Reportagens

O grilo-gigante e o acervo perdido do Museu Nacional

A descoberta de um novo gênero com os maiores grilos do mundo é um símbolo do início da reconstrução da coleção de entomologia da instituição

Peter Moon ·
15 de outubro de 2018 · 6 anos atrás
Exemplar da espécie Titanogryllus oxente, coletado em Porto Seguro-BA. Foto: divulgação.

“O meu maior objetivo na vida era conseguir um emprego em uma instituição de excelência, como o Museu Nacional,” confessa o biólogo Pedro Souza-Dias, de 32 anos. Natural de Dourados (MS), Pedro cresceu e teve sua formação básica em Foz do Iguaçu (PR). O mestrado ele fez na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu. O doutorado e o pós-doutorado foram na Universidade de São Paulo. Pedro especializou-se entomólogo, apaixonado que é por ortópteros, a grande ordem de insetos que reúne mais de 28 mil espécies de gafanhotos, grilos, esperanças e paquinhas. No Brasil foram descritas até o momento 1.743 espécies de 553 gêneros, de acordo com o Catálogo Taxonômico da Fauna do Brasil.

Em maio de 2018, Pedro prestou concurso para uma vaga de pesquisador no Departamento de Entomologia do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro. Foi aprovado. Nos três meses seguintes tratou dos detalhes da sua mudança de São Paulo, onde era pesquisador no Instituto de Biociências da USP.

“Eu estava muito ansioso. Queria vir logo. Queria conhecer os outros departamentos. Queria conhecer logo o laboratório onde iria trabalhar, as pessoas com quem iria conviver. Queria conhecer em detalhes a coleção de grilos e gafanhotos da qual seria curador. Por obra do destino, o meu primeiro dia de trabalho no museu foi agendado para a segunda-feira, 3 de setembro de 2018…”

“Na noite de domingo, dia 2, acho que eram oito da noite, eu estava na Barra com minha namorada, Mariane, em uma loja de utensílios para casa, comprando coisas para nosso apartamento. Foi quando fiquei sabendo do incêndio. Havia um monte de gente aglomerada em torno de uma tevê, que exibia as imagens do prédio em chamas. Largamos tudo o que estávamos fazendo e corremos para lá.”

O Palácio de São Cristóvão, no bairro homônimo, fica no alto de uma colina de contornos suaves, no parque da Quinta da Boa Vista. O palácio, inaugurado em 1803, foi a residência oficial da família imperial entre 1822 e 1889. Com a Proclamação da República, o edifício se tornou sede do Museu Nacional. Portanto, há 129 anos.

Museu Nacional em chamas. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil.

Diante do palácio, existe uma longa alameda arborizada que se estende por mais de 500 metros. No início dela, lá embaixo, no pé da colina, fica o portão principal do parque.

“Chegamos lá entre nove e meia e dez da noite. A Polícia Militar havia passado um cordão de isolamento ao redor do parque. Como eu só começaria a trabalhar no museu no dia seguinte, ainda não tinha em mãos a minha carteira funcional. Logo, os policiais não nos deixaram entrar. Eu e a Mariane tivemos que ficar ali, em pé no meio da multidão, atrás das grades do parque, assistindo até de madrugada o museu queimar…”

Na manhã seguinte ao incêndio, Pedro veio a saber que quase toda a coleção de 5 milhões de itens do Departamento de Entomologia, que começou a ser formada ainda no final do século 19, havia sido consumida pelo fogo.

“O Departamento de Entomologia ficava no Palácio, exceto um laboratório de Diptera (moscas) e parte da sua coleção, que ficava em um prédio anexo, e foi o único laboratório que sobrou”, disse.

A coleção de ortópteros, o grupo de insetos que Pedro estuda, era uma das maiores do mundo. O acervo do Museu Nacional tinha cerca de 35 mil espécimes, a maioria gafanhotos. Na coleção havia 273 espécimes-tipo (ou holótipos), que são os espécimes cujas características serviram para descrever novas espécies, no caso 273.

“Passei um mês sem conseguir acreditar no que havia ocorrido. Nos primeiros dias, ao acordar de manhã, desejava que tudo não tivesse passado de um pesadelo.”

Nas semanas seguintes, os pesquisadores e técnicos dos departamentos cujas instalações se perderam no incêndio (Antropologia, Arqueologia, Invertebrados, Entomologia e Paleontologia), foram sendo abrigados nos laboratórios dos colegas que ficam nos três prédios não atingidos pelo fogo: o do Departamento de Vertebrados, de Botânica e a biblioteca.

“Algumas coleções de Invertebrados sobreviveram. Ainda antes do incêndio tomar conta de todo o Palácio, os pesquisadores conseguiram retirar uma parte das coleções de Carcinologia e Malacologia. Outros laboratórios do Departamento de Invertebrados ficavam fora do Palácio e não foram atingidos. Entretanto, o Laboratório de Aracnologia e a sua coleção foram perdidos,” explica Pedro.

O biólogo Pedro Souza-Dias segura uma esperança do gênero Panoploscelis, inseto que pertence ao grande grupo dos grilos e gafanhotos. A fotografia foi tirada no Parque Nacional do Jaú, no rio Jaú, no Amazonas. Foto: Divulgação.

“Só agora, passados um mês, é que estou me acostumando com a nova rotina. Nós, da Entomologia, fomos abrigados no prédio dos Vertebrados. Os colegas nos receberam muito bem e procuraram nos acomodar da melhor forma possível,” diz Pedro.

Quanto tempo Pedro e seus colegas entomólogos vão ficar lá? Ninguém sabe dizer. A reconstrução do Palácio de São Cristóvão pode durar muitos anos. Isso se o governo federal e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, à qual é ligado, tornarem a reconstrução do Museu Nacional uma prioridade orçamentária. Um levantamento preliminar dá conta que, apenas para restaurar o palácio incendiado, serão necessários R$ 100 milhões. Isto sem contar talvez outros R$ 100 milhões necessários para levantar quatro ou cinco edifícios independentes, um para cada departamento destruído. Os departamentos de vertebrados e botânica sobreviveram tão somente porque isto já havia sido realizado nos anos 1990.

Enquanto os pesquisadores torcem para que a reconstrução do museu se torne realidade, Pedro, que deverá passar os próximos 30 anos naquela instituição, já sabe muito bem qual será a sua missão. “Pretendo lutar por apoio dos órgãos de fomento à pesquisa para financiar expedições por todo o Brasil. Nossa ideia é sair a campo para coletar gafanhotos, grilos e paquinhas, e recompor este acervo. A razão de ser de um museu é o estudo e a preservação de suas coleções. Inicialmente, vou a campo no Parque Nacional do Itatiaia, no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, na floresta da Tijuca e na Reserva Biológica do Tinguá, na Baixada Fluminense.”

A nova coleção de Orthoptera do Museu Nacional já começa grande, com 1.500 espécimes. “É o material que venho coletando ou que recebi de colegas desde 2006. Eu geralmente depositava no Museu de Zoologia da USP os espécimes de outros grupos de Orthoptera que coletava (gafanhotos e esperanças), ficando apenas com os grilos, para estudos da tese ou estudos futuros. Descrevi até o momento seis gêneros e 17 espécies de grilos.”

“Foi uma tremenda sorte esta coleção não ter queimado. Eu estava para trazê-la de São Paulo, mas aguardava o início do meu trabalho no museu para saber onde e em quais condições poderia depositá-la. No final foi bom, porque se a coleção já estivesse aqui, não mais existiria. É esse material que eu trouxe pra cá e que agora passará a fazer parte do meu laboratório e, consequentemente, da coleção entomológica do Museu Nacional.”

Os maiores grilos do mundo são capixabas e baianos

Um macho da espécie Titanogryllus salgado, com 6 cm de comprimento, coletada em Linhares-ES. Foto: Divulgação.

A coleção de ortópteros reunida por Pedro é basicamente composta por grilos, além de alguns gafanhotos e esperanças. “Eu tenho algumas fêmeas e ninfas de Titanogryllus, além da série-tipo, que ficaram em São Paulo.”

Como o nome indica, Titanogryllus ou “grilo-titã”, é um gênero de grilos gigantes da Mata Atlântica. Seu nome remete aos titãs, gigantes da mitologia grega. “Trata-se dos maiores grilos das Américas, e possivelmente do mundo, rivalizando apenas com um outro gênero de Madagascar,” explica Pedro. “Titanogryllus salgado, a maior das três espécies conhecidas para o gênero, é muito grande, muito robusto. Os machos têm cerca de 6 a 7 centímetros. As fêmeas são muito maiores. Elas medem 8 centímetros. São de duas a três vezes maiores do que as outras espécies da subfamília Gryllinae.”

A subfamília Gryllinae possui 1.342 espécies e 161 gêneros espalhados pelas florestas tropicais de todo o mundo. Em média, estes insetos têm entre 1,5 e 2,5 centímetros de comprimento.

Apesar de seu porte avantajado, que se destaca sobremaneira entre todos os Gryllinae, o gênero Titanogryllus era desconhecido da ciência até muito pouco tempo atrás. O novo gênero e as três espécies atualmente conhecidas foram descritos há apenas 6 meses, em março de 2018, num trabalho publicado em Zootaxa. Os principais autores do estudo são Pedro Souza-Dias e a pesquisadora indiana Ranjana Jaiswara, da Universidade Panjab, em Chandigarh, Índia.

Os primeiros exemplares de Titanogryllus foram coletados nos anos 1980 e 1990 pelo biólogo Francisco de Mello, da Unesp de Botucatu (SP), porém só foram agora estudados.

“Isto aconteceu porque a Ranjana começou a estudar alguns indivíduos que descobrira na coleção do Museu Nacional de História Natural, em Paris. Ela entrou em contato comigo me convidando a participar da descrição deste espécime e eu lembrei que meu ex orientador, o prof. Dr. Francisco de Assis Ganeo de Mello havia coletado espécimes parecidos desde o final dos anos 80 e identificado como um novo gênero. O Francisco e eu tínhamos exemplares em nossos laboratórios e então decidimos ver todo esse material, reunindo espécimes coletados ao longo de muito tempo, em datas esporádicas, de 1989 a 2012. Esses indivíduos possibilitaram a descrição deste novo gênero e 3 novas espécies”, diz Pedro.

Macho da espécie Titanogryllus oxossi, coletado em Mucuri-BA. Foto: Divulgação.

A espécie Titanogryllus salgado, a maior das três, foi descrita com base em três machos e sete fêmeas, coletados na Reserva Natural Vale, em Linhares (ES).

A espécie T. oxossi (referência a uma divindade Oxóssi, da umbanda) foi descrita com base em quatro indivíduos (dois machos e duas fêmeas), coletados em Mucuri, no extremo sul da Bahia, quase na divisa com o Espírito Santo.

Já a espécie T. oxente (da interjeição nordestina ôxente, que exprime espanto, surpresa) foi descrita a partir de cinco machos, coletados na Bahia, próximo a Porto Seguro.

“É surpreendente que, no século 21, um gênero de grilos tão grandes continuasse desconhecido da ciência. Ainda mais quando se sabe que foram coletados em fragmentos de Mata Atlântica. No sul da Bahia ela foi praticamente dizimada. Só sobraram as áreas de conservação,” explica Pedro.

As coletas efetuadas por Pedro foram realizadas enterrando baldes no solo da floresta e averiguando, no dia seguinte, o que havia caído lá dentro. “As coletas foram feitas à noite. Titanogryllus são insetos que vivem junto ao solo. A gente suspeita que parte destes grilos habitem tocas, das quais saem à noite para buscar alimento ou acasalar. Talvez seja por causa de seus hábitos noturnos que o gênero permaneceu desconhecido até hoje.”

A descoberta de Titanogryllus é um demonstrativo cabal da riqueza da biodiversidade dos biomas brasileiros, mesmo daqueles mais atingidos pela devastação e pela expansão da atividade humana.

Se a perda das coleções do Museu Nacional é uma tragédia irreparável, ainda assim há a certeza de que, graças ao esforço de profissionais como Pedro Souza-Dias, aliado ao contínuo apoio à ciência por parte de governo e sociedade, muito do acervo perdido poderá, com o tempo, ser recomposto.

Algumas perdas, sabe-se, serão para sempre. Mas nossa biodiversidade é das mais ricas do planeta. Sempre haverá lugar na reserva técnica do futuro Museu Nacional para guardar novas surpresas. Um ótimo exemplo é o maravilhoso gênero dos grilos-titãs.

 

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  • Peter Moon

    Peter Moon é um repórter científico, historiador da ciência e pesquisador da história natural da América do Sul

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