Sem a realização de estudos de viabilidade técnica, econômica ou ambiental e, acima de tudo, sem jamais ter consultado as populações tradicionais impactadas, o projeto de extensão da BR-364, entre o município de Mâncio Lima, no Acre, e a fronteira com o Peru, foi suspenso por determinação da juíza federal Franscielle Martins Gomes Medeiros, da 1ª Vara de Rio Branco. A interligação rodoviária entre Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade acreana, e Pucallpa, capital do departamento peruano de Ucayali, é uma das principais apostas do governo local na área de infraestrutura, e vendida como redenção para o desenvolvimento da região.
A obra também é vista com bons olhos pelo governo Jair Bolsonaro, que atua para tirar do caminho eventuais entraves burocráticos – sobretudo os ambientais – que venham a atrapalhá-la. Por seu traçado passar dentro de uma unidade de conservação (o Parque Nacional da Serra do Divisor) e próximo a terras indígenas, o governo federal atua para acelerar o processo de licenciamento ambiental. É o que pretendia o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), quando lançou edital (No 130/2021) para contratar empresa que faria a prospecção da viabilidade do projeto.
Para conter este tratoraço amazônico, organizações ambientalistas e indígenas se uniram por meio de uma Ação Civil Pública (ACP), pedindo a anulação do edital por ferir um princípio básico: não houve a prévia consulta às comunidades indígenas e extrativistas que podem ser afetadas pelo projeto.
Assinaram o recurso judicial a Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj), a Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre), a SOS Amazônia, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).
No último dia 14, a magistrada Franscielle Martins Gomes Medeiros determinou que o Dnit suspendesse a assinatura de contrato com o Consórcio Única-Iguatemi, com sede em Florianópolis (SC), vencedor da concorrência pública aberta pelo órgão. O edital lançado previa a contratação de empresa para a “elaboração de estudos e projetos básicos e executivos de engenharia visando a execução das obras de implantação, pavimentação e adequação de capacidade e segurança com eliminação de pontos críticos do trecho rodoviário”.
O traçado em questão tem uma extensão de 110 quilômetros entre a cidade de Mâncio Lima, vizinha a Cruzeiro do Sul, e o vilarejo de Boqueirão da Esperança, na fronteira do Acre com o departamento peruano de Ucayali. Para alcançar o país vizinho, o traçado da rodovia atravessaria o Parque Nacional da Serra do Divisor, causando impactos diretos em outras unidades de conservação (como a Reserva Extrativista Alto Juruá) e ao menos três terras indígenas do lado brasileiro, entre elas a Kampa do Rio Amônea, do povo Ashaninka. Os Ashaninka possuem aldeias espalhadas nos dois lados da fronteira, região da Amazônia também habitada por povos em isolamento voluntário.
Em setembro, ((o))eco já tinha revelado que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) deu o sinal verde para eliminar os entraves burocráticos que pudessem “atrapalhar” a concessão do licenciamento ambiental da rodovia Cruzeiro do Sul-Pucallpa. O edital lançado pelo Dnit pegou carona nessa porteira aberta pelo órgão responsável pela gestão das unidades de conservação federais.
A ACP defende que, antes da homologação de estudos técnicos, o Dnit deveria ter contratado Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental e realizado uma consulta prévia aos povos indígenas e comunidades tradicionais impactadas pelas obras. Além disso, aponta o documento, a Fundação Nacional do ìndio (Funai) precisa entrar no processo para executar ações que venham a confirmar a presença de indígenas isolados na área de influência da nova rodovia.
De acordo com a ACP, o edital lançado fere um princípio básico para construção de obras desta magnitude: a consulta “prévia, livre e informada” às populações diretamente impactadas, prevista pela convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá, a Opirj, a liderança Ashaninka Francisco Piyãko considera que a tentativa do governo de viabilizar o projeto da rodovia entre Acre e Ucayali já começou cheia de erros. “Tem que ser embargado. Não se deve enviar para consulta um processo com esta formatação. Este é um ponto que tem que ficar claro: coisa ilícita não deve ir para consulta”, afirma ele ao ((o))eco.
“Um empreendimento deste porte tem que levar em conta todos os trâmites legais, sem atropelos. Levar para consulta agora é querer legitimar um processo totalmente irregular. Se começou ilegal, tem que ser impedido antes mesmo de qualquer discussão.”
Uma das principais ameaças representadas pela construção da rodovia numa região bastante intacta da Amazônia é com os grupos de povos indígenas em isolamento voluntário. A fronteira Brasil-Peru tem uma das maiores concentrações de grupos isolados do mundo, espalhando-se nas bacias dos rios Purus, Juruá e Javari.
“A presença desses povos na área de influência do projeto exige dos governos a responsabilidade de promover uma interligação regional que não ameace a existência deles”, diz parte do texto da ACP. As organizações que assinam o documento afirmam ser totalmente contrárias ao projeto de construção da estrada da forma como é realizado, deixando de dar vez e voz às comunidades da região.
Em novembro, os Ashaninka realizaram um congresso internacional para debater a questão da abertura de estradas na fronteira. Representantes Ashaninka do Brasil e do Peru se reuniram na aldeia Apiwtxa, na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, para discutir propostas conjuntas de como enfrentar a problemática. Se do lado brasileiro a estrada Pucallpa-Cruzeiro do Sul ainda está na fase projetos, no Peru muitas estradas clandestinas são abertas por madeireiras e narcotraficantes.
Para os Ashaninka, a simples perspectiva da construção de uma rodovia conectando Brasil e Peru tem impulsionado a abertura ou a recuperação de estradas abandonadas para a prática de atividades como o roubo de madeira, o garimpo e o aumento nas áreas de cultivo da folha de coca. A fronteira Acre-Ucayali é terreno fértil para a atuação do tráfico internacional de drogas; do lado peruano há o registro da presença de laboratórios para produção cocaína, comprada pelas facções criminosas que atuam no Brasil.
Em agosto, os Ashaninka peruanos da comunidade nativa (o equivalente a terra indígena) de Sawawo denunciaram que máquinas que atuavam na recuperação da estrada UC-105 colocavam em risco a integridade de seu território. O avanço da reconstrução de uma estrada que estava abandonada desde o início da década de 1990 acendeu o alerta entre os Ashaninka brasileiros, pois o traçado da rodovia está a menos de 50 quilômetros da fronteira entre os dois países.
Além dos impactos para a segurança das comunidades tradicionais que vivem nas bacias do Juruá e Ucayali, a rodovia é uma grave ameaça para a preservação ambiental de uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta. Muitas espécies são encontradas apenas nesta região da Amazônia, sendo muitas delas ainda desconhecidas pela ciência.
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