A conservação do Cerrado na Chapada dos Veadeiros será ampliada pela criação de um parque com gestão conjunta entre governos estadual e municipal. Reserva abrigará animais e ambientes que deveriam estar protegidos desde os anos 1960. Desenvolvimento sustentável regional também depende de combate a crimes e controle de atividades licenciadas.
Metade do Cerrado já foi engolida por pastagens e lavouras e as maiores porções do que resta da “savana brasileira” estão em parques e outras poucas áreas protegidas, em parte dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – onde governos e setor privado forçam o avanço do agronegócio –, e no nordeste de Goiás, na Chapada dos Veadeiros.
Contrariando a onda de ataques a órgãos e políticas ambientais e o apagão na criação de áreas protegidas promovidos pelo governo de Jair Bolsonaro, a região pode ganhar nos próximos dias um parque com 5 mil hectares. Distribuídos em Alto Paraíso (GO), abrigarão onças, antas, lobos e outros bichos que podem sumir do mapa, além das imponentes Cataratas do Rio dos Couros.
E a criação do parque será barateada com a doação de terras federais pelo Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária a Goiás. A secretária estadual de Meio Ambiente, Andrea Vulcanis, também conta que proteger a área beneficiará dezenas de famílias de assentados que até hoje vivem em situação precária na sua vizinhança.
“A possibilidade de aumentar a proteção do Cerrado num momento político como esse é gratificante. Não haverá custos para desapropriações, mas investiremos na regularização do assentamento Esusa, cujas cerca de 50 famílias aguardam há 30 anos pela documentação para acessar créditos, qualificar sua produção, ter acesso à água tratada e energia”, disse.
Outros R$ 250 mil devem ser investidos pelo estado na definição dos limites precisos e das regras de conservação, turismo e pesquisas do parque. Mais recursos servirão à implantação e manutenção de trilhas e reforma dos quase 40 quilômetros da precária estrada que liga a reserva à rodovia GO-118.
Uma liminar contestando as condições para realização da audiência pública sobre a proposta do novo parque durante a pandemia de COVID-19 foi derrubada pela presidência do Tribunal de Justiça de Goiás e a reunião está agendada para a tarde desta terça-feira (8). Onze de setembro é Dia Nacional do Cerrado.
Aperto de mãos
O volume de investimentos e estudos para a criação do parque e movimentos anteriores pela defesa da região exigiram uma parceria com a Prefeitura de Alto Paraíso para sua gestão, do seu entorno e do crescente turismo regional. O aperto de mãos entre os governos estadual e municipal será detalhado após a aprovação da área protegida.
“Sempre nos preocupou preservar aquele local, mas o município não tem condições de assumir esse trabalho sozinho. É uma bela região que vinha sofrendo com turismo descontrolado, lixo e invasões. Nem sempre toda a comunidade entende a importância, mas a ideia do parque foi acolhida e alinhada com o estado e o Incra”, ressaltou o prefeito Martinho da Silva (PR).
O governo goiano diz ter mobilizado R$ 37 milhões para implantar e regularizar reservas ecológicas. Os recursos vêm da compensação paga por obras que provocam danos ambientais. Uma das beneficiadas é a Estação Ecológica de Nova Roma, vizinha do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Ela servirá de base para combate a incêndios regionais.
Tentamos ouvir a opinião do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente de Alto Paraíso sobre a proposta para criação do parque na região do Rio dos Couros, mas seu presidente Paulo Quirino Garcia não quis conceder entrevista.
Cristal d’água
A reserva do Rio dos Couros será um valioso abrigo da vida selvagem e de cenários naturais do Cerrado. Até novas plantas são descobertas na região, mostra estudo publicado na revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.
Outro destaque é o pato-mergulhão, uma das aves mais ameaçadas de extinção no planeta, conforme a União Internacional para Conservação da Natureza. Menos de 250 emplumados vivem em rios cristalinos na Serra da Canastra (MG), Jalapão (TO) e Chapada dos Veadeiros. Nem todas as áreas estão protegidas em lei.
À frente de um time que pesquisa a espécie há mais de uma década, Gislaine Disconzi alerta que sua sobrevivência depende do que acontecerá dentro e fora do parque estadual. Incêndios, barragens, turismo e agronegócio desregrados ameaçam as moradas do pato-mergulhão. Quatorze pequenas hidrelétricas estão planejadas na Chapada dos Veadeiros.
“Além do desmatamento e da contaminação por agrotóxicos que andam juntos com o avanço da agropecuária, barragens para geração de energia também podem prejudicar a espécie, que só vive em águas limpas e correntes. Tudo que acontecer no leito ou próximo ao Rio dos Couros afetará o pato mergulhão e muitos outros animais”, alertou a bióloga.
Conservação retomada
Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros desde os anos 1960 e a proposta do parque estadual na região do Rio dos Couros. Arte: Julia Lima.
O novo parque cobrirá uma região que deveria estar protegida desde os anos 1960. À época foi criado o Parque Nacional do Tocantins, com 625 mil hectares, pouco maior que o Distrito Federal. Mas em 1981 e já rebatizada como Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, a reserva encolheu para 60 mil hectares por pressões do agronegócio. Em 2017, foi ampliada para 240 mil hectares, menos de 40% do que tinha há seis décadas.
Veadeiros sofreu um dos maiores incêndios de sua história naquele mesmo ano. Sessenta mil hectares foram torrados, área semelhante à metade da cidade do Rio de Janeiro. Moradores relataram à investigação federal que avistaram motoqueiros ateando o fogo. O crime teria sido uma retaliação ao aumento da área protegida. Até hoje os culpados não foram identificados.
Em outubro passado, um fazendeiro foi multado por atear fogo na Chapada dos Veadeiros. Desde 1985, passou de 144 mil hectares para 316 mil hectares a ocupação da agropecuária nos municípios de Alto Paraíso, Cavalcante, Nova Roma, São João d’Aliança e Teresina, todos no entorno do parque nacional. Um aumento de 120% conforme o MapBiomas.
A conservação regional conta também com 26 reservas particulares, pequenos parques municipais, territórios Kalunga – o maior quilombo do país – e de indígenas avá-canoeiro. Mas loteamentos e desmatamentos criminosos podem comprometer a vocação regional para um desenvolvimento focado no uso sustentável do Cerrado.
Crimes em série
Termômetro do turismo regional, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros recebeu quase 80 mil visitantes no passado. A procura pela reserva saltou 350% desde 2006. Junto com a crescente demanda turística vieram os loteamentos irregulares. Brasileiros e estrangeiros vendem lotes por até R$ 800 mil, inclusive pela Internet.
Polícia Civil e fiscalização estadual encontraram quase 120 loteamentos parcelando terrenos em menos 4 hectares, o mínimo que pode ser comercializado na zona rural da região. Muitas negociações usam contratos de posse que podem camuflar a grilagem de terras públicas. Especialmente moradores de Brasília (DF) compram lotes para templos religiosos, pousadas, casas de meditação e veraneio.
“A situação precisa ser controlada. Estamos tentando evitar ligações de luz e água e o registro de imóveis irregulares. Também instalaremos uma base permanente na região para ampliar e qualificar a fiscalização contra crimes ambientais”, destacou a secretária estadual de Meio Ambiente Andrea Vulcanis.
Maquinário foi apreendido abrindo estradas em área de proteção ambiental. Uma quadrilha pode estar por trás dos parcelamentos ilegais. Multas a suspeitos pelos crimes somam mais de R$ 5 milhões. Um cenário que rendeu prêmios ao fotógrafo Márcio Cabral está sendo destruído pelos loteamentos, reclamou em uma Rede Social. Fontes locais confirmaram a degradação.
O Incra informou à reportagem não ter informações sobre venda de terras a estrangeiros na região nos últimos 16 anos e que “nenhuma autorização foi assinada para aquisição e arrendamento de terras por estrangeiros”. Também comentou que “o cartório de imóveis (de Alto Paraíso) relata que não há qualquer registro de contrato de compra e venda envolvendo estrangeiros” em 2020.
Menos verde
Outros R$ 3,5 milhões em multas foram aplicados desde junho contra o desmatamento ilegal de quase 2 mil hectares na região de Cavalcante (GO). Áreas serviriam à produção de soja, mineração e produção de carvão. Tratores e correntões, bombas elétricas e a combustível e calcário para preparo de solos foram confiscados.
Os desmates se aproximaram do território Kalunga. Uma das áreas era do prefeito Josemar Freire (PSD). Ele teria emitido licenças frias para o desmatamento de áreas públicas. A mineradora Brasman – Brasil Manganês foi flagrada operando em área irregular. Ações judiciais pedem que os desmatamentos sejam restaurados pelos infratores.
Observando os altos e baixos da proteção da natureza em Veadeiros, o doutor em Ecologia pela Universidade de Brasília (DF) Ricardo Machado analisa que a história é um espelho da proteção da natureza no país. Afinal, propostas para cumprir a lei e manter o patrimônio público natural costumam ser prejudicadas ou engavetadas por interesses privados e de curto prazo.
“Enquanto não houver uma discussão ampla da sociedade sobre um modelo que contemple esses interesses diversos, teremos, como aconteceu na região de Veadeiros, uma eterna alternância de conquistas e retrocessos na proteção de nossa natureza ímpar”, ressaltou.
Sua avaliação faz coro com escritos do poeta Nicolas Behr, para quem “o cerrado é milagre” mas, “como toda a vida, é também pedaço do planeta que desaparece”. Que esta história tenha um novo traçado e um final feliz para todos que vivem na Chapada dos Veadeiros.
*Esta reportagem foi apoiada pela Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação.
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Editor para o repórter: "não esqueça da crítica ao governo federal!"
Claro que sim, olha a lambança do Ministério do Meio Ambiente.
Harry, se achas que o $alle$$ está bom, fique com ele. Detalhe sem direito a devolução.
Tem cada um "patriota" de araque.