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Peru celebra 50 anos da redescoberta de macaco misterioso dos Andes

Criticamente ameaçado de extinção e endêmico do Peru, macaco-barrigudo-de-cauda-amarela é festejado no país em meio à mobilização por sua conservação

Duda Menegassi ·
10 de maio de 2024

Foi na traseira de uma caminhonete, enquanto exploravam o Peru com poucos recursos e muita vontade, que três pesquisadores fizeram uma descoberta incrível. Ou melhor, redescoberta. O ano era 1974 e os pesquisadores pegavam uma carona, quando um caçador subiu no veículo. “Ele trazia uma sacola e eu perguntei o que tinha nela. Ele abriu e mostrou a pele. Na hora eu reconheci. Era o macaco-barrigudo-de-cauda-amarela. Ele tinha pego o animal há uma semana e foi ali que soubemos que o animal não estava extinto como se imaginava”, lembra o primatólogo Russell Mittermeier, que liderou a expedição há exatos 50 anos. A redescoberta virou motivo de celebração e orgulho no Peru, que comemora o 50° aniversário do reencontro com o macaco, exclusivo do país.

Com ocorrência restrita à região das florestas altas nos Andes peruanos, o macaco-barrigudo-de-cauda-amarela (Lagothrix flavicauda) pode ter sido reencontrado, mas sua situação está longe de ser confortável. Pesquisadores estimam que a espécie já perdeu 80% da sua população original. Com o objetivo de aumentar a visibilidade sobre a conservação da espécie, considerada criticamente em perigo de extinção, foi lançada a campanha “Achórate por el mono choro de cola amarilla”. Que numa tradução livre para o português, seria reaja pelo macaco-peludo-de-cauda-amarela.

A mobilização em torno do animal foi parte dos preparativos para o 50° aniversário, conta a primatóloga Fanny Cornejo, da organização Yunkawasi, que desde 2007 lidera esforços em prol da conservação da espécie no país.

“Durante um ano, realizamos esta campanha como um preparativo para este momento, do aniversário, para que as pessoas reajam pela conservação desse macaco e participem dessa celebração conosco. É um chamado para as pessoas se importarem com a conservação da natureza, de maneira geral”, explica Fanny.

O festival terá ações e eventos ao longo de maio, em cinco cidades e várias comunidades do Peru, inclusive na capital, Lima, onde no final do mês será realizado o maior deles, que deve reunir cerca de 10 mil pessoas, com música, gastronomia e, claro, muita celebração do mono choro de cola amarilla.

Para além da esfera ambiental, é uma festa cultural do macaco-barrigudo-de-cauda-amarela como símbolo do país e da biodiversidade do Peru. Duas estátuas foram inauguradas, uma em Lima e outra no município de Moyobamba. Uma terceira será erguida no final de maio na cidade de Amazonas.

Foi lançado também um novo selo comemorativo, uma peça de teatro e um documentário sobre o macaco. Além de um kit de educação ambiental, desenvolvido pela equipe da Yunkawasi junto com o Ministério de Meio Ambiente, que será distribuído para professores e agentes ambientais em todo país. “Vai ser uma ferramenta pedagógica para treinar as pessoas na área da conservação. Até o momento, mais de 20 distritos do Peru já aderiram e receberam o kit”, conta a primatóloga.

Até figurinha de Whatsapp com o mono choro a campanha produziu. “A ideia é fazer com que todos os peruanos escutem sobre este macaco, especialmente os tomadores de decisão”, resume. 

Grupo celebra o mono choro em um dos eventos do 50º aniversário de redescoberta da espécie. Foto: Yunkawasi

As decisões, aliás, devem ser tomadas inclusive a nível cotidiano pelas pessoas, completa Fanny. “De onde vem o café que você toma? As pessoas têm que se questionar sobre isso porque no Peru, muito do desmatamento vem de pequenos agricultores. E isso está ligado à demanda dos consumidores. Nós precisamos que as pessoas entendam que o café, o chocolate que elas consomem, estão provavelmente vindo de desmatamento. E os consumidores têm o poder de exigir um produto que vem da conservação”, explica.

Iniciativas como  “Aliado por la Conservación”, que seleciona e promove produtos oriundos da conservação de florestas e de produtores locais que precisam desse apoio.

Em paralelo, a equipe da Yunkawasi trabalha junto com agricultores para promover a implementação de agroflorestas e para que os produtores rurais assumam compromissos de conservação em suas propriedades. 

“O macaco é parte de um ecossistema e nós estamos usando ele como a cara deste movimento pela proteção da biodiversidade, para convencer tomadores de decisão, políticos e pessoas locais a se importarem com a conservação. Precisamos que todas as pessoas se engajem nesse assunto. Temos a crise climática e a crise da perda de biodiversidade para enfrentar”, destaca a primatóloga.

Em abril deste ano, 23 congressistas de 7 partidos diferentes enviaram o projeto de lei nº 7559, que promove a proteção do Mono Choro de Cola Amarilla no país. A proposta prevê a elaboração de um Plano de Ação Nacional para conservação da espécie, a capacitação dos governos regionais para atuarem em prol do macaco e o estabelecimento da primeira semana de maio como data comemorativa do primata peruano. 

“A proposta está sendo analisada pelas comissões e deve ser votada no Congresso nas próximas semanas. Pode ser aprovado no final de maio ou junho”, acredita Fanny.

Um macaco singular

Com até 50 centímetros de comprimento do corpo e outros 60 de cauda, o que faz dele o maior mamífero endêmico do Peru, o mono choro não passa despercebido. Além da ponta da cauda amarela que dá nome à espécie, o barrigudo tem outras particularidades chamativas, como um nariz e queixo todo branco, que se destacam em meio ao pêlo castanho avermelhado. Além disso, os machos têm um saco escrotal coberto de pêlos longos amarelos, em outra característica singular deste primata, que vive em grupos sociais de 5 a 30 indivíduos. 

A própria ecologia e habitat são singularidades deste animal, que ao contrário da maioria dos outros macacos do gênero, vive em áreas montanhosas, acima dos 2 mil metros de altitude, nas florestas altas dos Andes peruanos. É justamente esse lar mais inóspito e de difícil acesso, o que faz ir atrás desse bicho e estudá-lo uma tarefa tão complicada.

Um macaco singular entre os do gênero. Foto: Russell Mittermeier

Os próprios limites dessa ocorrência ainda são nebulosos, admite a primatóloga Fanny Cornejo. “Achávamos que era um animal restrito do norte do Peru, mas há alguns anos encontramos uma nova população na região central do país, isolada de qualquer outra população conhecida da espécie”, pontua. 

Expedições nos Andes buscam esclarecer melhor qual a real distribuição do primata, enquanto Fanny e sua equipe trabalham para que os parlamentares aprovem a criação de uma área protegida regional que resguarde essa recém-identificada população.

Em paralelo, pesquisas genéticas e levantamento das populações em campo junto com as comunidades buscam entender melhor a espécie – e suas diferenças em relação aos outros macacos-barrigudos, que vão desde o habitat até a alimentação – e também as tendências populacionais, para identificar declínios e até mesmo eventuais extinções locais. 

“Nós sabemos que eles [monos choros] perderam aproximadamente 80% do que teria sido a distribuição histórica da espécie nesses últimos 50 anos. Algumas áreas que os comunitários dizem que tinha o macaco, não encontramos mais lá”, conta Fanny.

Há 50 anos: memórias de uma redescoberta

O macaco-barrigudo-de-cauda-amarela foi registrado pela ciência pela primeira vez por ninguém menos do que o naturalista Alexander von Humboldt, em 1802, durante sua expedição pela América do Sul. Na época, o naturalista não chegou a ver o animal na natureza, somente as peles, usadas como sela de montarias pelos nativos. Dez anos depois, a partir apenas das peles, Humboldt descreveu formalmente a nova espécie.

Demorou mais de um século, em 1925 e 1926, para que duas expedições científicas – do Museu Britânico e do Museu de História Natural de Nova York – reencontrassem o animal e coletassem mais cinco indivíduos para as coleções dos museus. “Depois disso, de 1926 até 1974, nada. Nenhum registro”, pontua Russell. 

Depois de quase cinco décadas de silêncio sobre o mono choro de cola amarilla, que a essa altura já era praticamente uma lenda que caiu no esquecimento, considerado como provavelmente extinto e sem muitas informações.

Expedição liderada por Russ foi atrás do macaco nos Andes peruanos em 1974. Foto: Acervo Pessoal

Foi quando Russ, na época um recém-formado primatólogo, decidiu promover uma expedição atrás do bicho. Acompanhado do cientista peruano Hernando de Macedo Ruiz e do pesquisador Anthony Luscombe, que na época trabalhava no zoológico de Lima, eles embarcaram nessa jornada em 1974. 

“Não tínhamos recursos, então viajávamos na caçamba de caminhonetes”, lembra o pesquisador americano. A falta de verba acabou sendo a sorte dos pesquisadores. “E foi nessa viagem, até a parte mais alta dos Andes, que passamos por uns cinco caçadores na estrada, que também entraram na caminhonete. E um deles trazia uma sacola. Eu perguntei o que tinha ali e ele tirou de lá uma pele desse macaco, que eu reconheci imediatamente. Ganhamos a viagem só com isso”, recorda Russell. 

Foi assim, no final de abril de 1974, através da pele do macaco – tal qual Humboldt – que eles tiveram a prova definitiva de que o macaco-barrigudo ainda existia por ali. Com uma injeção de ânimo e esperança, junto com as informações coletadas com os caçadores, a expedição partiu rumo à cidade de Chachapoyas, no norte do país, que serviu de base enquanto exploravam as montanhas andinas. Durante quase uma semana, os pesquisadores tentaram, sem sucesso, encontrar o macaco nas florestas altas da região. Foi quando eles menos esperavam, entretanto, que deram de cara com um exemplar vivo do lendário macaco-barrigudo-de-cauda-amarela. Numa situação bem diferente do que imaginavam, ao descerem no povoado de Pedro Ruiz Gallo, no dia 4 de maio de 1974, eles encontraram um jovem macho mantido como animal de estimação por um soldado. Depois de alguma negociação, que incluiu uma aula sobre a importância científica daquele animal, o militar concordou em vender o macaco para os pesquisadores. “Na época foi caro, algo como 125 dólares”, lembra Russ, “e nós só tínhamos 30”, ele ri, “mas ele confiou na gente e pagamos o resto depois”.

“Cinco dias depois fizemos uma conferência de imprensa e conseguimos uma cobertura incrível, nacional e internacional. E o bicho virou um símbolo para o Peru. É o maior mamífero endêmico do país”, conta Russell. 

O jovem macho que era mantido como animal de estimação foi a prova de que o mono choro não estava extinto, em 1974. Foto: Russell Mittermeier

A saga atrás do barrigudo não se encerrou aí para Russell, que voltou ao Peru em 1978, quando encontrou outro macaco mantido como pet, e em 1983, quando finalmente o pesquisador registrou o primata na natureza, acompanhado fortuitamente por uma equipe de filmagem que, pela primeira vez, documentou em vídeo o animal em seu habitat.

O burburinho científico em torno da espécie reverteu-se em ações em prol do barrigudo, como a criação de áreas protegidas, o apoio de instituições à pesquisa e conservação e o envolvimento de cada vez mais cientistas. Até dinheiro o macaco virou, desenhado na moeda de 1 sol.

Entretanto, toda mobilização provocada pela redescoberta acabou esmorecendo nas décadas seguintes, principalmente fora dos muros da ciência.

“Mesmo que o macaco tenha sido muito falado nos anos 70 e 80 – e a maioria das áreas protegidas foi criada nos anos 80 –, depois houve um silêncio sobre a espécie. Mesmo quando eu era uma estudante obcecada com primatas, o macaco-barrigudo-de-cauda-amarela era para mim algo mítico. Onde está esse macaco que ninguém ouve, ninguém está observando?”, lembra Fanny Cornejo.

Em 1983, pesquisadores voltaram para região em busca do macaco e em diálogo com as comunidades sobre a importância da espécie. Foto: Russell Mittermeier

Uma das atuais líderes da Yunkawasi, criada em 2007 para trabalhar com a espécie, Fanny se diverte admitindo que não são a única iniciativa que trabalha com o mono choro, mas certamente são “os mais barulhentos”. É com todo esse “barulho”, que ela e sua equipe tem colocado o primata de novo nos holofotes e feito as pessoas conhecerem – e amarem – o animal.

A equipe da Yunkawasi monitora atualmente populações do macaco em quatro locais, em parceria com membros da comunidade. A partir de junho, a ação deve ser ampliada para as áreas protegidas, junto com o Serviço Nacional de Áreas Protegidas do Peru. 

“Se você tem o apoio das comunidades, você consegue fazer muita coisa, eles viram os protetores do bicho”, destaca Russ, atual diretor de conservação da Re:wild, organização que tem financiado trabalhos com o mono choro e com as comunidades que vivem na região. “Voltei outra vez, depois de 27 anos, em 2010, e encontramos fácil o bicho em dois lugares, a Fanny [Cornejo] já tinha toda uma comunidade trabalhando pela conservação do animal”, comenta o primatólogo, que voltou pra região dos Andes peruanos este ano, pela quinta vez, dessa vez para o Festival Achórate e a celebração do mono choro de cola amarilla

“Hoje em dia, a atenção das pessoas é muito curta, então se você não continua reforçando a importância de um assunto, de uma espécie, as pessoas esquecem. E a ideia com esse aniversário de 50 anos é mostrar mais uma vez que o animal é importante, assim como o ambiente, porque os Andes tropicais é o hotspot mais diverso do mundo, o número um em espécies e biodiversidade”, destaca Russ. 

O futuro da espécie

Um dos principais desafios para garantir o futuro da espécie é justamente proteger o seu habitat. “Hoje nós sabemos que menos de  25% do potencial habitat do macaco-barrigudo-de-cauda-amarela está dentro de qualquer categoria de proteção”, destaca Fanny.

Em nível nacional, existem quatro reservas onde vive o macaco, porém as áreas não são contínuas. A fragmentação é o maior obstáculo, aponta a pesquisadora, porque como é uma espécie grande, ela necessita de grandes extensões de floresta bem conservada. As próprias características naturais das florestas nas montanhas dificultam a conectividade, com vales, cânions, rios, além de obstáculos humanos, como cidades e estradas.

Para o futuro, a meta da primatóloga é clara: “que esse macaco não seja extinto. Essa é a meta principal. A segunda meta é que até 2030 a gente consiga reduzir o nível de ameaça da espécie de Criticamente Em Perigo para Em Perigo”, conta Fanny. Ela acrescenta ainda na sua ambiciosa lista de desejos: expandir o trabalho com as comunidades; uma gestão adequada das áreas protegidas; e fazer com que as pessoas se importem e possam “refazer sua conexão com a natureza”.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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