Menos chuvas e água nos rios e alagados, crise climática e incêndios pressionam as moradas da onça-pintada no Pantanal, um de seus últimos grandes refúgios. Controlar o fogo, ampliar e consolidar áreas protegidas e corredores ecológicos ajudarão a perpetuar a espécie, chave para o equilíbrio ecológico da planície inundável.
O mundo das ‘pintadas’ está encolhendo. Seus domínios, que um dia se estenderam do sul dos Estados Unidos ao entorno de Buenos Aires, na Argentina, foram reduzidos à metade por lavouras, pastos e cidades. Crimes como caça e tráfico ajudaram a fragmentar as populações do maior predador das Américas.
O Brasil ainda é o seu grande abrigo. Aqui vivem oito de cada dez felinos que restam no continente, especialmente nos ambientes preservados da Amazônia e do Pantanal, conta Fernando Tortato, doutor em Ecologia e Conservação da Biodiversidade pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
“Fora destes biomas, restam poucas centenas [de onças] na Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga”, descreve o pesquisador associado à ong Panthera. No Pampa, a pintada foi extinta. Apesar do cenário, o território da espécie vulnerável à extinção é acossado mesmo onde o verde nativo ainda predomina.
A destruição da Amazônia retomou as taxas de 15 anos atrás. Só em agosto tombaram 1.415 km² – similares à área de São Paulo (SP) –, mostra o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, o Imazon. Um estudo publicado na Conservation Science and Practice, em junho do ano passado, estimou em 1.422 as onças mortas ou desalojadas por desmates ou incêndios na região, apenas entre 2016 e 2019.
Todavia, enquanto na floresta equatorial que domina o norte do país e da América do Sul os habitats das onças são “eliminados” pelo desmatamento, no Pantanal seus ambientes são “empobrecidos”, sobretudo pelos incêndios e pela redução na oferta de água nas últimas décadas. Isso prejudica os felinos com desidratação, quedas em taxas reprodutivas, disputas forçadas por território entre animais enxotados pelo fogo e até fome.
“As grandes queimas também prejudicam as onças eliminando espécies terrestres que são suas fontes de alimento”, explica o pesquisador da Embrapa Pantanal Walfrido Tomas, doutor em Ecologia e Conservação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
De acordo com um balanço publicado em dezembro de 2021 na revista Scientific Reports por dezenas de cientistas de instituições nacionais, quase 17 milhões de animais morreram nos incêndios do ano anterior – um recorde neste tipo de estrago no bioma desde 1998.
Além da queima para forçar a renovação de pastos para o gado – por vezes criminosa, afirma a Polícia Federal –, os incêndios no bioma são turbinados pela seca. Trata-se de outro fantasma para a vida selvagem de uma região moldada ao longo dos séculos por alagamentos e vazantes.
Dados do MapBiomas mostram que a superfície alagada no Pantanal encolheu 29% entre as cheias de 1988 e 2018, caindo de 59 mil km² para 42 mil km². Em 2020, a área foi de apenas 15 mil km², a menor desde quando começou o monitoramento por satélites, em 1985.
“A redução tem que ser balanceada com períodos maiores. O início dos anos 1980, por exemplo, foi de grandes cheias na região. Mas a tendência é sim de que o bioma se torne mais seco”, destaca Fernando Tortato, da Panthera. Isso facilitará a pecuária com pastagens exóticas, as monoculturas de soja e outras commodities, hoje inviáveis no Pantanal.
Sua penúria hídrica é fruto do desmate da Amazônia, que restringe as chuvas sobre a região, da redução no fluxo de águas desde o Cerrado por hidrelétricas – como a de Manso –, e da crise do clima. “Não há como pensar o futuro do bioma sem olhar para todas essas escalas ecológicas”, lembra Walfrido Tomas, da Embrapa Pantanal.
Uma análise da entidade editada em agosto deste ano destaca que 86 (75%) de 115 barramentos de hidrelétricas previstas estão na região norte da Bacia do Alto rio Paraguai (BAP), no Mato Grosso, de onde vertem sete em cada dez litros da água que mantém a vida no bioma.
“É preciso “rever urgentemente a implantação de novas [hidrelétricas, do micro ao grande porte] nos rios formadores do Pantanal na BAP, principalmente sem um estudo prévio sobre o impacto conjunto de todos os empreendimentos atuais e previstos”, destaca a análise.
Obras de grande porte em curso, como a da hidrovia Paraná-Paraguai, também reduzirão os alagamentos no Pantanal. A obra avança com licenciamento ambiental e investimentos pulverizados. Seus impactos mais severos serão na porção norte e mais frágil do bioma, onde estão o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e a Estação Ecológica Taiamã.
Conciliar é preciso
O Pantanal é o bioma mais preservado do país, com oito em cada dez km² de vegetação natural. Desses, 64% podem manter populações de pintadas, estima um artigo publicado na Nature, em novembro passado. “As transformações do bioma afetarão toda essa cadeia de vida”, avisa Carlos Peres, cientista vinculado à Universidade de East Anglia, no Reino Unido, e um dos autores do estudo.
Hoje, menos de 5% do Pantanal estão abrigados em 28 reservas ecológicas – 22 de Uso Sustentável e 6 de Proteção Integral, onde a presença humana é restrita. Tais áreas protegem apenas 9,3% das moradas das onças-pintadas, revela pesquisa publicada na revista Biological Conservation. Ao mesmo tempo, 90% das terras do bioma estão em imóveis privados.
Daí a preservação do Pantanal ser conectada à pecuária tradicional, que respeita os ciclos de cheias e vazantes, e ao ecoturismo. Mas o modelo é ameaçado pela compra crescente de ‘terras baratas’ por produtores alheios à realidade ambiental do bioma. “Se não forem fixados meios legais e econômicos para manter esse equilíbrio, a onça-pintada será muito prejudicada”, avalia Fernando Tortato, da Panthera.
Driblar a fragmentação de ambientes por novas economias passa pela ampliação das reservas ambientais e de sua conexão a corredores para a movimentação de espécies que vivem em grandes territórios. Uma proposta da Embrapa Pantanal é avaliada pelo governo do Mato Grosso. A ideia envolve interligar reservas legais de fazendas e áreas preservadas dentro e fora do bioma. “A conservação da espécie precisa de medidas de grande escala”, destaca Walfrido Tomas, da Embrapa Pantanal.
Outra ameaça ao felino é a caça em retaliação ao suposto consumo de gado e animais de estimação. “Sei de um fazendeiro no Mato Grosso que mandou matar ‘mais de 200 onças’ que comiam seu rebanho”, revela o ex-deputado federal Nilson Stainsack (SC), favorável à caça esportiva de animais silvestres.
Mas a matança pode ser despropositada. Especialistas avaliam que os ataques ao gado não estão crescendo, mesmo que as populações de onças venham retomando espaços no Pantanal. Tudo graças à delimitação de áreas protegidas, ao fim da caça comercial e esportiva, à instalação de cercas elétricas, alarmes e iluminação para proteger os rebanhos.
Boas práticas como essas poderiam ser estimuladas, mas foram esquecidas por projetos de lei tramitando nos parlamentos federal e do Mato Grosso. Ao mesmo tempo, a conservação do bioma é tema raso nas plataformas e discursos dos candidatos ao governo dos estados pantaneiros, mostra reportagem de Michael Esquer em ((o))eco.
Mas se a política formal deixa a desejar, medidas para azeitar as relações entre pessoas e onças podem ser a chave para a perpetuação da espécie.
Capacitar produtores rurais, estimular um turismo sustentável, reduzir o uso do fogo, melhorar a conectividade das paisagens e criar incentivos fiscais e financeiros à conservação são algumas medidas elencadas numa oficina com ongs brasileiras realizada em maio por Silvio Marchini, doutor em Conservação da Vida Selvagem pela University de Oxford, no Reino Unido.
“O desafio é transformar conflito em coexistência. Isso será muito mais promissor se integrarmos esses fatores e seus responsáveis ao grande e complexo sistema natural do bioma”, destaca o especialista em coexistência entre populações humanas e de outras espécies.
Caso isso não aconteça, as onças-pintadas e o Pantanal que conhecemos e são celebrados nas novelas e no mundo podem estar com os dias contados.
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