Reportagens

Número de portos no Tapajós dobrou em 10 anos sob suspeitas de irregularidades no licenciamento

Estudo realizado pela organização Terra de Direitos revela que, dos 27 portos em operação no Tapajós, apenas cinco possuem a documentação completa do processo de licenciamento ambiental.

Carolina Lisboa ·
26 de abril de 2024

Foi lançado nesta terça-feira (23) o estudo Portos e Licenciamento Ambiental no Tapajós: irregularidades e violação de direitos pela organização Terra de Direitos. O dossiê integra o portal Portos no Tapajós, que reúne informações do licenciamento ambiental de 41 portos que estão previstos, em construção ou em operação nas cidades de Santarém, Itaituba e Rurópolis, no oeste do Pará.

Os empreendimentos portuários nas margens do Rio Tapajós são projetados para o transporte de grãos do Centro-oeste do país. De acordo com o estudo, seu crescimento acelerado se deu principalmente após a criação da Lei de Portos (Lei nº 12.815/2013) e conta com uma série de lacunas e irregularidades nos processos de licenciamento ambiental, como a não realização de estudos de impacto ambiental e falta de consulta prévia, que contribuíram para violações de direitos de povos e comunidades tradicionais da região.

O estudo identificou que, dos portos públicos e privados analisados por meio do site da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) e da Lei de Acesso à Informação (LAI) nos três municípios até outubro de 2023, apenas cinco, dos 27 que estão em operação, possuem documentação completa do processo de licenciamento ambiental. Além disso, 16 possuem Licença de Operação sem apresentar Licença Prévia ou Licença de Instalação.

O baixo retorno e resultados da busca durante o estudo são considerados indícios de que as licenças não existam. Dessa forma, considera que a falta de disponibilização, transparência e divulgação dos documentos necessários para a concessão das licenças é uma violação de direitos.

“Há duas dificuldades no licenciamento ambiental hoje no Brasil e que são potencializadas na Amazônia e, consequentemente, no território do Tapajós. A primeira é a falsa interpretação de que o licenciamento, com todas as etapas que lhe são inerentes, é opcional. A legislação vigente deixa nítido que o processo é obrigatório e deve iniciar anteriormente à instalação de quaisquer atividades potencialmente poluidoras – no caso do estudo da Terra de Direitos, todos os empreendimentos analisados. Com um órgão licenciador de pouca ou nenhuma fiscalização e transparência do processo de licenciamento, as empresas têm caminhado pelo licenciamento corretivo, que deveria ser exceção, mas tem se tornado regra. Este é o caminho mais curto e barato para as empresas, e que produz as maiores violações de direitos humanos e danos socioambientais irreparáveis. A segunda é a compreensão atrasada de que o licenciamento serve para proteger um meio ambiente sem gente. Hoje, há uma interpretação sistêmica dos direitos sociais, culturais e ambientais no texto constitucional, que exige que o processo de licenciamento seja entendido como garantidor de direitos socioambientais, ou seja, de direitos que são também das pessoas, que muitas vezes se organizam coletivamente em povos, e da natureza”, destaca Bruna Balbi, assessora jurídica da Terra de Direitos.

Os dados do estudo mostram ainda que até 2013, sem a Lei de Portos, a região do Tapajós possuía 20 portos previstos, em construção ou em operação nos três municípios. Dez anos depois da Lei, ou seja, ao final de 2023, esse número mais que duplicou, chegando a 41 portos – um aumento de 105%.

O município de Itaituba concentra mais de 50% do total de portos analisados, com 14 em operação, seis previstos e dois em construção. É considerado central no processo de migração de instalações portuárias das regiões Centro-oeste, Sul e Sudeste, como parte de uma estratégia global de traders de commodities (grandes empresas de investimento) agrícolas para diminuição de custos, devido à sua localização próxima de mercados internacionais e pelas boas condições de navegabilidade do Rio Tapajós.

A manifestação da Semas-PA

A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) informou, por meio de sua assessoria de comunicação, que “não é o órgão responsável pelos processos de licenciamento de todos os empreendimentos citados na reportagem”. A Secretaria observou ainda que, “em alguns casos, o recorte que sustenta as conclusões do estudo citado é o de licenças que não estão mais em vigor”.

Por fim, a Semas informou que “os processos de licenciamento citados possuem temporalidades diferentes e que todos que estão sob competência estadual são avaliados de forma contínua, podendo passar por exigências de adequação ambiental, conforme legislação em vigor e entendimento do órgão técnico ambiental competente”.

Povos Impactados

O estudo da Terra de Direitos pontua que os impactos provocados pelos portos não podem ser vistos de forma isolada, pois é preciso considerar todo o complexo logístico e os danos acumulados ao meio ambiente e aos modos de vida de povos tradicionais como indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, agricultores familiares, ribeirinhos, dentre outros. Com os portos vieram, por exemplo, incentivos ao monocultivo de grãos que expandiram os latifúndios na região.

“Os impactos negativos que os portos trouxeram já faz um tempo… Primeiro, como exemplo da Cargill em Santarém, é que a chegada dos portos proporcionou também o apoio, financiamento e todo o fortalecimento da logística para que os sojicultores viessem de outras regiões, tendo em vista que Santarém não era um polo de produção de soja”, conta Maria Ivete Bastos, trabalhadora rural e presidenta do Sindicato de Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR). 

Para a organização, o estímulo ao monocultivo na região reforça a perspectiva de que os portos não chegam sozinhos ao território, pois há uma cadeia logística e de infraestrutura criada para garantir apoio e desenvolvimento ao agronegócio graneleiro, transformando dinâmicas sociais, econômicas e culturais, além de impactar fortemente o modo de vida de povos e comunidades tradicionais.

“O primeiro impacto foi a expulsão dos trabalhadores da terra porque a maioria não tinha documento de sua terra, eram apenas posseiros. Segundo, foi extinguindo também algumas comunidades, alguns igarapés foram poluídos, as pessoas foram ficando sem acesso por conta das cercas de arame farpado ou porque eles iam comprando [terras] de um, de outro ou expulsando porque as pessoas não se mantêm se não tiver as políticas públicas e a legalização das terras, então elas acabaram ficando vulneráveis e muitos saíram para a cidade”, conta Maria Ivete Bastos.

O estudo revelou que nenhum dos 41 portos identificados realizou o processo de consulta prévia livre e informada garantida aos povos e comunidades tradicionais determinado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. O tratado internacional ratificado pelo Brasil em 2004 determina que esses grupos sejam previamente ouvidos no caso de obras, empreendimentos ou medidas administrativas que possam afetar seus territórios ou modo de vida.

Porto de Petróleo Sabbá, em Itaituba. Crédito: M’Boia Produções

  • Carolina Lisboa

    Jornalista, bióloga e doutora em Ecologia pela UFRN. Repórter com interesse na cobertura e divulgação científica sobre meio ambiente.

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