Sancionada esta semana, uma lei do Mato Grosso do Sul barra ações humanas que mudem o sobe e desce natural das águas do Pantanal. A normativa arrancou aplausos de ambientalistas a ruralistas e pode embasar uma norma federal para o bioma, já em 2024.
A legislação publicada na terça (19) proíbe drenos, barragens e outras obras que interfiram na quantidade e na distribuição de água no bioma. Ficam liberadas ações com baixo impacto de utilidade pública ou interesse social.
A regra já valia no manual de licenciamento, diz o secretário de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação, Artur Falcette, mas era preciso reforçá-la. “Foi emblemático trazer isso num artigo da legislação”, afirma.
Na prática, a lei estadual pode influenciar projetos como o da hidrovia Paraguai-Paraná, implantada com investimentos e licenciamentos pulverizados do Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai, mostrou ((o))eco.
Em novembro, mais de 40 cientistas alertaram que possíveis obras ligadas à mega empreitada multinacional, como dragar o leito do rio Paraguai para exportar commodities o ano todo, podem exterminar o Pantanal.
Pequenas hidrelétricas também foram proibidas na planície alagável, mas seguem reduzindo o fluxo de rios desde o planalto de Cerrado ao redor do Pantanal. Isso pede políticas mais alinhadas com estados, ongs, produtores, cientistas e União, sugere a lei sul-mato-grossense.
“Isso amarra e prioriza a restauração e manutenção de nascentes no Planalto”, avalia a pesquisadora Letícia Couto, professora adjunta no Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), onde atua com Ecologia da Restauração.
Há planos para mais de cem usinas de pequeno porte em áreas do Pantanal e do Alto Araguaia. Uma das últimas ainda sem barramentos, a região do Rio Cabaçal é alvo de projetos para seis geradoras de eletricidade.
Frente a tais situações, o diretor-executivo do SOS Pantanal, Leonardo Gomes, avalia que as intervenções humanas no bioma devem ser pesadas de forma integrada e cumulativa.
“Isso inspira mais cuidados com planos que afetem toda a bacia [do Alto rio Paraguai]. Pede grande atenção com projetos hidrelétricos, rodoviários e logísticos”, destaca o especialista.
Nesse sentido, são necessárias políticas públicas unificadas para o bioma, defende a deputada federal Camila Jara (PT-MS). Ela mobilizou em agosto uma Frente Parlamentar em Defesa do Pantanal, já com 189 deputados.
“A gente não pode mais discutir os biomas que a gente tem no Brasil e na América Latina de forma isolada. A natureza não conhece as fronteiras imaginárias que a gente estabelece”, enfatiza a parlamentar.
Com base nessas diretrizes e nas normas construídas nos estados pantaneiros, ela adiantou que proporá uma lei federal para o bioma no início da próxima legislatura, em fevereiro de 2024.
“Vamos ousar pensando na proteção do meio ambiente com desenvolvimento social. Não adianta manter as florestas em pé e ter gente passando fome”, descreve a deputada federal.
Seu texto pode ser apensado a proposições já tramitando no Congresso Nacional, como uma do senador Wellington Fagundes (PL-MT).
Balanço positivo
As propostas em avaliação no Parlamento Federal e as normativas aprovadas pelos estados pantaneiros regulamentam a legislação florestal brasileira publicada desde 2012.
A lei do Mato Grosso do Sul foi aprovada em menos de 4 meses, pelas explosivas taxas de destruição do Pantanal e pela possível suspensão de licenças estaduais para desmate pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente.
O texto sancionado pouco difere do enviado à Assembleia Legislativa no fim de novembro, embasado por políticos, governos, produtores, cientistas e ongs. “A lei trouxe segurança jurídica para a conservação e o uso sustentável do bioma no estado”, analisa a pesquisadora Letícia Couto, da UFMS.
As regras barram a expansão de pastagens exóticas e carvoarias, de soja, cana e eucalipto. Protegem mais as veredas, abrem alas à restauração, combate a incêndios e formação de corredores. Prevêem o tratamento de esgotos e poluentes industriais, bem como exigem licença para desmates em imóveis desde 500 ha, que concentram as perdas no Pantanal.
A lei determina igualmente que sejam mantidas 50% das florestas e do Cerrado em propriedades rurais. Nas formações campestres, o percentual cai para 40%.
Mas o desmate deveria ser mais restrito frente a diretrizes da reserva da biosfera, áreas prioritárias para conservação, zoneamento ecológico- econômico e do Comitê Nacional de Zonas Úmidas, diz a cientista e a assessora do Ministério Público Federal (MPF) Débora Calheiros.
“Faltou ampliar o debate sobre esses pontos no desenho da legislação, sobretudo nas áreas de recarga de águas. Se seguirem fazendo o que quiserem no planalto, o Pantanal não sobreviverá”, reforça a especialista.
Ela avalia que a lei do Mato Grosso do Sul também pecou ao não promover a eliminação de monoculturas. “As lavouras são pulverizadas com agrotóxicos, ameaçando as águas e a biodiversidade pantaneiras”, lembrou a especialista.
Ao mesmo tempo, a legislação permite dobrar o número de bois confinados em áreas já autorizadas. “Defendemos o fim de atividades intensivas como essa, mas o saldo da legislação aprovada é positivo para o bioma”, avalia Leonardo Gomes, do SOS Pantanal.
A normativa também traz ferramentas contra a crise climática. Manejar o fogo, restaurar a vegetação nativa e pagar por serviços ambientais ajudará a reduzir a emissão e a capturar gases de efeito estufa. “Tudo ajudará na conservação do Pantanal”, analisa Letícia Couto, da UFMS.
As medidas são urgentes. A área queimada no Pantanal do Mato Grosso do Sul cresceu 211% este ano em relação a 1° de janeiro e 17 de dezembro de 2022. Os dados são do Corpo de Bombeiros e do Centro de Monitoramento do Tempo e do Clima (Cemtec), do governo estadual.
Já um estudo do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, apontou que as mudanças climáticas aumentam as secas, diminuem os níveis dos rios e aumentam o risco de incêndios no Pantanal.
“Isso porá a resiliência de populações e ambientes naturais pantaneiros à prova”, antecipa Leonardo Gomes, do SOS Pantanal. O Mato Grosso do Sul abriga ⅔ do Pantanal brasileiro.
Donos de 90% das terras do bioma, produtores rurais terão a maior fatia dos pagamentos por serviços ambientais. Os recursos virão de multas e do orçamento do estado, que garantiu ao menos R$ 50 milhões anuais. O dinheiro cairá num fundo criado pela lei sul-mato-grossense.
Conforme Leonardo Gomes, isso mostra que a lei estadual não só restringe atividades, mas também abre oportunidades econômicas ao valorizar a proteção de ambientes naturais.
“O fundo poderá tornar a conservação financeiramente vantajosa ao estimular as vocações naturais do bioma e diversificar economias conectadas do Pantanal”, ressalta.
Os recursos devem ser liberados por meio de editais públicos, mas esse e outros pontos da legislação precisam ser regulamentados por decretos e leis estaduais complementares à sancionada esta semana.
Regulamentação expressa
A legislação para o Pantanal no Mato Grosso do Sul entra em vigor em dois meses, em meados do próximo fevereiro. O governo estadual quer a regulamentação pronta no mesmo prazo.
“O prazo é curto, mas queremos cumprir essa meta. Ninguém do grupo de trabalho para regulamentação sairá de recesso no fim do ano”, diz o secretário estadual Artur Falcette.
A nova legislação exigirá igualmente mudanças administrativas, em bases cartográficas, nos procedimentos para licenciamento ambiental e nos sistemas de Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Mas, esses procedimentos e resultados da aplicação da lei devem ser acompanhados de perto. Caso prejudiquem a conservação do Pantanal, devem ser revisados, diz Leonardo Gomes, diretor-executivo do SOS Pantanal.
“É importante atentar se outros comportamentos não serão estimulados diante das mudanças ambientais e socioeconômicas em curso no bioma”, destaca o especialista.
Simultaneamente, há uma grande expectativa geral de que a legislações desenhadas para o Pantanal tragam oportunidades concretas para manter a região e suas populações, compondo um arcabouço legal qualificado
“Faltava esse olhar mais atento do poder público para reconhecer e fomentar as vocações naturais do Pantanal, hoje uma vitrine mundial de conservação natural e cultural, turismo e desenvolvimento sustentável”, chancela Gomes.
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