para se planejar e executar projetos.
Assim como Buss, todos os ouvidos pela reportagem citaram o quanto o apoio da professora Helena Romanowski, do Departamento de Zoologia da UFRGS, foi determinante para o sucesso do movimento. Ela aceitou acolher os estudantes no Laboratório de Ecologia de Insetos, que coordenava na época. Com o amadurecimento do grupo, também veio a parceria com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Porto Alegre, que viabilizou o transporte para que os pesquisadores fossem a campo. Naquele tempo, não se tinha ideia do tamanho da população de bugios. E, à medida em que se obtinha mais informações sobre o comportamento e a ocorrência da espécie, atividades de educação ambiental eram realizadas, a comunidade se sensibilizava e os trabalhos se destacavam em congressos e outros eventos.
Em 2005, o PMU iniciou o projeto de extensão “O bugio-ruivo como espécie-bandeira para ações de Educação Ambiental” em escolas da capital. O envolvimento da comunidade escolar desde antes dessa iniciativa já era intenso. Atualmente, os pesquisadores desconfiam que o aumento no número de notificações ocorre porque os moradores estão muito mais antenados do que quando o monitoramento começou, em 1999.
Márcia Jardim, pesquisadora do Museu de Ciências Naturais da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura e integrante do PMU desde os primórdios, diz que na fase atual do programa tanto a prefeitura de Porto Alegre como o governo do estado atuam como parceiros. Márcia é professora do mestrado em Sistemática e Conservação da Diversidade Biológica da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), associado à Sema, onde está em andamento um projeto de mestrado que visa monitorar e testar novos modelos de pontes.
Outro proposta, que está sendo desenvolvida pela bolsista Camila Flores, é um projeto de extensão realizado em parceria com o Grupo Viveiros Comunitarios (GVC) e PMU, sob orientação do Prof. Paulo Brack, que pretende fortalecer corredores ecológicos. “Estamos trabalhando para a realização de plantios de mudas de espécies utilizadas para alimentação dos bugios,” observa Márcia. “Nossa intenção é que esse projeto se expanda para outras áreas prioritárias para corredores ecológicos dos bugios, e que tenha o envolvimento de escolas e da comunidade em geral”.
Trabalho é reconhecido em diversos países
Outro analista ambiental do ICMBio, o biólogo Rodrigo Cambará Printes, se envolveu fortemente, tanto na pesquisa, quanto em ações práticas do PMU. Foi ele o responsável por convidar Jerusalinsky a integrar o PMU. Ele acrescenta a importância da produção do movimento à Ciência. O PMU publicou diversos artigos científicos em periódicos internacionais. Suas pesquisas serviram de referências para trabalhos no México, Paraguai, Argentina, Bangladesh, Costa Rica, Índia, Tailândia, Peru, Quênia, Sri Lanka, África do Sul, Colômbia, entre outros.
Um dos artigos, que trata sobre choque elétrico em fiação, foi mencionado 46 vezes em publicações relacionadas a primatas. Outro, sobre as passarelas aéreas, monitoradas por armadilhas fotográficas, foi citado 99 vezes, acrescenta Cambará, que hoje exerce funções na Floresta Nacional de Canela. São tantos trabalhos que hoje não se sabe exatamente quantos artigos foram assinados com os dados levantados pelo pessoal ligado ao PMU.
Quando diretor da Reserva Biológica do Lami, uma das raras Rebios municipais do País, Cambará promoveu iniciativas envolvendo a comunidade, inclusive coordenou um plano de manejo para a Unidade de Conservação. Em uma dessas atividades, em um mutirão de limpeza nas margens do Guaíba, ele conheceu Cláudio Godoy, atualmente um dos voluntários mais dedicados do PMU. “O Godoy é uma referência, é o cara do Lami, ele estudou por conta, se inspirou nas histórias, na luta do Macacos Urbanos,” salienta Cambará.
Godoy em ação
Por ser conhecedor da região, Godoy se dedica a um dos trabalhos mais difíceis há mais de 20 anos. É ele quem é procurado por pessoas da comunidade quando um bugio é localizado ferido ou morto. Ele sobe as escadas, se mete no mato, pega os animais e ainda os leva com sua própria moto para os locais que atendem esse tipo de ocorrência. “Fico muito chateado de ver os bichos morrerem e ninguém fazer nada. Então levo eles de moto, pago a minha gasolina. Vou até onde precisar para salvar uma vida”. Para se ter uma ideia, Godoy percorre cerca de 45 km com um ferido em uma gaiola do Lami, no extremo Sul de Porto Alegre, até a Clínica Toca dos Bichos, na zona Norte.
Godoy também foi um dos criadores do modelo hoje adotado para as passarelas de travessia de fauna. Devido ao contato com os pesquisadores, voltou a estudar e terminou o curso de técnico ambiental. Ele ganha a vida como condutor de trilhas no Parque Estadual de Itapuã, trabalha com jardinagem e é contratado para fazer passagens de bugios a pedido de proprietários da região.
Reabilitação das vítimas depende de voluntários
Toda a cadeia – da observação, da captura ao atendimento médico-veterinário, até a soltura dos indivíduos recuperados – envolve voluntários. A Clínica Toca dos Bichos, por exemplo, acolhe, trata e mantém vários bugios que estão feridos. A veterinária Gleide Marsicano tem uma dedicação especial aos filhotes órfãos de bugio. Quando se aproxima do recinto com os pequenos bugios – alguns ficam até quatro anos com ela – eles pulam para seu colo. Ela esclarece que isso não é bom, pois para poderem ser soltos, ter autonomia, os animais precisam “odiar, querer distância dos seres humanos”.
Boa parte das vezes, ela tira dinheiro do próprio bolso para cuidar dos bichos. Com frequência, é necessário fazer cirurgias e usar medicamentos. Gleide conta que recebe poucas doações, mas que uma pessoa, da qual não conhece, deposita todo mês mil reais para a reabilitação dos animais. Ela acaba recebendo outros bichos – pássaros, tartarugas e até uma mão-pelada cega que está com ela há 9 anos – apesar do exíguo espaço que comporta junto a sua residência. Criou a ONG Voluntários da Fauna, onde vende ecobags, chaveiros, botons, entre outros produtos, para incrementar a arrecadação.
O Hospital de Clínicas Veterinárias da UFRGS dispõe do Preservas, que recebe animais silvestres de vários cantos do Rio Grande do Sul. E bugios, é claro. Há pouco espaço para tantos animais. Quando a reportagem do ECO esteve no local, havia três filhotes de bugios no recinto da área externa, um adulto separado dos demais e quatro em tratamento na internação.
O setor, coordenado pelo professor Marcelo Alievi, é conduzido pelas veterinárias residentes da universidade Jacqueline Meyer e Paola Antunes Rodrigues. Elas contam que, apesar do apoio estrutural e material fornecido pelo hospital, muitas vezes, precisam comprar com ajuda do professor, a alimentação para os filhotes, composta por frutas, folhas e legumes.
Dois filhotes tomam leite de cabra e NAN ou Aptamil. E isso é agilizado por elas para tratar os animais. Fazem estágio no setor 20 estudantes, que se dividem no atendimento. Em 2023, o Preservas atendeu 942 bichos, de diversas espécies. Até o dia que a reportagem esteve no local, tinham sido acolhidos 160 animais. Segundo Jacqueline, isso é resultado do crescente processo de urbanização das áreas de ambiente natural. A fauna sofre com a invasão de seu habitat. Acaba sendo atropelada, eletrocutada ou atacada por cães.
Macacos Urbanos terá aplicativo para localização de animais
Até o final do primeiro semestre deste ano, deverá estar disponível o aplicativo Olha o Macaco, viabilizado pela bolsista de iniciação científica Danielle Backes Baccon e seu noivo, João Vítor Vanazzi. “Sempre foi um sonho do PMU ter um APP ou alguma ferramenta que facilitasse o recebimento e registro de informações envolvendo acidentes e avistamentos de bugios na região de Porto Alegre e Viamão. Então, nos colocamos à disposição para criar e desenvolver o aplicativo para o PMU de forma totalmente voluntária”, adianta a bióloga. A pesquisadora Márcia Jardim acredita que o APP vai facilitar a comunicação entre os envolvidos na proteção dos bugios e ainda fortalecer o vínculo que já tem com a comunidade.
As informações serão consolidadas em um banco de dados, que possibilitará a comunicação direta entre a comunidade e/ou órgão de resgate de fauna com o PMU. O APP terá um formulário interativo para submissão de incidentes/mortes/avistamentos de primatas, não só de bugios-ruivos no território gaúcho. O comunicante poderá adicionar dados como fotos, descrição do ocorrido, coordenadas geográficas. A intenção também é acionar órgãos oficiais de resgate de fauna, o que hoje é feito, na prática, pelo voluntário Godoy. Todos os registros serão avaliados pela equipe do PMU e incluídos no sistema de informações, que já tem sido alimentado desde 2018.
Manter o grupo motivado é um dos desafios
Entre os desafios do PMU, a bióloga Márcia cita a dificuldade hoje de os integrantes sentirem-se motivados diante das dificuldades enfrentadas. De se manter a esperança, apesar de tudo.
Ela relata que acompanhar a morte de animais que eram monitorados é algo duro para os pesquisadores. “A gente vive essa situação dos casos dos animais acidentados muito de perto. Observamos, conhecemos os bichos, daqui a pouco ocorre um acidente, um morre. Isso acaba mexendo muito com o emocional de todo mundo”, revela. Para Márcia, é necessário manter a esperança viva entre todos os envolvidos.
“A gente precisa enxergar o nosso papel a longo prazo, é preciso seguir adiante, levar nossa mensagem para um maior número de pessoas e seguir trabalhando na conservação. É necessário saber lidar com os percalços do dia a dia, porque tem muito trabalho a ser feito e a gente precisa ajudar esses animais”, resume a pesquisadora.
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