Há quase dois estádios do Maracanã (RJ) lotados, ou 131,5 mil pessoas, vivendo em parques nacionais (Parnas) e outras unidades de conservação de proteção integral, cuja função central definida em lei é manter a biodiversidade. O número é similar à população de uma cidade de médio porte no Brasil.
O levantamento é baseado no censo de 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento e Orçamento e responsável por coletar, analisar, produzir e divulgar dados sobre o país.
“Os números são condizentes com o que dispomos para diversas UCs [unidades de conservação]”, avaliou o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), a quem cabe gerenciar e proteger as unidades de conservação federais.
Contudo, a moradia de pessoas em áreas de conservação estrita preocupa especialistas como Reuber Brandão, doutor pela Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Laboratório de Fauna e Unidades de Conservação (LAFUC).
“Muitas vezes, isso tem um verniz de sustentabilidade, mas serve a interesses sociais e políticos imediatos, sem considerar os danos ambientais futuros”, afirmou. “É um antropocentrismo fantasiado de justiça social”.
Segundo o cientista, a presença humana constante pode gerar impactos como mais incêndios, caça e afugentamento de espécies – até das ameaçadas – e fragmentar os habitats naturais. “Isso tudo compromete os objetivos das unidades de conservação”.
Ao mesmo tempo, Brandão reconheceu que muitas áreas já tinham moradores quando foram decretadas. Para ele, isso revela falhas no processo de criação das UCs, mas também a inexistência de uma política clara para lidar com esses passivos.
“Permitir a presença permanente em UCs de Proteção Integral é prejudicial tanto para o meio ambiente quanto para as pessoas”, disse. “Isso é uma crise das políticas ambientais, não um exemplo de convivência bem-sucedida”, destacou o pesquisador e colunista de ((o))eco.
Isso igualmente agrava a crise global da biodiversidade, alerta Brandão. Afinal, ações humanas como desmate e caça estão entre as principais causas da extinção mundial de espécies. Quando predadores somem e os habitats se fragmentam, os ecossistemas perdem equilíbrio e ficam mais frágeis.

Difícil regularização
Os parnas do Monte Pascoal (BA), Lençois Maranhenses (MA) e Pico da Neblina (AM) têm, respectivamente, 4,7 mil, 3,7 mil e 2,25 mil pessoas. Neles, há impasses como a sobreposição com terras indígenas, garimpo e turismo desordenado. Segundo o ICMBio, esses fatores tornam a gestão mais complexa, pedem ações integradas e diálogo com as comunidades.
De acordo com a autarquia, 34 termos de compromisso já foram firmados para que populações tradicionais e indígenas permaneçam em unidades de conservação. Os acordos possibilitam adequações sustentáveis e parcerias para conservação e monitoramento.
“Não existem acordos de acomodação permanente de pessoas, e sim acordos com comunidades tradicionais, reconhecendo-se direitos”, avaliou.
Outros acordos podem ser firmados até o fim de 2026, com indígenas, nos parnas de Guaricana (PR) e da Serra do Itajaí (SC), ambos na Mata Atlântica. Uma demanda sobre parte da Floresta Nacional de Três Barras (SC) é contestada judicialmente pelo ICMBio.
Consultado pela reportagem, o ICMBio reconheceu que o número e as atividades de moradores e ocupantes são grandes desafios para regularizar as unidades de conservação. “A principal atividade econômica na Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, é a criação de gado”, recordou Reuber Brandão (UnB).
Outro exemplo é a Reserva Biológica da Serra do Cachimbo (PA), alvo de crimes como grilagem e criação de gado. “Em contrapartida, propriedades de boa-fé vêm sendo indenizadas, permitindo ações de conservação, como restauração, controle de espécies exóticas e uso público”, destacou o órgão ambiental.
O ICMBio detalhou que o parna do Itatiaia segue adquirindo pequenas propriedades, o que permitiria avanços no uso público. Já em áreas invadidas, como a Reserva Biológica da Serra do Cachimbo e o Parna do Jamanxim, o foco é a desintrusão. “Isso exige integração entre regularização fundiária e fiscalização”, afirmou.
Segundo o órgão, a maioria das UCs não tem ocupação humana e, onde há, são de pequenas áreas. Reservas extrativistas costumariam estabelecer zonas de conservação comunitárias, associando saber tradicional e proteção ambiental. “Pesquisadores precisam reconhecer e valorizar mais essas práticas”, completou.
“Casos como da Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins e da Reserva Biológica do Lago Piratuba mostram avanços significativos. Onde há acordo, há também melhorias claras na gestão e na conservação”, afirmou o ICMBio.
Questionado sobre como a presença humana afeta áreas de proteção integral, o ICMBio disse apenas que resultados do programa Monitora ajudam a compreender tais impactos. “No componente florestal, já são monitoradas 57 unidades em cinco categorias. Isso permite análises objetivas sobre a efetividade da conservação”. O sistema nacional tem 3.185 unidades de conservação, cobrindo quase 19% do território e 26% da zona marinha. Do total, sem contar as reservas privadas (RPPNs), 340 dessas áreas são gerenciadas pelo ICMBio, mostra um painel federal.

Ordenamento falido
O balanço do IBGE apontou que as 131,5 mil pessoas em unidades de proteção integral são uma fração das 11,8 milhões de pessoas em todas as categorias dessas áreas protegidas. A grande maioria (97,1%) está em Áreas de Proteção Ambiental – as menos restritivas à presença humana.
As APAs são fartamente delimitadas no país todo e, no escrito da lei, deveriam ajudar a manter animais e plantas nativos e, sobretudo, promover uma ocupação menos danosa dos territórios. Nada mais distante da realidade, aponta o pesquisador Reuber Brandão (UnB).
Segundo ele, além de serem atropeladas pelo crescimento da população e pela especulação imobiliária, as APAs podem sufocar instituições públicas com demandas fora de suas atribuições naturais.
“Órgãos ambientais são frequentemente sobrecarregados com responsabilidades que deveriam ser dos governos estaduais ou municipais, como a de zelar pelo bom ordenamento territorial”, destacou.
Um mau exemplo é o da APA do Planalto Central, decretada em janeiro de 2002 para segurar a ocupação desordenada de 70% do Distrito Federal e parcelo do estado de Goiás, somando 504 mil ha. Ela já perdeu cerca da metade da vegetação nativa. “Ninguém a respeita”, concluiu Brandão.
Conforme o pesquisador, os planos regionais de ordenamento territorial não se acanham de avançar sobre nascentes e áreas preservadas, arriscando pesquisas, espécies animais e de plantas, gerando conflitos entre conservação, urbanização e agro. “O meio ambiente é sempre o problema que se vê depois”, resumiu.
De acordo com o ICMBio, a APA do Planalto Central é a mais populosa do país – com 602 mil pessoas – e sofre forte urbanização. Ao mesmo tempo, abriga áreas rurais, biodiversidade e fontes de água do Cerrado. “Sua existência ajuda a aliviar a pressão sobre unidades de conservação mais restritivas da região”, afirmou.
O órgão ambiental garantiu que as 37 APAs federais contribuem para ordenar o uso do solo, conservação e articulação entre governos e população. Ainda assim, seriam pouco valorizadas. “Elas conectam ecossistemas e territórios, viabilizam ações como restauração ecológica e fortalecimento de comunidades tradicionais”, disse.

Estruturação atrativa
O balanço do IBGE aponta que São Paulo, Maranhão, Bahia e Distrito Federal têm o maior número de moradores em unidades de conservação. A maioria dessas pessoas vive em áreas com gestão estadual (66%), seguidas pela federal (21%) e municipal (11%).
Também foi revelado o perfil dessas populações. Elas são majoritariamente pardas (51%), depois brancas (36%), pretas (12%), quilombolas (2,4%) e indígenas (1,1%). Ao mesmo tempo, 40% das casas não têm água encanada, tratamento de esgotos e coleta de lixo. O índice é bem acima da média nacional, de 27%.
“Além de ameaçar a conservação da biodiversidade, isso gera mais responsabilidades e problemas dentro das UCs que não são de responsabilidade dos órgãos ambientais”, constatou Reuber Brandão (UnB).
O pesquisador alertou que expandir a infraestrutura pode atrair mais pessoas para dentro das áreas protegidas. “Isso tem que ser avaliado com muito cuidado”, pediu.
Segundo ele, usar unidades de conservação para resolver demandas de povos indígenas e tradicionais é um risco, pois a biodiversidade é sempre prejudicada.
“Os bichos não votam, não participam de reunião e de abaixo-assinados. Além disso, habitam os ambientes naturais muito antes de qualquer população humana. Podemos ter prejuízos coletivos enormes para atender demandas mascaradas de justiça social”, reclamou.
De acordo com o ICMBio, o saneamento precário é um problema ainda mais grave em áreas rurais, de difícil acesso e baixa densidade populacional, onde estão muitas unidades de conservação.
“A melhoria sanitária depende sobretudo de estados e municípios, com apoio federal”, lembrou. “Populações indígenas em UCs são atendidas por órgãos específicos, como a SESAI [Secretaria de Saúde Indígena, ligada ao Ministério da Saúde]”.
Diante disso tudo, fica claro que a convivência entre conservação e presença humana exige decisões baseadas em ciência, diálogo e responsabilidade política. Enquanto tal equação não for resolvida, as unidades de conservação e as populações indígenas e tradicionais seguirão pressionadas.
Confira aqui a íntegra da resposta do ICMBio.
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