Pedra fundamental é o nome dado ao primeiro bloco de uma construção, aquele que marca o início da edificação que vem a seguir. E em 1979, no meio de um terreno em Guapimirim, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, foi colocada a pedra fundamental para o desenvolvimento da primatologia no Brasil. Com um prédio e 20 recintos, a fundação foi simples, mas sólida. Nascia ali o Centro de Primatologia do Rio de Janeiro, mais conhecido pela sua sigla, CPRJ. E junto com ele, o estudo de primatas no país ganhava a sua base.
“O CPRJ é o verdadeiro marco físico da primatologia no Brasil”, sentenciou uma vez o professor e médico-veterinário Milton Thiago de Mello. Referência na primatologia, Milton faleceu, aos 108 anos, na semana anterior do evento de aniversário do centro, realizado nos dias 9 e 10 de outubro.
O veterinário foi um dos homenageados durante a celebração de 45 anos do CPRJ e os muitos nomes que foram parte essencial desta história, como Adelmar Coimbra-Filho, fundador do centro, e considerado por muitos o pai da primatologia no Brasil, que faleceu em 2016.
“Eu conheci o Coimbra em 1971 e conversamos muito. Ele tinha muitas ideias. Naquela época não tinha quase nada de primatologia no Brasil e ele tinha uma visão, que ninguém tinha ainda, de que isso seria algo muito importante pro Brasil, porque é o país com a maior diversidade de primatas do mundo”, lembra Russell Mittermeier, primatólogo americano que tornou-se ele próprio uma referência no estudo e conservação de primatas e atual diretor de Conservação (Chief Conservation Officer) da Re:wild.
Quando os dois se reencontraram, em 74, Coimbra já havia criado o Banco Biológico do Mico-Leão (1971-1979), dentro do Parque Nacional da Tijuca, voltado para o trabalho em cativeiro com os micos-leões-dourados (Leontopithecus rosalia), que estavam à beira da extinção, com menos de 200 indivíduos estimados na natureza, e os micos-leões-pretos (Leontopithecus chrysopygus), que haviam acabado de ser redescobertos.
“Foi o embrião do CPRJ. Ele [Coimbra] queria algo maior, mas na época não era possível. E ele continuou perturbando a FEEMA [Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente, extinta em 2007 com a criação do Inea] até conseguir”, conta Russ.
Ao lado de Coimbra-Filho nessa empreitada com a então FEEMA para construção do centro estava outro personagem fundamental. Uma figura sem a qual não se conta a história do CPRJ. Alto e esguio, com uma fala rápida, mas sempre gentil, Alcides Pissinatti é, tal qual o centro que ele ajudou a criar, uma referência.
Nascido em Mogi Mirim, no interior de São Paulo, Pissinatti veio para o Rio de Janeiro para seguir com seus estudos de veterinária, onde formou-se na Universidade Federal Fluminense em 1970. Cinco anos depois, Pissinatti foi incorporado ao quadro da recém-criada FEEMA e seu caminho se cruzou com o da primatologia – e Adelmar Coimbra-Filho.
“Eu entrei nessa história sem nada. Eu comecei a olhar macaco aqui. Porque os veterinários eram estimulados a olhar só para agropecuária. Sou do interior, nunca tinha ido nem mesmo num zoológico. Mas como profissional eu tinha aquela responsabilidade e fui fazendo”, lembra Pissinatti, que trabalhou desde 1975 no Banco Biológico, ao lado de Coimbra.
Juntos, os apelos dos dois para construção de um centro ganharam força com a demanda estrangeira para criação de macacos em cativeiro para pesquisas biomédicas.
“Os macacos eram muito usados nessa época para desenvolvimento de vacinas, remédios, pra pesquisas biomédicas. E aí eles estimularam a criação de centros para criação de macacos nos países tropicais. Mas o nosso viés no CPRJ sempre foi a conservação. É a pesquisa voltada para o conhecimento sobre o animal. Isso fazemos até hoje”, explica o chefe do CPRJ.
Foi o próprio Pissinatti quem indicou o terreno para construção do CPRJ, uma área de aproximadamente 280 hectares aos pés da Serra dos Órgãos, em Guapimirim, a cerca de 100 km da capital carioca.
E em 9 de novembro de 1979, nascia o Centro de Primatologia do Rio de Janeiro, com o objetivo de criar e reproduzir em cativeiro primatas brasileiros ameaçados de extinção para fins de pesquisa e conservação. Na época havia apenas o prédio principal e vinte viveiros para micos-leões.
Ao longo dos anos, a estrutura cresceu. Hoje são 140 recintos, que abrigam por volta de 400 animais de aproximadamente 30 espécies diferentes; e cerca de dez prédios.
Pissinatti admite que o projeto inicial era bem mais ambicioso, “conseguimos tirar do papel uns 15%”.
“Nós elaboramos um projeto para ser um centro com todas as espécies brasileiras de primatas, um laboratório completo e mais de mil recintos, além de um museu primatológico, um núcleo para formação de pesquisadores… Mas só conseguimos fazer uma pequena parte disso”, confessa o veterinário.
Ainda que “incompleto”, o nascimento do CPRJ, com foco em estudar e proteger os primatas, oferecia algo que o Brasil não tinha até então.
“Foi a primeira base para primatologia no país. Não tinha uma sede para primatologia no Brasil nos anos 70. E quando foi criado, o CPRJ mostrou para comunidade geral e para interessados no tema uma coisa concreta, o que estimulou outros como o Milton Thiago de Mello, por exemplo, que organizou os cursos de especialização na década de 80, e outras iniciativas de pesquisa e conservação dos primatas. Sempre interagindo com o Centro e usando o Centro como base e referência”, explica Russell Mittermeier.
O Centro despertou o olhar para a conservação dos primatas no Brasil.
Um desses legados é o programa de conservação do mico-leão-dourado, que nasceu, de certo modo, dentro do CPRJ e com a determinação de Coimbra em salvar a espécie. O Centro desempenhou um papel fundamental durante o recebimento de micos de zoológicos do mundo inteiro para serem reintroduzidos na Mata Atlântica fluminense e gestou a criação da Associação Mico-Leão-Dourado (AMLD), em 1992. Tanto Pissinatti quanto Coimbra são sócios-fundadores da AMLD, ao lado de outros.
Leia mais: Quatro micos e um bioma: a luta pela conservação dos micos-leões da Mata Atlântica
Em um passado mais recente, durante o surto de febre amarela que atingiu o sudeste entre 2016 e 2018, o CPRJ trabalhou junto com a Fiocruz para o desenvolvimento bem-sucedido de uma vacina para os micos-leões para protegê-los contra a doença. A vacinação pioneira de populações de mico na natureza, executada pela AMLD, começou em 2020 e já imunizou mais de 450 animais.
O Centro também foi crucial em estudos com o mico-leão-preto, mico-leão-da-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas), com os muriquis (Brachyteles spp.) e o sauim-de-coleira (Saguinus bicolor), para citar alguns, criando bancos genéticos e aprofundando o que se sabia sobre essas espécies e seu manejo.
Em paralelo, inspirados pelo pioneiro CPRJ, outros centros surgiram.
Em 1982, o próprio Milton Thiago de Mello fomentou a criação do Centro de Primatologia da Universidade de Brasília (UnB). Cinco anos depois, em Belém, foi criado o Centro Nacional de Primatas (CENP), vinculado à Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, com foco no desenvolvimento de pesquisas epidemiológicas e biomédicas. E em 2001, foi criado o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB), na Paraíba, atualmente gerido pelo ICMBio.
“Foram construindo essas bases, uma aqui, outra mais distante, e começamos a ter uma rede mais forte. A gente vai na luta tentando formar gente e agregar. O centro virou a cola de várias dessas iniciativas”, destaca Pissinatti.
Atual coordenador do CPB/ICMBio, o analista ambiental Leandro Jerusalinsky reforça o papel central do centro fluminense na conservação dos primatas não apenas no Brasil, mas no mundo, já que o país ocupa o protagonismo de deter a maior diversidade do grupo no planeta.
“Eu costumo dizer que não tem como a gente falar de conservação de primatas sem falar do CPRJ. Não tem como falar do manejo de primatas ameaçados no mundo sem falar do CPRJ. O CPRJ é uma total referência para todo mundo que trabalha com conservação de primatas, em termos de visão, de inovação, de inspiração no Brasil e no exterior”, afirma Leandro.
O coordenador lembra ainda que o Centro foi pioneiro ao apostar no manejo ex situ, feito sob cuidados humanos e fora do ambiente natural, ainda na década de 80, como estratégia para conservação, em especial de populações muito pequenas ou fragmentadas na natureza.
“O CPRJ é um dos grandes parceiros na elaboração e implementação das estratégias para conservação dos primatas do Brasil. É mais do que apoio técnico, é construção de visão”, completa.
Uma história conquistada a duras penas
Mesmo em meio ao clima de comemoração do aniversário, Alcides Pissinatti não esconde os desafios à frente da gestão do CPRJ. O maior deles: a falta de recursos, tanto humanos quanto financeiros.
Mantido pelo governo estadual do Rio de Janeiro, o centro tem dificuldade até para garantir o mínimo: a compra dos alimentos para os animais mantidos em cativeiro. “Todo ano é uma luta pelo orçamento”, desabafa Pissinatti.
O quadro de pessoal, que no início contava com uma equipe grande, lembra o veterinário, também foi duramente reduzido. Em 1993, quando Coimbra se aposentou, ele assumiu a gestão do centro na unha. “Eu fiquei de 93 a 2014 praticamente sozinho, era só eu e a secretária. O centro funciona a duras penas. Precisamos ter gente”, cobra.
Nos últimos 10 anos, Pissinatti ganhou um reforço fundamental com a chegada da veterinária Silvia Bahadian, que tornou-se seu braço direito na gerência e funcionamento da instituição.
Considerada por muitas a sucessora natural de Pissinatti a frente do CPRJ, ela admite que não se enxerga dessa forma e que sua missão no Centro é justamente fortalecer a instituição, para que a continuação dessa história não dependa de um ou outro.
“Não podemos depender só de uma pessoa. A minha ideia é que o CPRJ consiga perseverar como instituição, independente de quem estiver a frente, que isso não fique vinculado a uma pessoa, porque isso é muito frágil. Minha briga hoje em dia é para gente transformar essa instituição em algo que funcione com outros profissionais qualificados. A instituição é o legado que eles estão deixando”, pondera Silvia.
Para fazer isso, ela reforça a fala de Pissinatti de que é necessário mais apoio do órgão estadual para ter mais profissionais qualificados e técnicos. “Nossa equipe é muito pequena e sobrecarregada”, desabafa a veterinária.
Passado, presente e futuro
Por uma estrada recém-asfaltada e recheada de lombadas, vão chegando, um a um, os convidados para o aniversário de 45 anos do CPRJ. Na entrada, uma estátua de metal de um macaco deixa claro quem é o protagonista daquele lugar. Para que não restem dúvidas, o letreiro informa: Centro de Primatologia do Rio de Janeiro.
Lê-se ainda o nome do Inea, responsável pela gestão do centro, e a informação de que aquela área abriga também (desde 2013) o núcleo Paraíso do Parque Estadual dos Três Picos, unidade de conservação de 65 mil hectares na região serrana fluminense.
Dentro do auditório do centro, as cadeiras são ocupadas por nomes ilustres da primatologia como Russell Mittermeier, aqui já apresentado; Fernando de Ávilla Pires, primeiro presidente da Sociedade Brasileira de Primatologia; Patrícia Izar, a atual presidente da SBPr; Stephen Nash, ilustrador científico cujos desenhos ilustram inúmeros guias e publicações sobre primatas; Leandro Jerusalinsky, chefe do CPB/ICMBio. E, claro, os donos da casa: Alcides Pissinatti e Silvia Bahadian.
O presidente do Inea, Renato Jordão, também compareceu, assim como um time de servidores do órgão ambiental estadual; e o superintendente do IBAMA no Rio de Janeiro, Rogério Rocco.
A última quarta-feira (9/10) foi dia de casa cheia no CPRJ, em Guapimirim. Todos ali para celebrar a história do centro e seus personagens.
“Queríamos muito homenagear pessoas que foram fundamentais, esses pioneiros, que fincaram uma base e que, ao redor dela, floresceram várias outras iniciativas e pessoas. Muitos profissionais da primatologia passaram pelo CPRJ”, conta Silvia.
O evento foi marcado por homenagens e inaugurações. Uma das novidades no centro é a sede da Sociedade Brasileira de Primatologia, batizada de “Casa do Saber Primatológico, Russell Alan Mittermeier” – que além de um espaço físico para os membros da organização, destaca a história de seus também 45 anos, com seus presidentes, congressos e pesquisas –; e a sala Adelmar Coimbra-Filho, que guarda a coleção de livros do primatólogo, doada pela família após sua morte.
“É fundamental que a gente tenha a memória. Você tem que ter uma referência. De onde que eu vim? Como surgiu, quem criou? Quem é o primeiro poste dessa avenida? Você precisa dessa história. É necessário que isso seja visto. Porque as pessoas vão continuando isso, mas você precisa de uma referência”, pontua o chefe do CPRJ.
Na nova sede da Sociedade Brasileira de Primatologia, painéis ilustram cada parede com um pedaço da história da entidade, também fundada em 1979, e dos seus personagens, um deles Ávilla Pires, o primeiro a ocupar a presidência – que ganhou uma homenagem especial –, e Patrícia Izar, atual presidente.
“O CPRJ e a Sociedade Brasileira de Primatologia são entidades irmãs, não só por conta da data de fundação, de terem a mesma idade, mas pelas pessoas envolvidas na criação das duas instituições – como Adelmar Coimbra-Filho, que foi um dos sócios-fundadores da Sociedade – e pelo objetivo inicial presente em ambas, da formação da primatologia por meio de fortalecer uma ciência primatológica”, reflete a presidente da SBPr. “E preservar essa história da primatologia é fundamental para sabermos de onde saímos e onde podemos chegar”, completa Patrícia Izar.
No dia seguinte (10), o evento voltou-se para outra missão que o centro traz de berço: a formação e conexão de pesquisadores, voltados para o estudo e conservação de primatas. Dessa vez, o palco foi um dos auditórios do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no centro da cidade, onde foram realizadas diversas palestras ao longo do dia.
“A ideia foi levar para o público o que é a primatologia, como isso se conecta com a saúde, com a conservação, os problemas que a gente enfrenta hoje. Para a gente devolver um pouco pras pessoas tudo que fazemos aqui”, explica Silvia.
Ter uma relação mais próxima com a sociedade, de modo geral, é um dos objetivos ainda não alcançados com o Centro, que desde 1979 sonha com a construção de um Museu Primatológico no local. Mas não apenas isso.
Pissinatti sonha alto. Além de um museu voltado para os primatas, deseja um segundo para dar destaque à floresta e à diversidade da Mata Atlântica, em especial na região em que o centro está inserido. A lista de desejos inclui ainda um bromeliário, um orquidário e um viveiro de mudas, que permitam estudar melhor as interações ecológicas dessas plantas com os primatas. “Você tem que manter esses espaços estimulantes para educação. Esse é o chamamento do centro”, resume Pissinatti.
E Silvia sonha com ele. “O CPRJ sempre teve esse viés educativo, de pesquisa e educação. Acho que a visão pro futuro talvez seja um pouco essa. De conseguir disponibilizar melhor isso e ampliar, não só para pesquisadores e estudantes, mas para o público em geral. Porque a gente precisa trazer isso para sociedade e juntar todo mundo nesse esforço. Só assim vamos reverter alguns problemas que a gente enfrenta como o tráfico de primatas, que está voltando com força total”, reflete a veterinária.
Aos 82 anos e sem nem falar em aposentadoria, Pissinatti parece ter a energia de um garoto quando o assunto é trabalhar no CPRJ.
“Eu também me considero um fazedor. E eu me sinto muito grato, acho que consegui segurar uma barra do que eram os objetivos do Coimbra. Mas ainda com um certo vazio porque não consegui fazer mais coisas. Se o Estado tivesse me dado mais condições, aquilo seria um centro lá em cima. Mas nós vamos chegar lá. É um caminho que podia ter sido abreviado, mas nós vamos chegar lá”, acredita o chefe do CPRJ.
O caminho ainda está – e sempre estará – em construção, mas no início dele há uma pedra fundamental de bases sólidas instalada em Guapimirim. E assim caminha a primatologia.
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