Em outubro de 2020, o governo federal, através do ICMBio, despejou retardantes químicos para combater os incêndios na Chapada dos Veadeiros. O episódio, que teve chancela e participação do então ministro, Ricardo Salles, gerou polêmica, uma vez que tais produtos químicos são questionados em parecer técnico do Ibama, de 2018, pela sua potencial e pouco conhecida toxicidade ao ambiente natural. Na época, a repercussão negativa em cima do uso dos retardantes fez o governo desistir de uma compra emergencial, sem licitação, de 20 mil litros do produto, que custariam R$680 mil. Neste mês, entretanto, os retardantes voltaram à lista de compras do governo, com uma licitação do Ibama para compra de 10 mil litros, o que deve custar cerca de meio milhão de reais aos cofres públicos. O resultado do pregão será divulgado na próxima quarta-feira (30).
O edital foi lançado no dia 18 de junho para “a escolha da proposta mais vantajosa para contratação de empresa fornecedora de retardantes químicos para apoio à prevenção e combate aos incêndios florestais (PCIF)”. O contrato terá duração de 12 meses e um valor total estimado em R$525.500,00.
De acordo com as especificações técnicas anexas ao edital, o produto retardante de chama precisa ser à base de nitrogênio e pertencer à categoria de longa duração, “devido a possibilidade de uso no combate direto (seja aéreo ou terrestre) quanto no indireto (confecção de aceiro químico)”. As especificações batem com as características do Fire Limit FL-02, que foi o produto usado em 2020 na Chapada dos Veadeiros (e que tentou-se comprar sem licitação), patenteado pela empresa espanhola Rio Sagrado S. L.
O parecer técnico n.º 514/2018, elaborado pela Diretoria de Qualidade Ambiental (DIQUA) do Ibama, avaliou de forma preliminar cinco retardantes químicos, entre eles o Fire Limit FL-02, que seria de baixa toxicidade e periculosidade ambiental, conforme informações disponibilizadas pela própria empresa espanhola que o fabrica. O texto do Ibama alerta, entretanto, para a necessidade de comprovação deste caráter pouco nocivo do produto, devido a falta de estudos sobre os reais efeitos do produto no meio ambiente, sua ecotoxicidade e sobre os possíveis impactos da utilização repetida deste produto, tanto em ecossistemas terrestres quanto aquáticos. Além disso, o parecer ressalta a inexistência de uma regulamentação no Brasil para o uso de retardantes em incêndios florestais.
“O fato de não terem sido encontrados estudos com retardantes de chama nitrogenados não implica que não apresentem riscos ecotoxicológicos. Por serem formulações mais novas talvez ainda não tenha havido tempo suficiente para avaliação dos impactos ambientais dessas substâncias”, conclui o parecer técnico de 2018 do Ibama. O texto recomenda ainda que mesmo o uso de retardantes nitrogenados, que em tese teriam baixa toxicidade, deve ser apenas um último recurso, quando outros meios de combate a incêndios forem ineficientes, e priorizado em aceiros, como estratégia preventiva, “de forma a evitar o uso excessivo de produtos químicos principalmente em áreas de proteção ambiental”.
“Uma coisa é toxicidade, outra coisa é alteração bioquímica desses ambientes. Qualquer utilização em unidade de conservação e área protegida é um risco, porque qualquer interferência química tem os seus efeitos. As substâncias podem não ser tóxicas, mas elas vão trazer impactos. Que impactos? Ainda não sabemos direito, porque não existem linhas de pesquisa de longo prazo sobre isso no Brasil”, alerta um servidor ambiental em conversa com ((o))eco. A identidade do servidor será mantida em sigilo, pois desde 2020 eles são proibidos de dar entrevistas sem expressa autorização do Ministério do Meio Ambiente. “Há compostos e compostos. O problema não é o nitrogênio, é o fósforo, porque ele pode propiciar o aumento de espécies invasoras”, completa.
Atualmente, o projeto Prometeu, conduzido pela Universidade de Brasília (UnB) junto ao Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (PrevFogo/Ibama) e ao Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal, é a única frente de pesquisa para entender melhor os impactos de retardantes químicos de chamas em relação ao combate convencional.
Além da dimensão desconhecida dos impactos destes produtos em áreas naturais, servidores ouvidos por ((o))eco questionam a real eficácia do edital e da compra dos 10 mil litros no combate aos incêndios florestais no Brasil.
“10 mil litros não servem para nada”, aponta um servidor. “É muito mais pela imagem, para tentar mostrar que o governo está fazendo alguma coisa. É uma ferramenta, sim, de combate a incêndio, mas o problema é que está sendo atravessada e imposta, para servir de vitrine, quando na verdade ela deve ser a última ação de combate. O que a gente precisa fazer é prevenir os incêndios, ter mais investimento em prevenção e menos combate”, acrescenta.
Uma outra fonte ouvida por ((o))eco, também servidor ambiental, reforça: “essa é uma quantidade ínfima. Digamos que 10.000 litros do produto dê para 1 ou 2 dias de operação. É pouco. Não apaga fogo, como alegam”.
A operação com retardantes na Chapada dos Veadeiros em outubro de 2020 utilizou cerca de 1.000 litros do produto.
((o))eco entrou em contato com a assessoria de imprensa do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente para tentar obter esclarecimentos sobre o edital e sobre a justificativa técnica por detrás da compra, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
Licitação contraria TCU
Em novembro de 2020, em plenária, o Tribunal de Contas da União (TCU) editou um acórdão (nº 2944/2020) sobre o uso de retardantes químicos no combate aos incêndios florestais, no qual determina a necessidade de “deixar de adquirir ou utilizar retardantes no combate a incêndios florestais sem a observância de todas as condicionantes recomendadas no Parecer Técnico n.º 514/2018” e “sem o esclarecimento sobre as consequências práticas do uso desses retardantes em desfavor do meio ambiente e da saúde pública”. O acórdão resolve ainda que é necessário “a despeito da falta de aprovação do correspondente projeto de lei, promover a eventual edição de atos normativos tendentes a tecnicamente regulamentar ou orientar o emprego de retardantes químicos de queimadas, entre outros produtos correlatos, ante a atual ausência dessa regulamentação para o uso desses produtos no País”.
A determinação do TCU inclui também a necessidade de, em sintonia com os princípios ambientais da precaução, informação e notificação, promover o monitoramento e medição do atual uso desses produtos e recomenda a suspensão do consumo de água, pesca, caça, frutas e vegetais na respectiva região pelo prazo de quarenta dias.
Em fevereiro deste ano, o Ibama emitiu uma série de novos pareceres sobre o tema, que incluíram: “Diretrizes gerais para o monitoramento de retardantes químicos utilizados no combate a incêndios florestais”, “Sugestão de critérios de avaliação ambiental, no âmbito da Qualidade Ambiental, para aquisição de Retardantes de Chamas” e, por fim, as “Orientações no âmbito da qualidade ambiental para o uso emergencial de retardantes de chama”.
Neste último (Parecer Técnico nº 521/2020-COASP/CGASQ/DIQUA), o texto avisa que foi encaminhada proposta de documento orientativo com o objetivo de nortear, no que cabe à qualidade ambiental, o uso de produto retardante de chama no âmbito das atividades do Ibama, em cumprimento à demanda do TCU. Todavia, tais dispositivos não são considerados atos normativos e não há nenhuma publicação no Diário Oficial da União que aponte a existência de tal norma. Infelizmente, a assessoria de comunicação do Ibama tampouco retornou nosso pedido de esclarecimento onde perguntamos sobre o embasamento da licitação.
((o))eco também enviou um e-mail à assessoria do Tribunal de Contas da União, para saber se o TCU estava ciente da licitação em curso no Ibama para compra dos retardantes, em resposta o TCU informou que “até o momento, não há processo autuado sobre essa licitação em específico” e cita o processo 036.034/2020-1, em andamento para apurar a notícia de que o Ibama está adquirindo em regime emergencial 20 mil litros de retardantes químico de queimadas “que não possui regulamentação de uso no Brasil e que expõe a sérios riscos o meio ambiente e a saúde das pessoas” para aplicação no Pantanal.
Entre as orientações do parecer de 2021 do Ibama está que seja priorizada a aplicação terrestre, para que possa ocorrer de forma mais direcionada ao fogo. E que, no caso de aplicações aéreas, sejam evitados locais com presença de nascentes, cursos d’água em geral e de populações humanas; e que seja feito um voo de reconhecimento antes da primeira aplicação. O texto também indica a realização do georreferenciamento de todos os locais onde o retardante de chama for aplicado e de um monitoramento durante 3 meses da área, para identificar possíveis mudanças; e faz a ressalva de que, caso o produto químico atinja um corpo hídrico, seja interrompida a captação de água para consumo humano ou animal.
“Ele [o retardante] pode ser efetivo, mas a um custo muito alto e desde que aplicado seguindo protocolos. Não temos nem grana, nem protocolos”, resume um dos servidores ambientais ouvidos por ((o))eco.
A avaliação realizada pelo Ibama, em 2018, foi motivada pela intenção do Prevfogo em comprar retardantes de chama para o combate a incêndios florestais, entretanto, a aquisição dos produtos não foi adiante à época. Na verdade, desconsiderada a tentativa do governo federal de comprá-lo de forma emergencial em outubro de 2020, este é o primeiro edital lançado para adquirir o produto químico. Em ocasiões pontuais no passado, como no grande incêndio que atingiu a Chapada Diamantina, em 2008, houve uso de retardantes no combate às chamas, mas o produto era sempre oriundo de doações de empresas.
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