Alvo de inúmeras controvérsias que resultaram em duas ações judiciais em curso, o projeto residencial-hoteleiro Maraey, megaempreendimento de capital espanhol proposto para ser implementado na Área de Proteção Ambiental (APA) de Maricá, foi submetido à deliberação do Conselho Diretor do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), na quarta-feira da semana passada (06) para início de processo de Licença de Instalação. Além de ter surpreendido pesquisadores e ambientalistas que consideram o projeto de alto risco socioambiental, a notícia gerou questionamentos da advogada da Associação de Preservação Ambiental das Lagunas de Maricá (Apalma), Denise Árias Mendes. Ela afirmou à reportagem de ((o))eco que esse processo de licenciamento ambiental está cancelado juridicamente, por decisões recentes, e não poderia estar em andamento no órgão ambiental estadual.
Parte da questão judicial, contrária à instalação do projeto residencial-hoteleiro, envolve uma Ação Civil Pública, movida pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) e pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPERJ), desde 2018, for força de uma mobilização da Apalma e da Associação Comunitária de Cultura e Lazer dos Pescadores de Zacarias (ACCLAPEZ). Como divulgado pelo ((o))eco, em abril, uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) havia restituído os efeitos de uma liminar que suspendia o trâmite de licenciamento ambiental desse empreendimento.
Posteriormente, segundo a advogada da Apalma, outra decisão judicial atendeu às expectativas do movimento que se opõe ao megaempreendimento. “No dia 5 de julho deste ano, o terceiro vice-presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) inadmitiu os recursos especial e extraordinário impetrados pela IDB Brasil, Município de Maricá, Inea e Governo do Estado do Rio de Janeiro, confirmando a decisão anterior de cancelamento do licenciamento”, afirma.
Outra parte dessa disputa jurídica pela anulação do licenciamento do empreendimento se refere a um processo movido pela Apalma, que, segundo a advogada, está tramitando em segunda instância, onde passou por uma reviravolta. “Houve um julgamento recente que anulou a sentença de primeiro grau, pois houve uma falha técnica do tribunal que deixou de apreciar um recurso manejado pela IDB Brasil. Então a decisão anulou a sentença não pelo mérito, mas sim pela falha técnica do tribunal. Depois que o recurso for apreciado, volta para a vara de origem para que seja proferida nova sentença”, explica Denise Mendes que acredita na manutenção de decisão judicial desfavorável ao empreendimento. “Na minha opinião, o juiz de Maricá, Dr. Fábio Porto, manterá a mesma decisão, pois, a farta documentação apresentada nos autos, os estudos técnicos e as inúmeras transgressões às leis apontadas são suficientes para manter a APA de Maricá, Reserva da Biosfera, intacta,” acrescenta.
Considerando as informações apresentadas à reportagem, a advogada ressaltou ter ficado surpresa ao tomar conhecimento das notícias divulgadas no site do grupo IDB Brasil, de celebração pelo prosseguimento do processo de licenciamento ambiental. “No processo da Apalma, com a anulação da sentença, volta a valer a decisão da Décima Oitava Câmara do TJRJ, por isso, a liminar não cai”, reitera. Quanto à ação do MPRJ, ela afirma que “o órgão tem que pedir o cumprimento do acórdão”. E observa: “Nesse caso o juiz oficia o Inea que o licenciamento está cancelado. O fato é que isso já foi feito, mas o MPRJ vai ter que reforçar este pedido.”
Em resposta aos questionamentos apresentados pela reportagem, o grupo que representa no Brasil o empreendimento residencial-hoteleiro enviou a seguinte resposta por intermédio de sua assessoria de imprensa: “A IDB Brasil, responsável pelo projeto MARAEY, informa que não há na Justiça qualquer decisão que anule ou suspenda o licenciamento de seu empreendimento.” Já o MPRJ não retornou à solicitação de informações até o fechamento desta edição.
Inea confirma que licenciamento está em andamento
Ainda que o processo não esteja concluído, o órgão ambiental estadual confirmou o andamento do processo de licenciamento ambiental do projeto Maraey. “O Instituto Estadual do Ambiente (Inea) informa que, nesta quarta-feira (6/10), foi submetida para deliberação do Conselho Diretor do Inea, a aprovação da Licença de Instalação (LI) para as obras civis da rede viária e desenho urbano, não sendo autorizada nesse momento a supressão da vegetação nativa, sem autorização prévia via Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor) ou manejo da fauna silvestre sem a devida Autorização Ambiental específica. Ambos os documentos serão emitidos pelo Inea posteriormente e, após análise das variáveis ambientais que se impõe.”
Segundo o comunicado divulgado pelo órgão ambiental estadual, “o projeto foi avaliado por diversas áreas técnicas do Inea, sendo elencadas 58 restrições ambientais de validade para o cumprimento da Licença de Instalação para esta fase do empreendimento”. Em relação a alguns questionamentos apresentados pela reportagem foi esclarecido que o empreendimento “está sendo realizado em etapas”. Ainda foi informado pelo órgão ambiental: “O empreendimento, como um todo, foi analisado no requerimento de Licença Prévia e agora, no requerimento de Licença de Instalação (LI), o mesmo será construído por partes”, acrescenta.
Embora tenha respondido evasivamente que, “com relação às condicionantes estabelecidas para a referida Licença de Instalação, constam aquelas necessárias para a mitigação dos impactos ambientais provenientes das obras ora licenciadas”, o órgão ambiental não retornou, até o fechamento desta edição, com um posicionamento sobre os novos questionamentos da reportagem relacionados às declarações da advogada da Apalma de que decisões judiciais recentes teriam cancelado o processo de licenciamento ambiental do projeto Maraey.
Em documento obtido pela reportagem constam informações completas sobre o parecer técnico do Inea relacionado ao projeto Maraey. Uma das 58 restrições apresentadas pela equipe multidisciplinar do órgão ambiental se refere à necessidade de ampliação do diálogo com a sociedade sobre as etapas do empreendimento. “Aumentar a abrangência do Programa de Comunicação Social para um Programa de Comunicação, Responsabilidade e Interação Social, que contemple a criação de um espaço físico (com endereço fixo), canal de comunicação gratuito com atendimento de segunda a sexta em horário comercial (e mantido até dois anos após o término das obras), além da atuação de uma equipe mediadora de conflitos, com qualificação técnica comprovada e composta por profissionais de diferentes áreas do saber para dialogar com a população durante as fases do projeto”, foi parte das determinações.
Em comunicado distribuído à imprensa, no qual executivos celebraram o andamento do licenciamento ambiental do projeto Maraey, o IDB Brasil informou que pretende iniciar a primeira fase do empreendimento ainda neste semestre, com obras de urbanização e pavimentação. A proposta que contempla hotéis, moradias, centros comerciais, dentre outras instalações, envolverá, segundo noticiado, a criação de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com 440 hectares, o que corresponderia a mais da metade da área total da iniciativa imobiliária, além de um centro de pesquisas.
Também foi prometida a regularização fundiária de cerca de 200 famílias moradoras da Vila Zacarias, uma tradicional comunidade de pescadores artesanais que, segundo estudos antropológicos, já está presente na restinga de Maricá há mais de 200 anos. Entretanto, a ACCLAPEZ, associação comunitária local, é uma das proponentes de ação judicial contra o empreendimento imobiliário.
Pesquisador reitera preocupação com a biodiversidade da APA de Maricá
Atuante em estudos na APA de Maricá e atento observador das transformações urbanísticas que têm colocado em risco o equilíbrio ecológico, sobretudo, dos ambientes de restinga, o biólogo Jorge Antônio Lourenço Pontes, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências, Ambiente e Sociedade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), reafirma preocupações com a biodiversidade local diante da proposta do megaempreendimento imobiliário. Em entrevista ao ((o))eco, o pesquisador destacou ter sido surpreendido pela notícia do andamento do licenciamento do projeto e opinou que a proposta deveria ser revista para ocupação de áreas que já estão mais degradadas. Para Pontes, “o turismo de Maricá tem que ser conservador de suas riquezas ambientais ou estará matando sua galinha dos ovos de ouro”. Ele afirma, ainda, não ser “contra empreendimentos turísticos e hoteleiros internacionais”, mas sim, contra “a forma como são concebidos e construídos em países tropicais como o Brasil, às custas de locais que poderiam ser preservados por causa dos serviços ambientais que proporcionam” e por trazerem prejuízos tanto “à biodiversidade como às populações humanas”.
((o))eco – Como você recebeu a notícia do andamento do processo de licenciamento ambiental do projeto Maraey?
Jorge Antônio Lourenço Pontes – Recebi com espanto. Apesar de uma APA ser passível de ocupação. A forma como o projeto é apresentado não respeita o plano de manejo e as edificações e as principais ocupações se darão nos pontos mais conservados e frágeis da APA de Maricá, onde vivem espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. Algumas são as últimas populações conhecidas, como as de peixes-de-nuvens (Rivulidae) que contam com um Plano de Ação Nacional, sob encargo do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Aquática Continental (CEPTA), vinculado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Como avalia a autorização para a fase inicial do projeto?
A autorização é tendenciosa e apenas atende aos interesses do empresariado europeu, na forma maciça de ocupação de litorais tropicais travestidos de ‘empreendimentos ecológicos’. Basta ver que na página da Maraey RJ, quando se fala em biodiversidade, há inúmeros erros, alguns bem grosseiros, indicando que não possuem suporte técnico para este tema.
Quais são os principais riscos envolvidos?
Teremos perda de espécies, redução populacional, exclusão social (pois a área não será para acesso de pessoas de baixa renda), além de aumentar a população carente, por migração atrás de serviços temporários e se instalando em bairros ao redor em condições precárias. Diversos exemplos são conhecidos no Brasil, com grandes obras. Essa massa humana fica e aumenta os problemas sociais e amplifica outros. Teremos perda de lençol freático, além de isolamento de áreas para uma casta seleta de turistas e moradores de condomínios que serão implantados. O projeto de ‘conservação’ do grupo empresarial é bonito de ver, mas não terá área adequada para executar ou ambientes melhores (já que serão ocupados). Sem contar que Maricá não tem rede de esgoto para atender sua atual população.
Quais são as suas recomendações para empreendedores e gestores públicos?
O projeto precisa ser revisto. Pode ser de menor dimensão e realocado dentro da APA para pontos mais degradados, não como está em sua concepção atual. Os empregos que enchem a boca para repetir serão, em sua grande maioria, temporários, com a parte hoteleira aberta para pessoal gabaritado e, certamente, muitos virão de outros estados e até de outros países. A perda em serviços ambientais será enorme e, provavelmente, não compensará os prejuízos do município. Temos uma série de interesses particulares envolvidos de pessoas da política local, estadual e federal, além de empresários. O turismo de Maricá tem que ser conservador de suas riquezas ambientais, ou estará matando sua ‘galinha dos ovos de ouro’.
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