Belém (PA) – Ainda não citada de forma explícita nos textos em negociação, a necessária eliminação gradual da extração e do uso de combustíveis fósseis como o petróleo provocou um racha entre os cerca de 190 países presentes e aquece manifestações dentro e fora dos espaços oficiais da COP30.
Afinal, a expectativa é de que a Conferência produza um roteiro para reduzir fortemente as emissões dessas fontes e nos livre do colapso climático. Globalmente, elas são as grandes culpadas pela crise do clima. Daí a necessidade de o desafio ser vencido com ações conjuntas e coordenadas.
“A saída tem que ser multilateral, alinhando as realidades dos países para enfrentar um problema comum”, defendeu Cássio Carvalho, assessor político do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). “Precisamos de um cronograma claro para a eliminação, para produtores e consumidores desses combustíveis”.
E essa tarefa também cabe ao Brasil, mesmo que suas emissões venham hoje na grande maioria do desmate da Amazônia, do Cerrado e outros biomas. Contudo, ao mesmo tempo em que busca liderar debates sobre clima, o país ruma para explorar mais petróleo na foz do Rio Amazonas.
O paradoxo indica uma distância entre discurso externo e prática interna do país sede da COP30. Diante disso, a especialista-sênior de Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, critica a alegação governista de que os recursos financiarão a transição energética nacional.
“Como é que você vai resolver um problema se você o está piorando?”, perguntou. Ao mesmo tempo, ela alertou que o licenciamento para extrair petróleo de um primeiro bloco na região abrirá portas para dezenas de outras perfurações. “Há uma pressão política e econômica enorme para isso”.
Essa é uma amostra de influências setoriais que moldam decisões públicas e travam mudanças estruturais, retardando a eliminação e prorrogando impactos sociais e ambientais dos combustíveis fósseis no Brasil. Mas há muito mais, apontam fontes ouvidas pela reportagem.

No setor de energia, Araújo descreveu como “monstrengos” certas leis resultantes dessas pressões, especialmente após a privatização da Eletrobras, em 2022. Tais normas interferiram no planejamento energético para favorecer térmicas mais poluentes, contou a especialista.
“O uso é de gás natural fóssil, não de gás natural renovável, que amenizaria muito a situação”, disse. O primeiro é frequentemente associado a depósitos de petróleo, enquanto o segundo pode ser capturado em fontes como aterros sanitários ou estações de tratamento de esgoto.
O carvão mineral é outro símbolo dessa distorção. Diretora-executiva da ong Instituto Internacional Arayara, Nicole Figueiredo denuncia que o combustível sobrevive com subsídios. “São R$ 1 bilhão por ano pagos por toda a população na conta de luz para sustentar térmicas antigas, ineficientes e altamente poluentes”.
Ela relatou que esse esquema econômico é mantido por “jabutis” inseridos por parlamentares estaduais e nacionais que prolongam os subsídios, sempre com a justificativa de proteger empregos.
“Não passam de 20 mil trabalhadores no setor, enquanto a área de contaminação direta impacta mais de um milhão de pessoas”, destacou. “Não faz sentido, não fecha a conta, inclusive porque as mudanças climáticas afetam a todos”, pontuou.
Para Renato Morgado, gerente de Programas da ong Transparência Internacional (TI) no Brasil, esse é um exemplo de como “influências indevidas” afastam decisões políticas do interesse público. “Isso tudo vem acontecendo com baixa transparência e alta desigualdade no acesso à tomada de decisões”, ressaltou.
Isso deixou o Parlamento Federal ainda mais suscetível à ingerência de setores econômicos, onde dispositivos legais desconexos ou confusos inseridos nas leis se somaram à perda de rigor no controle de “matérias estranhas” à proteção socioambiental, avaliou Araújo.
“O esvaziamento das comissões permanentes e a concentração de poder nas mãos de poucos relatores resultaram em perda de qualidade legislativa e democrática”, constatou. “O Congresso tem aprovado leis que não têm sentido algum. Parece até que tem coisa produzida por ChatGPT”.

Morgado apontou que essa distorção é parte de um cenário consolidado onde “as instituições estão a serviço de interesses privados”. “A implantação geral da legislação florestal [de 2012] foi atrasada por grupos que não querem ver ela sair do papel”, recordou.
Essa captura também ocorre no nível administrativo, apontou Joachim Stassart, pesquisador em Ecologia Política na Universidade da Colúmbia Britânica. Segundo ele, nomeações políticas em cargos comissionados, os CCs, podem gerar atos contrários às políticas socioambientais e climáticas.
Além disso, as “portas giratórias”, o intercâmbio de funcionários entre agências reguladoras e setores regulados, mantêm uma influência contínua sobre a administração pública. “São as mesmas pessoas que acabam regulamentando o setor em que trabalhavam ou em que irão trabalhar depois”, disse.
Desbalanço nacional de subsídios
Após oito anos monitorando os gastos federais no setor, o INESC identificou ano passado uma redução de 42% nos subsídios aos fósseis, a maior queda no período. Isso se deve sobretudo a impostos que voltaram a incidir neste governo sobre o consumo de gasolina, diesel e gás de cozinha.
Apesar disso, os incentivos à exploração desses combustíveis giraram em torno de R$ 40 bilhões anuais desde 2023 graças ao Repetro, um esquema que concede renúncias fiscais anuais de mais de uma dezena de bilhões de reais para pesquisa e exploração de petróleo, carvão e gás.
Assim, para cada quase R$ 3 investidos pelo governo federal a essas fontes, apenas R$ 1 são destinados às energias renováveis, apontou o INESC. Os subsídios à geração dessas últimas foram de R$ 18,66 bi ano passado, contudo os incentivos a seu consumo foram zerados com a volta da taxação sobre o etanol.
“A indústria fóssil não precisa de subsídios para continuar operando, mas o carvão mineral recebe incentivos anuais em medidas provisórias, batendo de frente com o potencial das renováveis no Brasil”, destacou Carvalho. “O ideal é ampliar subsídios às renováveis para acelerar a eliminação das fósseis”, recomendou.
Segundo o especialista, isso é viável porque os subsídios aos fósseis “não são escritos em pedra” e podem ser revistos sem aumentos para os consumidores, desde que com bom planejamento. Caso contrário, seguiremos beneficiando os combustíveis fósseis até no exterior.
“53% do petróleo explorado no Brasil no ano passado foi exportado. Na prática, estamos subsidiando o consumo em outros países”, ressaltou Carvalho.

Outras arranjos possíveis
Frente ao cenário de emergência climática global, as fontes ouvidas pela reportagem apontam caminhos para que o Brasil e o mundo se desviem dessa perigosa trajetória e contenham prejuízos sobretudo sobre ambientes naturais e populações que ajudam a os conservar. Dados apresentados na COP30 são alarmantes.
Um estudo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) identificou mais de 113 mil processos minerários, 567 blocos de petróleo e gás e 32 milhões de ha de terras indígenas afetadas, convergindo numa pressão acelerada sobre regiões de “alta sensibilidade socioambiental”.
Diante disso, Araújo defendeu preservar a lei federal do licenciamento ambiental e garantir um “Ibama forte, com poder e dinheiro” para evitar que estados capturados por interesses setoriais fragilizem análises ambientais, especialmente do setor de combustíveis fósseis.
O Congresso Nacional pode votar na próxima semana se derruba ou não os vetos da Presidência da República à lei geral do licenciamento. Como ((o))eco mostrou, o parlamento mira ao menos 48 dos 63 cortes ao texto original. Se voltarem, a norma se tornará ainda mais flexível a danos socioambientais.
Um exemplo para manter essas normas robustas veio bem no início da COP30, no dia 10, quando o Ibama arquivou o que seria seu último licenciamento para uma usina a carvão mineral no país, da Usina Termelétrica Ouro Negro, em Pedras Altas, no Rio Grande do Sul.
Figueiredo destacou que, pela primeira vez, governo, ongs, academia e setor privado debatem juntos no Fórum Nacional de Transformação Energética e que há mais transparência nas agendas de diretores da ANEEL, permitindo acompanhar reuniões com empresas. “Isso é uma vitória que não deve ser perdida”.
Por sua vez, Morgado defendeu uma regulação ampla e clara do lobby, como já ocorre em países como os Estados Unidos. “A sociedade precisa saber quem está operando, sobre o quê e quem está pagando quem. Isso trará mais equilíbrio e integridade ao processo decisório”.
Stassart propôs reformar os parâmetros nacionais para definir cargos comissionados, com “critérios objetivos, controle de conflitos de interesse e regulação das portas giratórias para evitar interferências indevidas”.
Para Carvalho, é preciso mudar o Repetro para fortalecer o Brasil na agenda internacional de abandono dos subsídios aos fósseis. “Nas renováveis, é preciso adotar critérios mais robustos para as isenções fiscais, garantindo salvaguardas de proteção ambiental e de direitos humanos”.
“A indústria deve substituir combustíveis intensivos em emissões, como o óleo pesado, e avançar na descarbonização dos transportes com políticas públicas claras, como ampliar o uso de biodiesel e misturas com renováveis, fortalecer o transporte coletivo e ferroviário e apostar em soluções nacionais como o etanol”, listou.
Sem isso ações como essas, a transição energética no Brasil continuará capturada por interesses que prolongam os subsídios aos fósseis, ampliam desigualdades e aprofundam impactos socioambientais.
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