O comércio de ararinhas-azuis e de araras-azuis-de-lear pode ser liberado em reunião da entidade que regula o comércio de espécies ameaçadas, em Genebra (Suíça). Órgãos federais, entidades civis e cientistas são contra, pois a medida pode estimular crimes e não ajudaria a conservar as aves.
Os negócios com as aves brasileiras sob alto risco de extinção serão debatidos pela Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), de 6 a 10 de novembro. Isso geraria recursos para conservação, alegam seus defensores.
Consultados por ((o))eco, Ibama e ICMBio afirmam ser “terminantemente contrários” ao comércio de ambas espécies, mesmo de cativeiro, “tendo em vista o potencial dano, de difícil reversão para a própria conservação dessas espécies, que tal atividade representa”.
“Os órgãos não aprovam a venda de ararinhas-azuis e de arara azul-de-lear, mesmo sob o argumento da necessidade de custear ações para programas de conservação dessas espécies”, afirmam as autarquias em nota conjunta, que pode ser conferida aqui.
A posição subsidiará a diplomacia brasileira na reunião da Cites. Afinal, o Ibama administra a importação e exportação de espécies listadas na Cites, enquanto o ICMBio é a autoridade científica nacional da Convenção e maneja planos para conservar espécies em risco de extinção.
Todavia, mesmo antes de um aval ao comércio das aves brasileiras pela Cites, uma nota técnica da entidade reconhece que 26 ararinhas-azuis e 4 araras-azuis-de-lear seguiram em fevereiro para um megazoológico em construção na Índia.
O documento avalia que os “significativos valores” da transação não configuram “comércio” porque seriam aplicados na proteção das espécies. Todavia, não há detalhes sobre onde e quando os recursos serão aplicados, diz a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (RENCTAS).
O zoológico é ligado ao indiano Mukesh Ambani e promete exibir a maior coleção global de espécies raras. A revista Forbes o lista como o nono mais rico do mundo. Seus negócios com petróleo e gás, telecomunicações, varejo e serviços financeiros somam o equivalente a R$ 550 bilhões.
Por sua vez, Ibama e ICMBio contam que não foram informados sobre a transferência e que a mesma não está ligada a iniciativas para conservação das araras. “Nenhuma instituição na Índia participa de programas de conservação de espécies brasileiras”, afirmam.
Além disso, os órgãos federais não reconhecem que possa haver excedentes de ararinhas-azuis em cativeiro para justificar a transferência de aves para qualquer finalidade que não seja conservacionista. “Todo indivíduo de ararinha-azul é essencial para o programa de conservação”, destacam.
A Cites permite o comércio de espécies mesmo ameaçadas, desde que autorizado e controlado pelos países exportadores. Isso ajudaria a frear sua exploração excessiva. As regras derivam de uma resolução adotada em 1963 pela União Mundial para a Natureza (UICN).
Dez anos depois, a convenção foi alinhada por 80 países reunidos em Washington (Estados Unidos), em 1973. Ela entrou em vigor em 1975, mesmo ano em que o Brasil a promulgou. Até hoje, 184 nações aderiram ao acordo, apoiado pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Ameaças explícitas
A proposta para comércio de ararinhas-azuis (Cyanopsitta spixii) e de araras-azuis-de-lear (Anodorhynchus leari) surgiu após uma visita de representantes da Cites à ACTP, este ano. A Convenção veta atualmente qualquer transação com as espécies.
Para o coordenador-geral da RENCTAS, Dener Giovanini, a liberação de negócios com as aves contraria recomendações internacionais de conservação e, sobretudo, beneficiará negócios privados inflando os preços de animais em cativeiro.
“Permitir o comércio dessas espécies é antiético, estimulará sua extinção na natureza e prejudicará o trabalho de quem realmente quer recuperar suas populações”, descreve o ativista, cujos protestos foram reforçados por políticos e entidades brasileiras e estrangeiras.
Duas dezenas de ongs pediram à Cites e à Comissão Europeia que impeçam negócios com as duas araras. Os ministérios do Meio Ambiente e das Relações Exteriores foram provocados para barrar a proposta pelo deputado Felipe Becari (União/SP) e por instituições ligadas à conservação das aves.
A proposta para comércio das araras exclusivas do Brasil foi localizada nos documentos da Cites pela RENCTAS. A entidade pediu ao Ministério Público Federal (MPF) que investigasse o caso e solicitasse ao Governo Federal um rechaço à “proposta de comercialização das espécies ameaçadas”.
Corda bamba
Mesmo com suas populações quase que restritas a unidades de conservação na Caatinga baiana, as duas araras exclusivas do país são vítimas de caça, desmatamento e tráfico. Não bastando, pairam suspeitas sobre a confiabilidade de criadores estrangeiros das espécies.
A ararinha-azul havia sido extinta há duas décadas da Caatinga, mas algumas aves são reintroduzidas numa reserva desde 2022. Os animais vieram da ACTP por meio de um acordo assinado com o Governo Brasileiro, em 2019. A ação é apoiada por uma empresa de um servidor licenciado do ICMBio.
Uma reportagem de ((o))eco conta que o presidente da entidade, Martin Guth, estaria ligado ao tráfico de espécies e outros crimes. Os casos ganharam matérias como do jornal britânico The Guardian e do Projeto de Reportagem sobre Crime Organizado e Corrupção (OCCRP, sigla em Inglês).
Entramos em contato com Martin Guth, mas ele não respondeu aos nossos questionamentos até a publicação desta reportagem.
A situação não é menos nebulosa para a arara-azul-de-lear, com cerca de 2,2 mil aves voando livres no interior da Bahia. Também sob risco de sumir do mapa, a ave foi vítima este ano de alarmantes casos de tráfico internacional.
Em maio, três desses animais foram apreendidos no Aeroporto Internacional de Daca, capital de Bangladesh. As aves morreram em agosto, declarou o governo do país asiático, encravado entre a Índia e o Myanmar. O Ibama pediu suas carcaças, mas Bangladesh ainda não respondeu ao pedido.
Dois meses depois, em julho, 29 araras-de-lear e 7 micos-leões-dourados foram confiscados no Suriname, país vizinho sul-americano. Todavia, 23 araras foram roubadas na madrugada anterior a seu voo para o Brasil. Ainda não há informações sobre o paradeiro dos animais.
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