Reportagens

Incêndios e tráfico ameaçam papagaios-verdadeiros no Mato Grosso do Sul

Conservacionista denuncia situação crítica das populações de Amazona aestiva no MS, com perda de ninhos artificiais e naturais, mortes por queima ou intoxicação e tráfico de filhotes

Carolina Lisboa ·
8 de outubro de 2024

Uma das aves mais brasileiras, o conhecido e carismático papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva), vem sofrendo com as queimadas que assolam o país. No Mato Grosso do Sul (MS), estado que vem passando pela pior estiagem da sua história, conservacionistas alertam sobre o estado crítico da espécie. 

“Muitos ninhos e filhotes foram perdidos diretamente pelo fogo ou por intoxicação por fumaça. As perdas são incalculáveis e a recuperação será lenta e gradual. Em algumas regiões no Pantanal do MS os papagaios-verdadeiros não se reproduziram este ano devido ao estresse do incêndio florestal”, lamenta a Dra. Gláucia Helena Fernandes Seixas, zootecnista e coordenadora do Projeto Papagaio-Verdadeiro, da Fundação Neotrópica do Brasil, que há 28 anos desenvolve ações para a conservação da espécie.

Além da grande proporção dos incêndios, que aconteceram justamente durante o período reprodutivo dos papagaios nos três biomas incidentes do estado — Pantanal, Cerrado e Mata Atlântica —, há ainda um intenso tráfico de filhotes e ovos, para piorar a já crítica situação local da espécie.

Incêndios florestais

No sul do MS e na região da divisa dos estados de São Paulo e Paraná, além dos ninhos naturais, os artificiais colocados para auxiliar na reprodução da espécie também foram afetados pelo fogo. “Perdemos os ninhos e a possibilidade de os papagaios reproduzirem, pois estávamos ajudando-os a reproduzir numa área onde não há cavidades”, explica Gláucia Seixas. 

Os ninhos que resistiram à chamas estão sendo monitorados, e os filhotes encontrados com vida foram submetidos à inalação, na tentativa de evitar intoxicação por fumaça e infecções respiratórias. “É difícil dizer quantos ninhos foram perdidos numa área tão extensa, mas podemos falar que essa perda demora para ser revertida”, lamenta a zootecnista. 

Um dos ninhos artificiais utilizados pelos papagaios foi queimado durante um dos incêndios em Mato Grosso do Sul. Foto: Fundação Neotrópica do Brasil

A preocupação dos conservacionistas é ainda maior porque os papagaios-verdadeiros estão em plena temporada de reprodução, que ocorre entre agosto e novembro, e os incêndios são uma ameaça a mais. “Mesmo que instalemos mais ninhos artificiais esse ano, eles só irão reproduzir anos que vem. Este ano a reprodução deles foi baixíssima e, certamente, altamente impactada pelos incêndios florestais”, observou.

Dados do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), indicam o MS como um dos estados com mais aumento consistente nos focos de incêndios em 2024: 541% de aumento e 12.243 focos, com o município de Corumbá respondendo por 4.870 focos, o terceiro com mais focos no país em 2024.

O mesmo Programa já coloca 2024 como um dos anos com maior quantidade de focos de queimada na última década no Brasil, com 217.792 focos registrados. O mês de setembro, pico histórico da temporada de fogo no Brasil, contabilizou mais de 80 mil focos, um aumento de 311% em relação a 2023 e cerca de 30% acima da média histórica, registrada desde 1998 pelo Inpe. Mesmo que a quantidade de focos não extrapole as médias históricas nos últimos três meses do ano, 2024 terá o maior número de focos desde 2010, quando o Brasil teve 319.383 registros.

Tráfico

Como se não bastasse, o papagaio-verdadeiro, que historicamente tem muitas perdas para o tráfico, sendo considerada a espécie mais capturada na natureza para abastecer o comércio ilegal de animais de estimação dentro e fora do Brasil, segundo o Parque das Aves, vem também sendo alvo do tráfico no MS.

“Dentre as 12 espécies do gênero Amazona que ocorrem no Brasil, popularmente conhecidas como ‘papagaios’, o papagaio-verdadeiro sofre a maior pressão de saque de filhotes, atualmente também de ovos, para abastecer o comércio ilegal. Isto se deve à sua fama de ‘melhor falador’ quando comparado aos demais papagaios o que, inclusive, gerou a denominação ‘papagaio-verdadeiro’”, esclareceu Gláucia.

Filhotes de papagaios apreendidos em Mato Grosso do Sul, já no CRAS MS. Foto: Glaucia Seixas

Segundo dados do Centro de Reabilitação de Animais Silvestres  do Instituto do Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (CRAS/IMASUL), somente no MS já foram apreendidos pela fiscalização cerca de 12.500 filhotes nos últimos 36 anos (1988-2024). Esta atividade é ainda mais intensa nos biomas Cerrado e Mata Atlântica de MS, que se concentra nas divisas com São Paulo e Paraná.

“Sabemos que outros milhares de filhotes foram apreendidos fora de MS, mas que são originários de nosso estado. Por estes fatores, associados à dificuldade da fiscalização interceptar todos os filhotes retirados dos ninhos, além dos óbitos que ocorrem nas diferentes fases do tráfico, temos certeza que os números de papagaios-verdadeiros apreendidos representa uma parcela muito pequena do total dos saqueados da natureza”, lamenta Gláucia.

Em 2018, o Projeto Papagaio-Verdadeiro constatou que 85% dos ninhos dessas aves foram violados na região do Vale do Rio Ivinhema, onde há maior ocorrência da espécie no Estado e é também o local preferido dos traficantes, pela proximidade com São Paulo, o principal mercado consumidor.

“Os traficantes arrombam os ninhos e levam os filhotes. Os pais ficam várias semanas vocalizando, indo ao ninho e procurando esses filhotes. Existem propriedades onde levaram os filhotes de todos os ninhos que estávamos monitorando”, relatou.

Também foi detectado pelo Projeto que os traficantes deixam os ninhos em péssimas condições para reutilização nos anos seguintes ou mesmo derrubam as árvores. “Considerando que nascem, em média, dois filhotes por ninho, pode-se dizer que no mínimo 6.250 ninhos, até outros milhares, foram saqueados no Cerrado e Mata Atlântica de MS, com taxas anuais de perdas de ninhos variando de 55% a 85%, de acordo com a região”, relata Gláucia.

A Oscip Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) estima que, no Brasil, cerca de 38 milhões de animais são traficados por ano, movimentando cerca de US$ 1 bilhão ou 15% desse comércio. Apesar de ser uma estimativa de 2001, o Relatório Global sobre a Vida Selvagem e os Crimes Florestais de 2024, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), alerta que o tráfico de vida selvagem não foi substancialmente reduzido no decorrer das duas últimas décadas, com apreensões entre 2015 e 2021 indicando comércio ilegal em 162 países e territórios, afetando cerca de quatro mil espécies de flora e fauna.

Pai e filhote de papagaio-verdadeiro em um dos ninhos artificiais. Foto: Fundação Neotrópica Brasil

Risco de extinção local

Os estudos do Projeto Papagaio-Verdadeiro sugerem que o roubo de filhotes tem se dado a níveis elevados, provavelmente bem acima da taxa de extração máxima que a espécie pode suportar. “Como é uma espécie longeva e socialmente monogâmica, a extração continuada de filhotes de papagaios-verdadeiro é especialmente difícil de ser percebida, até que seja tarde demais”, avalia Gláucia.

Isto ocorre porque os mesmos casais se reproduzem ano após ano, mas a extração dos filhotes inibe o recrutamento de jovens adultos, até que toda a população esteja senescente. Assim, se nada for feito, é possível que as populações de papagaios-verdadeiros do Cerrado e Mata Atlântica de MS em breve sejam bruscamente reduzidas.

Devido às ameaças que vem sofrendo ao longo dos anos, em toda a área de distribuição, dentro e fora do Brasil, a classificação do papagaio-verdadeiro deixou de ser “pouco preocupante” (LC) para ser “quase ameaçada” (NT) na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas de Extinção da IUCN em 2019. Esta classificação é atribuída às espécies que estão próximas ou que apresentam grande probabilidade de chegarem ao status de “ameaçadas de extinção”.

Como ajudar

Gláucia Seixas explica que uma das formas de ajudar é conservar as palmeiras, vivas e mortas, pois é principalmente nelas que os papagaios-verdadeiros fazem seus ninhos. “No Pantanal MS a reprodução foi registrada em 25 espécies vegetais, sendo que as palmeiras representam 21% dos ninhos naturais monitorados. No Cerrado e Mata Atlântica de MS a reprodução foi registrada em seis espécies vegetais, sendo que as palmeiras representam 95% do total de ninhos. Isto se deve à maior disponibilidade das palmeiras bocaiuva ou macaúba (Acrocomia aculeata) e pindó ou jerivá (Syagrus romazoffiana) na região”. 

As doações para o Projeto Papagaio-Verdadeiro também são bem-vindas, visto que, segundo Gláucia, somente o custo de material para produção de um ninho artificial é de cerca de 350 reais, além dos custos para manter e monitorar os ninhos. 

De 2019 a 2024 foram confeccionados cerca de 550 ninhos artificiais, estando 350 destes disponíveis na região e os demais utilizados para reposição dos ninhos danificados. “Em vários momentos registramos os papagaios ocupando os ninhos artificiais em menos de 24 horas após a instalação, confirmando a premente escassez de cavidades na região”, relatou Gláucia.

De acordo com o Projeto, a ocupação dos ninhos artificiais variou de 30% a 40% por papagaios-verdadeiros, de 40% a 45% por outras 14 espécies de aves e 4% a 5% por duas espécies de mamíferos. “A ocupação por outras espécies de aves confirma que a falta de cavidades é uma limitação para todas as espécies que reproduzem em ocos de árvores. Assim, o Projeto cumpre um importante papel para a manutenção das populações da biodiversidade local”, avalia. 

O Projeto conta ainda com a campanha “Adote um Ninho e Seja Amigo do Louro”, que tem como meta a confecção e instalação 200 ninhos artificiais por ano. Para mais informações, entre em contato com a equipe do Projeto via Whatsapp (67) 99252-8866 ou siga as redes sociais do projeto @projetopapagaioverdadeiro.

  • Carolina Lisboa

    Jornalista, bióloga e doutora em Ecologia pela UFRN. Repórter com interesse na cobertura e divulgação científica sobre meio ambiente.

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