Reportagens

Para salvaguardar um raro pica-pau brasileiro, uma ONG comprou seu habitat

Ameaçado pela agricultura e pelo fogo, o habitat do pica-pau-da-taboca tem sido aos poucos protegido graças ao esforço e investimento do Instituto Araguaia

James Hall ·
21 de agosto de 2023 · 1 anos atrás
  • Não visto pelos cientistas desde que o primeiro espécime foi descrito, há quase um século, o pica-pau-da-taboca (Celeus obrieni) foi “redescoberto” em meados dos anos 2000.
  • Listada como uma espécie Vulnerável, esta ave endêmica do Brasil está ameaçada pela conversão agrícola generalizada do Cerrado, seu habitat, e por incêndios florestais.
  • No estado do Tocantins, o Instituto Araguaia, uma ONG conservacionista, criou a primeira área protegida para o pica-pau após conseguir comprar a terra – uma estratégia cada vez mais popular para preservar o que resta do bioma Cerrado e sua biodiversidade.

O conservacionista George Georgiadis lembra vividamente da primeira vez que viu o pica-pau-da-taboca, uma espécie que se pensava estar à beira da extinção. Ele ouviu seu martelar, então o pássaro voou para fora do mato, enchendo a floresta com sua vocalização dramática. O encontro inspirou Georgiadis, cofundador do Instituto Araguaia, uma ONG conservacionista, a se dedicar à proteção da ave rara e de seu habitat, o Cerrado brasileiro.

Já se passaram cinco anos desde que centenas de hectares de paisagem do Cerrado no estado do Tocantins se tornaram o primeiro santuário do pica-pau-da-taboca (Celeus obrieni). A área, que antes enfrentava a fronteira agrícola em constante expansão e o perigo de incêndios florestais, tornou-se uma reserva depois que a terra foi comprada. Apesar de ainda enfrentar riscos, esta área agora faz parte de uma rede crescente de áreas protegidas que protegem o pica-pau e outras espécies ameaçadas do Cerrado.

Um pica-pau esquivo 

Com a cabeça cor de vinho, o corpo creme e as asas listradas de preto e castanho, o pica-pau-da-taboca impressiona. No entanto, apesar de sua aparência notável, a ave conseguiu escapar da detecção por quase um século.

Descrita pela primeira vez pelo ornitólogo Emil Kaempfer em meados da década de 1920, no estado do Piauí, a leste do Tocantins, foi inicialmente considerada uma subespécie do pica-pau-lindo (Celeus spectabilis). Mas as diferenças de habitat, comportamento e plumagem levaram alguns ornitólogos a concluir que estavam olhando para uma nova espécie. Entretanto, eles não tiveram a chance de confirmar: sem mais registros de avistamento do pássaro, eles pensaram que o pica-pau-da-taboca havia desaparecido.

Foi apenas no início dos anos 2000 que um novo olhar sobre as diferenças entre as duas espécies de pica-pau mostrou que o pica-pau-da-taboca era de fato uma espécie distinta e endêmica do Brasil. Então, em 2006, o biólogo Advaldo Prado capturou um indivíduo vivo no Tocantins, mostrando que antes os cientistas estavam apenas procurando no lugar errado.

Tulio Dornas, ornitólogo da Universidade Federal do Tocantins, que estudou a ecologia e distribuição da espécie, disse que um erro nos primeiros registros pode ter contribuído com a confusão. O espécime original de Kaempfer, disse ele, “foi coletado na borda extrema do Cerrado, durante uma expedição à Caatinga, então os ornitólogos da época presumiram erroneamente que era uma ave daquele bioma”, disse Dornas ao Mongabay.

No entanto, mesmo no Cerrado, encontrar a ave pode ser um desafio, acrescentou. A espécie sobrevive nas matas ciliares de rios no Cerradão, um tipo de floresta seca dentro do ecossistema de savana. Eles gostam particularmente de áreas sombreadas com tabocas maduras (Gauda paniculata), um tipo de bambu que abriga a principal fonte de alimento do pica-pau: as formigas. Dependentes de apenas algumas espécies de formigas que nidificam dentro do bambu, os pica-paus voam entre as áreas de bambuzal, fazendo buracos nos talos para extrair suas presas.

À medida que os pesquisadores entendaram o habitat da ave e intensificaram suas buscas, avistamentos começaram a ser relatados em vários estados brasileiros, incluindo Goiás, Mato Grosso, Maranhão e Piauí, indicando que, embora o pica-pau fosse raro, não estava tão ameaçado quanto se pensava. Como resultado, seu status de conservação na Lista Vermelha da IUCN melhorou de Criticamente Em Perigo para Vulnerável.

Mas com cerca de 47% da cobertura original do Cerrado perdida para a agricultura, o habitat do pica-pau-da-taboca continua sob pressão; hoje, está severamente fragmentado ou em risco iminente de conversão agrícola. À medida que mais detalhes sobre a espécie vieram à tona, a preocupação com seu futuro também aumentou.

“Não conseguimos encontrá-lo em uma única área protegida, seja um parque nacional ou estadual, em qualquer lugar do Brasil”, disse Dornas.

David Vergara-Tabares, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa e Treinamento Científico da Argentina (CONICET), que estudou os impactos do uso da terra sobre os pica-paus em todo o mundo, disse que a situação enfrentada pelo pica-pau-da-taboca não é incomum na região.

“As áreas protegidas cobrem menos de 10% das regiões onde essas aves são encontradas na América do Sul”, disse ele à Mongabay. “Aproximadamente um quarto das áreas de distribuição das espécies de pica-pau são afetadas pela agricultura e urbanização. É um problema que vem se agravando nos últimos anos”.

Um santuário para o Cerrado

No Vale do Araguaia, no Tocantins, onde a Floresta Amazônica encontra o Cerrado, fica o Parque Estadual do Cantão. Com 90.018 hectares, o parque inclui uma variedade de ecossistemas, incluindo floresta tropical, pântano e savana, e abriga mais de 390 espécies de aves e mamíferos, incluindo onças-pintadas (Panthera onca), tamanduás-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), ariranhas (Pteronura brasiliensis) e antas (Tapirus terrestris). Mas os 600 hectares de várzea de Cerrado e floresta de galeria semidecidual ao redor do Cantão também são importantes para a biodiversidade, pois fornecem um habitat importante para o pica-pau-da-taboca.

Lar de vários casais reprodutores de pica-paus, a periferia do parque oferece algumas das coberturas florestais mais intactas disponíveis para a espécie em toda a sua distribuição.

“A agricultura moderna só chegou a essa região do Tocantins em 2013, e a fazenda mais próxima fica a 250 quilômetros. Então, este foi um dos Cerrados mais preservados de todo o Brasil”, disse Georgiadis.

A equipe do Instituto Araguaia lutou incansavelmente contra o incêndio florestal de 2019 por quase três semanas. Foto: George Georgiadis

Mas na medida em que a fronteira agrícola avançou rapidamente pelo estado – e o Vale do Araguaia estava exatamente no meio do caminho dessa expansão – Georgiadis e sua equipe estavam determinados a proteger a área, não apenas para o pica-pau-da-taboca, mas também para outros animais selvagens que se movem entre a floresta tropical e a savana.

O parque estadual garante a proteção apenas do lado amazônico, sazonalmente inundado do Cantão, mas não ao lado do Cerrado, que estava sob domínio privado e altamente vulnerável à conversão agrícola. Em 2016, disse Georgiadis, após uma pesquisa na qual encontraram os pica-paus-da-taboca no Cerrado ao redor do parque, eles perceberam que precisavam fazer algo para aumentar sua proteção. Eles descobriram que a terra deveria ser vendida para uma fazenda de soja próxima.

A criação de áreas protegidas pelo governo no Brasil é demorada e difícil, disse Georgiadis ao Mongabay. As perspectivas iniciais de conseguir isso para o entorno do Cantão eram ainda menores no Tocatins, devido à pesada burocracia e aos altos custos associados à aquisição de terras em um estado cuja economia é fortemente dependente de produtos agrícolas de exportação, como a soja.

Várias organizações conservacionistas internacionais intervieram para apoiar o Instituto Araguaia. Em 2017, após um ano de burocracia, a ONG obteve a aprovação do estado e levantou recursos suficientes para comprar 190 hectares de Cerrado. Outro ano depois, a área tornou-se oficialmente a Reserva Canto Obrieni, a primeira área protegida do pica-pau-da-taboca, e ganhou o status de Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN).

A compra de reservas particulares é uma estratégia importante para conservar a biodiversidade do Cerrado, segundo Marcelo Gonçalves de Lima, pesquisador do Centro de Conservação de Grandes Paisagens.

“Atualmente, apenas 8,61% dos 200 milhões de hectares no Cerrado estão legalmente protegidos em 482 áreas, sendo 182 pequenas Reservas Particulares do Patrimônio Natural”, disse ele à Mongabay. “Apesar de ocuparem menos de 0,06% do bioma, essas reservas desempenham um papel vital na conservação de espécies [ameaçadas] como o pica-pau-da-taboca”.

A equipe do Instituto Araguaia apaga as brasas após o incêndio florestal de 2019. Foto: George Georgiadis

Ameaçado pelos incêndios 

Embora a salvo do desenvolvimento, Canto Obrieni permaneceu sob ameaça de incêndios florestais. Em agosto de 2019, um incêndio se espalhou de uma fazenda vizinha, devastando um total de 2.000 hectares de Cerrado. Acredita-se que o fogo tenha começado quando a fogueira de um pescador ficou fora de controle, o fogo aumentou e se espalhou pela grama seca da savana. Logo, o incêndio estava se aproximando do Parque Estadual do Cantão.

A equipe do Instituto Araguaia levou três semanas para apagar o fogo.

“Estávamos exaustos, mas não podíamos nos dar ao luxo de parar. Sabíamos que, se não controlássemos o fogo, toda a floresta iria pegar fogo”, disse Telma Maria, membro do instituto e brigadista voluntária, ao Mongabay.

As autoridades não responderam imediatamente, embora, de acordo com Georgiadis, alegassem que o exército havia sido enviado para apoiar os esforços de combate ao incêndio.

“Após cerca de 10 dias, percebemos que não viria ajuda, então usamos um drone para capturar imagens e enviá-las para um canal de notícias”, disse Georgiadis. O vídeo foi notícia nacional e, no dia seguinte, os bombeiros estaduais chegaram.

Em defesa da conservação do Cerrado

Nos anos que se seguiram ao incêndio, o Instituto Araguaia conseguiu não apenas recuperar, mas também fortalecer seus esforços de conservação no Cantão. Na paisagem do Cerrado ao redor do parque estadual, a ONG criou quatro reservas adicionais, totalizando 595 hectares, por meio de contratos de arrendamento com proprietários privados. O arrendamento dessas terras privadas, por um período de 10 anos, garante sua proteção no longo prazo como Reservas Particulares do Patrimônio Natural, mesmo depois da terra ser revertida ao proprietário particular.

As novas reservas formam uma rede de corredores de habitat interconectados que ligam a reserva do pica-pau ao Parque Estadual do Cantão. Essa conectividade não só beneficia o pica-pau-da-taboca, mas também apóia a sobrevivência de outras espécies em risco do Cerrado, como o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), bem como espécies amazônicas que se deslocam para o Cerrado durante as enchentes, como a onça-pintada.

Como a área continua vulnerável a incêndios florestais, a equipe construiu vários aceiros ao redor das áreas protegidas e monitora regularmente outros 10.000 hectares de Cerrado que podem se tornar reservas no futuro.

“Os incêndios florestais não vão acabar, então nos preparamos a cada estação seca. Tivemos alguns incêndios desde 2019, mas conseguimos controlá-los”, disse Maria.

“Nossos esforços de conservação do pica-pau e da primeira reserva abriram o caminho para todas as áreas protegidas que administramos hoje e a biodiversidade que elas sustentam”, disse Georgiadis. “Para nós, esta ave é o símbolo vivo do nosso trabalho, e vê-la na floresta é a recompensa final”.

Referências:

Short, L. L. (1973). A new race of Celeus spectabilis from eastern Brazil. The Wilson Bulletin, 85(4), 465-467. Retrieved from https://www.jstor.org/stable/4160393

Azevedo, L. S., Aleixo, A., Santos, M. P. D., Sampaio, I., Schneider, H., Vallinoto, M., & Rêgo, P. S. (2013). New molecular evidence supports the species status of Kaempfer’s Woodpecker (Aves, Picidae). Genetics and Molecular Biology, 36(2), 192-200. doi:10.1590/S1415-47572013005000022

Pinheiro, R. T., Dornas, T., Leite, G. A., Crozariol, M. A., Marcelino, D. G., & Corrêa, A. G. (2012). Novos registros do pica-pau-do-parnaíba Celeus obrieni e status conservação no estado de Goiás, Brasil. Revista Brasileira de Ornitologia, 20(1), 59-64. Retrieved from https://www.researchgate.net/publication/266287989_Novos_registros_do_pica-pau-do-parnaiba_Celeus_obrieni_e_status_conservacao_no_estado_de_Goias_Brasil

Barbosa, V. A., Nabout, J. C., & Cunha, H. F. (2023). Spatial and temporal deforestation in the Brazilian savanna: The discrepancy between observed and licensed deforestation in the state of Goiás. Land Use Policy, 131, 106730. doi:10.1016/j.landusepol.2023.106730

Santos, M. P. D., & Vasconcelos, M. F. (2007). Range extension for Kaempfer’s Woodpecker Celeus obrieni in Brazil, with the first male specimen. Bulletin of the British Ornithologists’ Club, 127, 249-252. Retrieved from https://encurtador.com.br/dfO34

  • James Hall

    James Hall é um biólogo da conservação, professor de inglês e jornalista freelance, com foco em biodiversidade e conservaç...

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Comentários 2

  1. Fernando Camilo diz:

    Ja vi esses aqui em Palmas onde moro no stor Bertaville proximo ao lago de palmas


  2. Paulo diz:

    Estes governadores……. Esperam queimar tudo e depois, liberam a licença para desmate rápido para plantar soja. Estes “Homens” públicos, somente tem na mente o dinheiro, grana, o resto é resto e ponto final. F**a-s* o resto, o negócio é money.