Reportagens

O gato fantasma do Pampa: o felino mais ameaçado do mundo

Pesquisadores tentam monitorar o raro e ameaçado gato-palheiro-dos-pampas e construir estratégias para salvá-lo da extinção. Restam menos de 50 indivíduos na natureza

Duda Menegassi · Geórgia Santos ·
23 de agosto de 2023

Bastou um clique. O contraste da cena em preto e branco evidencia as listras pretas que estampam as quatro patas do felino. A característica é inconfundível: trata-se de um gato-palheiro-do-pampa, um dos felinos mais ameaçados do mundo, com menos de 50 indivíduos estimados na natureza. Fotografá-lo em seu ambiente natural é um ato raro o que faz dessa singela fotografia, feita por uma armadilha fotográfica, inestimável.

“A armadilha filma e fotografa, quando acionada pelo sensor de movimento, mas o equipamento teve uma falha técnica e não filmou, mas pelo menos ficamos com a foto”, conta a professora Ana Rovedder. A pesquisadora coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas (NEPRADE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), responsável pelo projeto RestauraPampa, realizado com apoio do GEF Terrestre, através do Funbio, e iniciou este ano a coordenação da Rede Sul de Restauração Ecológica.

O registro foi feito em janeiro deste ano, na Reserva Biológica do Ibirapuitã, uma área protegida estadual de 351 hectares, situada no município gaúcho de Alegrete, no sudoeste do estado. É a primeira vez que o animal é documentado dentro de uma unidade de conservação.

O gato-palheiro-do-pampa (Leopardus munoai), como o nome sugere, possui uma relação íntima com o bioma gaúcho e sua cor “de palha”, permite que ele se camufle na vegetação campestre. Sua distribuição sobrepõe-se a dos campos nativos, que se estendem do Rio Grande do Sul para o Uruguai e Argentina. 

Monitorá-lo, entretanto, não é fácil. “Ele é um gato errante, um gato fantasma, ele não forma famílias e anda o tempo inteiro. E ele precisa do campo, não é um gato de floresta”, enfatiza Rovedder em entrevista feita em parceria por ((o))eco e o portal de jornalismo Vós, que transformou a história em podcast (escute no player abaixo).

O zoólogo Fábio Mazim, consultor ambiental que apoia o projeto de monitoramento e membro do Pró-Carnívoros, reforça que essa relação é mais específica ainda, já que os gatos-palheiros preferem campos que não sejam nem muito rasteiros, nem muito arbustivos. “Hoje restam só em torno de três milhões de hectares desse campo, sendo que ele sofre muito impacto”, ressalta.

Somada ao principal problema, que é a perda de habitat, estão ameaças como predação por cachorros, caça por retaliação e atropelamento.

“Setenta por cento dos registros que nós temos é por atropelamento. Sabe por quê? Porque eles estão se restringindo a viver nas faixas de domínio de rodovia [as laterais da pista] que é o único lugar que não está impactado pela agricultura. Então aquele campinho que fica ali é a área que eles estão e aí se torna uma armadilha ecológica”, explica Fábio.

Um levantamento recente liderado pelo zoólogo mostra que desde que a espécie foi descrita, no início do século XX, foram feitos somente pouco mais de 200 registros deste gato, o que equivale a 1,28 por ano.

O gato-palheiro-do-pampa é considerado o felino mais ameaçado do Brasil e possivelmente o mais ameaçado do mundo. Estima-se que existam apenas entre 35 e 50 indivíduos na natureza. “É uma espécie que não se salva mais sozinha. Tem que ter interferência humana”, sentencia o zoólogo. 

Registro da armadilha fotográfica instalada na Reserva Biológica do Ibirapuitã, o primeiro feito dentro de unidade de conservação. Fonte: Projeto RestauraPampa

Ainda que possa ser considerada uma medida drástica, Fábio acredita que talvez a única solução para a espécie seja capturar indivíduos de vida livre para reproduzí-los em cativeiro, o que é chamado de manejo ex situ, ou seja, fora do ambiente natural. Atualmente, não há nenhum indivíduo da espécie em cativeiro no Brasil. A única experiência do tipo acontece no Uruguai, onde há três desses felinos em cativeiro, mas, até agora, os biólogos uruguaios não tiveram sucesso nas tentativas de reprodução. “Porque senão vai se perder não apenas a espécie na natureza, mas também na face da terra”, alerta. 

Apesar disso, a espécie nem sequer aparece na Lista Vermelha da fauna ameaçada do país. Na época da avaliação de felinos, atualizada pela última vez em 2014, conhecia-se somente uma espécie de gato-palheiro, o Leopardus colocolo – classificado como Vulnerável à extinção – que teria duas subespécies. Isso foi revisto apenas em 2020, quando a ciência passou a reconhecer o gato-palheiro-do-pampa (Leopardus munoai) como uma espécie.

O trabalho de monitoramento começou em dezembro de 2020, com armadilhas fotográficas em duas unidades de conservação. Além da Rebio, onde o gato-palheiro foi documentado, há câmeras no Parque Estadual do Espinilho, a cerca de 200 quilômetros da reserva biológica.

Por serem animais errantes e solitários, é muito difícil monitorá-los. Através das câmeras, os pesquisadores esperam conseguir novas informações sobre a espécie, sobre a qual ainda se sabe muito pouco. “A gente manteve as câmeras nos mesmos locais, porque se a gente conseguir captar comportamento fixo em uma trilha, em um local, talvez seja a primeira vez que a gente vai poder falar em população de gato-palheiro, porque como eles são solitários”, explica Ana Rovedder, professora da UFSM.

Esse comportamento solitário era reforçado pelo fato de que, até muito recentemente, não havia o registro de nenhuma população de gato-palheiro-do-pampa. Graças ao esforço de monitoramento dos projetos de conservação, foi possível fazer seis novos registros da espécie por armadilha fotográfica e identificar duas populações, em dois locais diferentes. “É a primeira vez que se repete o registro dos mesmos indivíduos”, comemora o consultor do projeto Fábio Mazim.

Armadilha fotográfica flagra o gato-palheiro. Imagem: “Expedição Gato-palheiro-pampeano”

Os novos registros foram feitos pelas câmeras do RestauraPampa e da “Expedição gato-palheiro-pampeano”, iniciativa da qual também participa Fábio Mazim, do Pró-Carnívoros, junto com outros quatro pesquisadores, três consultores da iniciativa privada e um representante do Ibama do Rio Grande do Sul.

“O nosso plano hoje é tentar registrar uma população ou indivíduos que estejam ocupando um território de forma residencial. E aí tentar capturar, colocar um rádio colar e monitorar ecologia espacial. Ver realmente qual é o tipo de campo que ele gosta e necessita, tamanho de área de vida, etc”, explica o zoólogo.

As imagens das armadilhas fotográficas do RestauraPampa são monitoradas a cada trimestre. Junto com o registro do gato-palheiro-do-pampa, também foram flagrados outras duas espécies de felinos: o gato-do-mato-grande (Leopardus geoffroyi), documentado no Parque Estadual do Espinilho, e o gato-maracajá (Leopardus wiedii), que foi registrado na Reserva Biológica do Ibirapuitã. Ambas as espécies são classificadas como Vulneráveis à extinção no país.

“São duas unidades de conservação muito invisibilizadas e esses registros mostram o valor dessas áreas, que são os corredores finais de Pampa que a gente tem. Se a gente não tiver elas, a gente não tem refúgio para essa fauna e flora específica”, destaca Rovedder.

A especificidade da biodiversidade citada pela pesquisadora é o que a ciência chama de endemismo, ou seja, as espécies que só ocorrem num local ou bioma específico, que coevoluíram com o ambiente e, por isso, só conseguem sobreviver ali. É o caso do gato-palheiro-do-pampa, mas não apenas dele. A vegetação dos campos sulinos abriga mais de 400 espécies endêmicas da flora, com ocorrência restrita ao Pampa brasileiro. 

“O Pampa é um dos biomas de campo mais biodiversos do mundo”, reforça Ana Rovedder.

Em contrapartida, apenas 3,14% do Pampa está coberto por unidades de conservação, que equivalem a menos de 600 mil hectares. Dentro desse já pequeno território protegido, menos de um quarto (21,4%) contam com proteção integral, o restante está na categoria de uso sustentável, mais flexível e permissivo às atividades humanas e seus impactos.

“O comportamento do gato-palheiro-do-pampa é se esconder nas moitas de campo, ali ele esconde os filhotes, se reproduz, se alimenta de pequenos ratinhos nativos do pampa. Ele tem todo o comportamento de alimentação, abrigo e reprodução nos campos. A espécie demora milhares de anos para se adaptar a esse campo, sem campos como ela vai fazer?”, destaca a pesquisadora da UFSM.

Os campos típicos do Pampa, cada vez mais ameaçados. Foto: Geórgia Santos

É preciso proteger o pampa

O Pampa foi o bioma brasileiro que mais perdeu vegetação nativa entre 1985 e 2021, em termos proporcionais, de acordo com dados do Mapbiomas. No período, 3,4 milhões de hectares de diferentes tipos de campos deram lugar para a agricultura e silvicultura, o que representa uma perda de 29,5% de vegetação. 

Dentro dos diferentes tipos de vegetação do Pampa, são justamente as áreas campestres que mais sofreram. Os campos perderam 36% de cobertura entre 1985 e 2021, em grande parte para dar espaço às monoculturas.

As áreas ocupadas pelo homem já cobrem quase metade do bioma, sendo 41,6% somente para a agricultura. O plantio de madeiras para exploração, como eucalipto e pinus, também tem avançado nas últimas décadas.

“A soja e a silvicultura comercial entraram muito forte nesses últimos quatro anos. A gente está perdendo campo nativo e o gato-palheiro precisa do campo nativo”, conta Ana Rovedder. 

A pesquisadora alerta ainda para uma proposta de alteração do zoneamento ambiental para a atividade da silvicultura, que pode quadruplicar a área de floresta plantada de eucalipto sobre os campos nativos. A proposta está em discussão na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

O zoólogo Fábio Mazim reforça que o Pampa – e os campos de forma geral – é invisibilizado e tem muito menos espaço na agenda de conservação do que as florestas. “Outro problema, ele [o gato-palheiro] está num habitat, que é o campo, sobre um solo totalmente fértil, que é o solo pampeano. Tanto no sul do Rio Grande do Sul, quanto no Uruguai e no pedacinho que ele ocorre no oeste argentino, e está sendo convertido em lavoura”, acrescenta.

Soja avança sobre os campos do Pampa no Brasil. Foto: Silvio Avila/AFP

Tão pouco do Pampa é protegido, que todos os outros registros conhecidos anteriores do gato-palheiro-do-pampa foram feitos em áreas particulares. Em outubro do ano passado, a espécie foi vista em uma vinícola na região da Campanha Gaúcha, mais ao sul do estado.

Recentemente, em artigo científico na Biota Neotropica, foi divulgado o registro inédito de um gato-palheiro-do-pampa melânico, ou seja, todo preto, feito em julho de 2021, numa área rural do município de Rosário do Sul.  

O monitoramento de fauna realizado pelo RestauraPampa também está de olho em outra ameaça ao gato-palheiro: as espécies exóticas invasoras. Além dos javalis – que invadem cada vez mais áreas no Brasil – os cervos conhecidos como chital (Axis axis), nativos das florestas asiáticas. 

Para além de uma eventual competição por recursos, a presença de invasores representa um desequilíbrio nos ecossistemas nativos e suas espécies originárias, como o gato-palheiro.

Esta reportagem foi feita em parceria de ((o))eco com o portal de jornalismo Vós.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

  • Geórgia Santos

    Jornalista e cientista política. Idealizadora e apresentadora do portal Vós de jornalismo

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Comentários 3

  1. Fabrício Moreira Ferreira diz:

    Prezados, meu nome é Fabrício Moreira Ferreira. Sou professor de biologia e pesquisador. Fiz o meu doutorado e pós-doc em Botânica focado em um grupo de bambus herbáceos da Mata Atlântica e Amazônia. Gostaria de sugerir uma matéria sobre o grupo que é extremamente ameaçado e ainda pouco conhecido.
    Att
    http://lattes.cnpq.br/9991720524179957


    1. Stéphanie Ferreira diz:

      Pessoal, além do financiamento que já existe, tem algum crowdfunding pra esse tipo de projeto?


  2. Leila diz:

    Mas esses gaúchos são uns sem-noção mesmo, pra não falar o pior aqui, porque eu tenho 2 vizinhos do interior do RGS, eles odeiam árvores, cuida muito mal dos bichos (acha que bicho não sofre, não precisa passear(interagir com outros), não tem respeito algum por outros seres vivos e pela natureza. Deve ter gente boa por lá, mas a cultura deles é de maus-tratos e desrespeito à Mãe Natureza Eles têm que ser reeducados, urgentemente.