Responsável pela gestão das reservas ecológicas federais, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) autorizou o licenciamento de monoculturas de grãos num latifúndio entre os parques nacionais das serras da Capivara e das Confusões, no Piauí. A medida ignora pareceres contrários da própria autarquia e da sociedade civil.
Uma autorização assinada no fim de outubro pelo presidente do ICMBio, o policial militar Marcos Simanovic, dá sinal verde para que a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (Semar/PI) licencie ao menos 6 mil hectares com soja e milho entre os dois parques nacionais na Caatinga. O bioma é exclusivo do Brasil.
Por outro lado, uma análise técnica do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP), do próprio ICMBio, recomendou em fevereiro que a autarquia não autorizasse a licença pela “incompatibilidade do empreendimento” com a preservação dos parques nacionais e sobretudo de animais que podem ser extintos, como a onça-pintada.
A região abriga uma das últimas populações do grande felino na Caatinga, além de outras espécies raras, como tatus canastra e bola, tamanduá-bandeira, gato-maracajá e araponga-de-barbela.
A gleba das lavouras está a 110 metros do Parque da Serra da Capivara e sobre um corredor ecológico definido em 2005 entre as duas reservas federais. Conforme o CENAP, atividades ligadas aos plantios serão fontes de desmate e fragmentação da vegetação, caça e atropelamentos, incêndios, poluição sonora e outras pressões.
“O empreendimento proposto conflita diretamente com os objetivos de conservação almejados por implicar em perda e degradação de habitat, com efeitos sobre os grandes felinos e suas presas, (…) com implicações diretas e indiretas que contribuirão com a extinção local da espécie [onça-pintada]”, destaca o parecer do CENAP.
Administradora do Parque da Serra da Capivara, a Fundação Museu do Homem Americano (FUNDHAM) recomendou em janeiro igualmente uma negativa do ICMBio às lavouras. Em sua análise, lembrou que metade do verde do bioma já foi eliminada ou degradada, que os parques compõem a Reserva da Biosfera da Caatinga e que as monoculturas arriscam o patrimônio cultural e histórico do país.
O território das serras da Capivara e das Confusões abriga um dos acervos arqueológicos mais importantes do Brasil e do globo, com inúmeras pinturas, objetos e outros registros de humanos ancestrais. Conforme a Fundação, mais de cem sítios estão em áreas sob influência dos cultivos autorizados pelo ICMBio.
“O manejo da terra e das lavouras ameaçam o acervo com poeira e outras substâncias, alterações na temperatura e incêndios. Se as chamas chegarem aos paredões de pedra, acabarão com inúmeros desenhos”, destaca Marcia Chame, diretora científica da FUNDHAM e doutora em Biologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A pesquisadora alerta que os cultivos usarão muita água subterrânea para irrigação numa região já carente de recursos hídricos, e que os agrotóxicos usados podem contaminar espécies e áreas preservadas, dentro e fora dos parques. Uma usina solar deve ser construída no mesmo local para alimentar as bombas de irrigação.
“A vocação regional não é essa, é a produção rural familiar, a pesquisa, o turismo e outras atividades que podem ser exemplo para o desenvolvimento sustentável da Caatinga. A produção de mel regional rende muito mais do que o valor da soja, mas pode ser contaminada por químicos usados nas monoculturas”, ressaltou Marcia Chame.
A Assessoria de Imprensa da Semar/PI informou que a licença das lavouras depende de análises técnicas e de uma audiência pública prevista para o fim de novembro. “Em seguida, será emitido um novo parecer”, disse via WhatsApp. Também comentou que “de acordo com o que consta atualmente no estudo, não há previsão de desmatamento na área do corredor ecológico”.
A autorização do ICMBio para os plantios sugere que o projeto evite erosões, recupere áreas degradadas, resgate e preserve espécies silvestres – inclusive da caça e do tráfico -, contenha incêndios e a entrada de animais domésticos nas reservas, bem como monitore a qualidade das águas. O órgão não atendeu aos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem.
“No geral, o ICMBio está apenas apontando questões para o monitoramento de impactos, mas, uma vez ocorridos, não terá como reparar ou restaurar os patrimônios arqueológico e natural da região”, frisou a diretora científica da FUNDHAM.
O licenciamento das lavouras com aval dos órgãos federal e estadual beneficiará a Apesa Agropastoril Piauiense. Criada nos anos 1970, a empresa e seus sócios atuam da mesma maneira com atividades como transportes, produção de gesso e calcário nos estados do Piauí, Maranhão e Pernambuco.
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