Uma obra contra a estiagem de 2023 facilitou a caça de cervos-do-pantanal em áreas protegidas estaduais na vizinhança de Porto Alegre (RS), avalia uma entidade civil. População regional da espécie ameaçada de extinção estaria encolhendo. O governo estadual garante agir para conter pressões.
A seca que atingiu o Rio Grande do Sul no ano passado foi uma das mais severas da história. A situação levou o estado e dezenas de municípios a decretarem situação de emergência. Isso disparou uma série de medidas para garantir água à população, indústria e agricultura.
No entorno da capital gaúcha, uma das obras foi a desobstrução do “canal do DNOS”, conectado a uma barragem cuja água irriga cultivos em assentamentos rurais. A empreitada reduziu a penúria do rio Gravataí, que abastece mais de 700 mil pessoas em Viamão, Gravataí e Alvorada.
O canal havia sido aberto em 1960 para drenar banhados e favorecer a expansão de lavouras. A sigla DNOS remete ao Departamento Nacional de Obras de Saneamento, ativo de 1940 a 1990. Todavia, ao longo das décadas, a via fluvial de quase 7,4 km acabou assoreada.
A liberação das águas coube ao governo estadual. Equipamento pesado, barcos e servidores removeram toneladas de sedimentos e vegetação do canal no início do ano passado. Ao mesmo tempo, a obra pode ter facilitado caçadas de espécies como o cervo-do-pantanal.
Coordenador Técnico e de Políticas Públicas do Instituto Curicaca, Alexandre Krob pondera que o vai-e-vem das máquinas e veículos abriu uma estrada ao longo do canal que, desobstruído, também azeitou o trânsito de barcos desde o rio Gravataí. “Isso favoreceu o acesso de caçadores às áreas protegidas”, diz.
Pois, imagens obtidas pela entidade civil mostram restos de ao menos um cervo abatido no ano passado. A carcaça foi encontrada na Área de Proteção Ambiental (APA) do Banhado Grande, ao redor do Refúgio de Vida Silvestre (RVS) Banhado dos Pachecos.
Conforme Krob, os criminosos caçam de jacarés a capivaras e, se cruzarem com os raros cervos-do-pantanal, não poupam munição. A carne e couro dessas espécies seriam consumidos. “Chifres serrados denunciam que foram levados como troféus de caça”, conta.
Uma fonte regional e que pediu anonimato por temer represálias pondera que o movimento de caçadores cresceu com a abertura do canal, mas também pela suposta falta de fiscalização, pessoas, armas e munição para proteger as reservas.
“Muitos se aproveitam do nível alto do rio Gravataí para chegar a lugares ermos e antes isolados. Hoje só não caça quem não quer”, contou a ((o))eco por WhatsApp.
Por sua vez, a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Estado do Rio Grande do Sul (Sema) avalia que a reabertura do canal do DNOS não favoreceu a entrada de caçadores nas áreas protegidas, sobretudo no Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos.
“Não há dados sólidos e sistematizados que possam comprovar que isto realmente tenha se dado”, afirmou por WhatsApp a Assessoria de Imprensa do órgão ambiental estadual.
A Sema afirma que patrulhas rotineiras não indicam uma maior incidência de caçadores e, ao mesmo tempo, mostram que o cervo-do-pantanal segue ocupando as margens do canal e “se deslocando facilmente de uma margem para a outra”.
O órgão estadual reconhece que três cervos foram encontrados mortos na última década na APA do Banhado Grande, num assentamento rural. “Não é possível afirmar a causa que vitimou esses animais, não havendo qualquer indício incontestável levando a crer que o motivo teria sido a caça”, diz.
Já no refúgio de vida silvestre, um cervo foi localizado sem vida em 2014. O animal seria um macho adulto já debilitado, com alguma enfermidade. “Dentro do refúgio de vida silvestre não há qualquer registro conhecido de cervo-do-pantanal morto por caça”, afirma a Sema.
Mas Alexandre Krob, do Instituto Curicaca, lembra que os cervos se movimentam por grandes territórios, entre as unidades de conservação e fora de seu traçado. Logo, não se pode afirmar que cervos abatidos na APA não tenham origem no refúgio.
“O refúgio de vida silvestre não é um zoológico, não tem cercas impedindo a circulação dos animais. Sua conservação depende de ações para bem além dos limites do refúgio”, afirma o coordenador Técnico e de Políticas Públicas da ong.
O Ministério Público Estadual (MPE) levantou para ((o))eco 8 flagrantes e denúncias por forças policiais de caça e pesca ilegais em ambas as unidades de conservação habitadas pelo cervo-do-pantanal, entre 2016 e 2023.
Diminuta, isolada e arredia
Espécie listada pela Ciência em 1815, o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus) é o maior cervídeo vivendo na América Latina. Um macho adulto pode chegar a 130 kg. Ocupa regiões com banhados, pântanos e outras áreas úmidas e alagáveis.
Sua população é estimada em quase 70 mil animais no Brasil. Desse total, 44 mil cervos (64%) estão no Pantanal. No restante do país, grupos vivem na Estação Ecológica de Jataí (SP), no Parque Estadual das Várzeas do Rio Ivinhema e na Fazenda São Francisco (MS) e, claro, nas duas reservas gaúchas. Na Argentina, o animal habita pântanos no Delta do Rio Paraná e nos Esteros del Iberá.
Os números da espécie encolhem no Brasil pelo avanço do agronegócio, barramento de rios e mudança de alagados por hidrelétricas, caça por carne e couro e outras pressões humanas. Nas áreas protegidas pelo Governo do Rio Grande do Sul, são estimados apenas cerca de 30 cervos-do-pantanal.
“É uma população isolada e em declínio. Cada animal perdido aumenta seu risco de extinção”, ressalta Alexandre Krob, coordenador Técnico e de Políticas Públicas do Instituto Curicaca. A ong lidera um programa estadual de conservação do cervo-do-pantanal.
Pós-doutorando em Ecologia na Universidade da Flórida, Ismael Brack acompanha os cervos-do-pantanal em terras gaúchas há uma década. Parte da pesquisa usa drones e inteligência artificial para quantificar e identificar movimentos dos animais dentro e fora das reservas ecológicas.
A APA do Banhado Grande Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos somam quase 140 mil ha, similares à área do município de São Paulo (SP), mas os animais se concentram nos 2,5 mil ha do refúgio, onde a presença humana é mais restrita do que na primeira reserva.
Para Brack, a área mais protegida pode ser pequena para a manutenção da espécie no longo prazo. Além do cruzamento entre uma população reduzida, fonte de possível empobrecimento genético, crescem as chances de crimes como a caça e conflitos com atividades humanas.
Sobretudo as crias de cervos-do-pantanal e outras espécies de menor porte nas unidades de conservação estaduais são atacados por matilhas de cães domésticos abandonados, além de poderem sofrer com agrotóxicos usados em lavouras como de arroz.
Um trabalho de pesquisadores brasileiros e estrangeiros mostrou que ações humanas fizeram grupos de cervos no Brasil e na Argentina adotarem hábitos mais noturnos. “A população gaúcha é a mais noturna que se conhece da espécie, porque está com mais pressão antrópica”, detalha Brack.
Conservação conectada
Para reduzir as pressões sobre os cervos-do-pantanal, entidades civis, pesquisadores e governo uniram forças para conectar áreas preservadas e conter ilícitos como a caça e a disseminação de cachorros nas unidades de conservação.
“Se tiver um ambiente favorável, esses animais vão acabar se dando bem no longo prazo”, avalia Ismael Brack, doutor em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Sem o cervo, serviços das áreas úmidas como abastecer com água de qualidade a produção agrícola e a Região Metropolitana podem ser prejudicados. “O cervo é só mais uma pecinha no ecossistema da região”, agrega o cientista.
Nesse sentido, um termo ajustado entre os ministérios públicos Federal, Estadual e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) alavancou a formação de um corredor ecológico do Banhado dos Pachecos às várzeas do rio Gravataí, junto ao canal do DNOS.
Ele ligará áreas favoráveis ao cervo-do-pantanal no interior e fora das reservas estaduais. A medida é associada à restauração de áreas degradadas pela produção rural, mostrou o Mongabay Brasil. Sua execução depende de novas medidas dos governos federal e estadual.
De acordo com o plano de manejo do refúgio de vida silvestre, de 2022, a maior proteção, recuperação e interligação de áreas úmidas regionais pode ampliar a distribuição e os números da população de cervos-do-pantanal na Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí.
Já para conter ataques e predação de cervos por cães domésticos, o governo estadual e instituições parceiras executam campanhas de vacinação, manejo e castração desses animais, bem como conscientização de moradores próximos ao refúgio de vida silvestre.
Além de proteger o cervo-do-pantanal, ações como essas ajudam a manter ambientes favoráveis a mais de 60 espécies de mamíferos, répteis, anfíbios e aves abrigadas nas unidades de conservação, incluindo as belas veste-amarela (Xanthopsar flavus) e noivinha-de-rabo-preto (Heteroxolmis dominicanus).
Para Ismael Brack, a população de cervos poderia se manter a longo prazo mesmo com os usos atuais do território, mas não com a tendência de transformação dos remanescentes de áreas úmidas para expansão da agricultura, sobretudo do arroz.
“É uma situação que depende de um planejamento de um mosaico com diferentes usos, alguns mais restritos, outros não, mas claro também diminuindo algumas fontes de ameaças, como a caça e os cães, e mantendo e talvez até regenerando áreas úmidas”, arremata o pesquisador.
As polícias Militar e Civil não informaram sobre registros de caça de cervos-do-pantanal nas áreas protegidas gaúchas até o fechamento da reportagem.
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Deveriam passar a responsabilidade de gerenciamento de unidades para outro orgão. É evidende que a Sema não é qualificada para essa atividade. Realmente uma pena para nossa fáuna.