A transição energética é uma das principais linhas de ação da 30ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que será sediada no Brasil em Belém-PA em uma semana. “O fato do Brasil ser uma referência internacional em energia de baixo carbono não torna o país imune a diversos problemas, como aumento de subsídios na produção de energia renovável e consequentemente nas tarifas, falta de estratégia para contornar a rampa de carga elétrica e outros”, pondera Roberto Luiz Rockmann que é escritor, jornalista, divulgador e estudioso dentro da temática do setor elétrico.
Formado pela Universidade de São Paulo (USP), Roberto cobre há 20 anos o setor de infraestrutura para jornais e revistas, com destaque para o jornal Valor Econômico, no qual acompanhou o racionamento de energia elétrica. Desde 2019, edita e produz o podcast quinzenal Giro Energia sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Em 2021, lançou em coautoria com o também jornalista e escritor Lúcio Mattos o livro-reportagem ‘Curto-Circuito: quando o Brasil quase ficou às escuras (2001-2002)”, sobre os 20 anos do racionamento de energia.
Atualmente, Roberto Rockmann é mestrando no programa de engenharia de produção da Escola Politécnica da USP e sua pesquisa busca elucidar a atuação de grupos de interesse e do legislativo na regulação do setor elétrico. Nesta entrevista para ((o))eco, Rockmann discute um pouco da situação atual do sistema elétrico brasileiro, além de desafios e prioridades para a execução da transição energética no contexto nacional e global.
((o))eco: A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) aponta que quase 90% da eletricidade do Brasil vem de fontes renováveis em 2025, sendo mais da metade gerada por hidrelétricas. Esse nível já coloca o país como referência mundial em energia de baixo carbono ou ainda existem limitações importantes?
Roberto Rockmann: O Relatório da Ember posiciona o Brasil como detentor da matriz elétrica mais renovável entre os países do G-20, com mais de 90% da eletricidade gerada por fontes limpas, como hidrelétricas, usinas solares e eólicas e também biomassa. Os dados ainda indicam que as emissões do setor elétrico brasileiro atingiram o pico em 2014, com o crescimento das energias eólica e solar superando a demanda crescente. A geração de combustíveis fósseis em 2024 foi quase 50% menor do que há uma década. No mesmo período, a participação da geração eólica e solar aumentou de 2% em 2014 para 24% em 2024.
Se olhada a matriz energética [que além da eletricidade contempla os combustíveis usados no transporte], o quadro também é diferenciado: cerca de 50% da energia brasileira é de fontes limpas, enquanto a média internacional é 13%. Uma das razões é o etanol, programa criado pelo governo federal em 1975 e que contribuiu para o avanço do combustível renovável na matriz de energia. A lei Combustíveis do Futuro, recente, também poderá ter impacto sobre o avanço de combustíveis limpos, como o biometano.
O estudo “Nova Economia da Amazônia”, desenvolvido pela WRI Brasil, projeta bilhões no PIB e desmatamento zero até 2050. Até que ponto recursos climáticos como sol, vento e chuvas sustentariam esse salto da bioeconomia amazônica sem grandes investimentos em infraestrutura e governança?
O grande desafio do Brasil em relação às emissões globais está no uso da terra. O país é um dos cinco maiores emissores do mundo. Para cumprir suas metas de redução, será preciso diminuir as taxas de emissão provenientes do desmatamento na Amazônia. Metade das emissões brasileiras estão relacionadas ao desmatamento. O desmatamento na Amazônia responde por 36% das emissões brutas do país. O setor de agropecuária vem em seguida, com 27% das emissões brutas do país. Energia vem em terceiro lugar, com 18%, segundo dados do Seeg (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa) do Observatório do Clima. Um desafio é como o setor de agroenergia pode avançar sem avançar em biomas relevantes, seja Amazônia ou Cerrado.
Entre secas históricas, enchentes recordes, agricultura intensiva e dependência hidrelétrica, o Brasil precisa discutir melhor o uso múltiplo da água? Você espera que a COP30 traga propostas concretas para esse tema ou a pauta hídrica tende a ficar em segundo plano?
A questão da integração entre as áreas de energia e de recursos hídricos se tornará ainda mais relevante nos próximos anos, seja pelos desdobramentos das mudanças climáticas, seja pela transformação da matriz elétrica brasileira, com a importância crescente do conceito de flexibilidade na operação. O tema ainda se torna importante em um momento em que o mundo discute os data centers (DCs) e um potencial importante de crescimento desses centros voltados para a inteligência artificial. A pegada hídrica dos DCs é objeto crescente de preocupação, já que os sistemas de refrigeração desses data centers são grandes consumidores de água. Uma matéria da Bloomberg News de maio de 2025 aponta que dois terços dos centros de dados construídos nos Estados Unidos desde 2022 estão localizados em áreas com estresse hídrico. E as mudanças climáticas reforçam as preocupações com o impacto da instalação de DCs sobre recursos hídricos.
No artigo científico do seu orientador Erik Eduardo Rego, publicado no periódico Energies ano passado, é defendido que se amplie a potência dos reservatórios – especialmente no Norte, Nordeste e bacia do Paraná – para poder integrar energias renováveis variáveis. De forma simples, que medidas práticas o Brasil pode adotar para reforçar essa capacidade sem comprometer a sustentabilidade ambiental?
A energia renovável e os recursos hidrelétricos se complementam no Brasil, permitindo uma otimização na operação dos reservatórios para atender à demanda de energia. Isso envolve o armazenamento de água durante a estação seca, quando a geração eólica é mais alta, alocando assim mais produção hídrica para serviços de capacidade e flexibilidade. No entanto, com a crescente participação de fontes renováveis na capacidade instalada total do Brasil, haverá uma demanda crescente por capacidade. Para aumentar a capacidade da rede, as usinas hidrelétricas podem contribuir por meio de ajustes operacionais, como a manutenção dos reservatórios em níveis mais altos.
No entanto, essas mudanças devem ser coordenadas para prevenir problemas ambientais. O estudo realiza uma análise regional para identificar mudanças impactantes na operação hidrelétrica do Brasil. Exemplos incluem: (1) Analisar o potencial para flexibilizar as restrições de vazão mínima em reservatórios do Nordeste, levando em consideração seus diversos usos, como produção de energia elétrica, abastecimento de água e irrigação; (2) Evitar a perda da segunda casa de força da usina de Tucuruí (localizada na região Norte); (3) Otimizar os níveis dos reservatórios na bacia do Paraná para atender à capacidade durante a estação seca.
Uma recente revisão do grupo de pesquisa de Erik Eduardo Rego, do qual você faz parte, foi publicada no periódico Utilities Policy recomendando que o mercado elétrico brasileiro precisa se modernizar para ganhar flexibilidade e eficiência. Pode comentar como isso funcionaria em termos práticos? Em 2024, o país adicionou 10,85 GW com 301 novas usinas, 91% renováveis com fonte solar e eólica. Como você enxerga esse potencial do Brasil para os próximos anos?
Com fator de irradiação e vento entre os melhores do mundo – ventos alísios no Nordeste fazem com que o fator de geração na região seja em alguns casos 50% melhor que a média internacional –, o Brasil deve continuar se destacando e atraindo investimentos de empresas que buscam descarbonizar suas operações. No entanto, desafios terão de ser superados. O avanço das fontes variáveis (solar e eólica) tem sido relevante, mas tem trazido desafios.
A transformação da matriz brasileira tem feito duas palavras ingressarem no vocabulário recorrente do setor: curva do pato e curtailment (corte de geração renovável). As duas terão profundas repercussões na matriz e nos negócios em um momento em que o crescimento do país é baixo. Em 2013, o operador do sistema de energia da Califórnia, ao estudar cenários futuros para o abastecimento energético do estado, criou o gráfico conhecido como a “curva do pato”, que ilustra o impacto que a geração distribuída solar tem tido sobre a demanda e oferta no setor. A curva ilustra a diferença entre a demanda por energia elétrica e a geração de energia renovável, com destaque para a solar. Durante o dia, quando a geração solar atinge seu pico, a demanda líquida cai. No entanto, ao anoitecer, a produção solar diminui rapidamente, resultando em um aumento abrupto da demanda líquida. O nome se deve ao formato da curva, que se assemelha ao contorno de um pato.
Quando o sol se põe, as 4 milhões de instalações de geração distribuída solar deixam de gerar e passam a consumir. No jargão do setor, assiste-se a uma rampa, como se milhões de aparelhos de ar-condicionado e chuveiros fossem ligados ao mesmo tempo. Essa rampa chega em alguns momentos a 33 GW de capacidade – cerca de um terço da potência usada. Estimativas de operadores nacionais do sistema elétrico (ONS) apontam que poderemos chegar a 50 GW de capacidade em 2028. Nesse cenário, ganha importância a flexibilidade de operação, ou seja, a capacidade de compensar desequilíbrios entre geração e carga, como quando o sol deixa de brilhar no meio da tarde. Nesse sentido, o país terá de adotar novas estratégias, como destravar a regulação para armazenamento de energia e realizar leilões de contratação de potência, ampliar a produção de hidrelétricas, otimizar o armazenamento de energia nas usinas térmicas.
Apostar em aumento de área de produção de petróleo, como a exploração na Foz do Rio Amazonas, é uma dicotomia para um país que quer liderar a transição energética?
O avanço da exploração do petróleo não é uma discussão brasileira, mas mundial e é um sinal de como a transição energética é um processo que demanda tempo. O petróleo ainda é a fonte de energia primária mais usada no mundo. Está presente nos celulares, em roupas, etc… “Muito se fala em fim do petróleo, mas transformar uma indústria de US$ 10 trilhões em 25 anos é um período muito curto”, disse recentemente Daniel Yergin, um dos maiores estudiosos do assunto. Os desafios podem ser vistos na matriz de transportes do Brasil. Com uma frota de pouco mais de dois milhões de caminhões, sendo que 60% deles possuem mais de dez anos de idade, o transporte rodoviário, movido grande parte a diesel, é um dos principais responsáveis pelo setor de transportes responder por cerca de 10% das emissões brasileiras. Reduzir a presença de petróleo envolve transformar a matriz de transportes, o que pode abrir oportunidades para o biogás como combustível de transição energética.
*Vinícius é biólogo pela UNESP, mestre em ecologia e conservação de recursos naturais pela UFU, especialista em jornalismo científico pela UNICAMP. Atualmente atua como professor de ciências na Prefeitura de Botucatu, além de jornalista (registro 0094176/SP) colaborador em diversos veículos.
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