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Pesquisa questiona ocorrência de Mata Atlântica no Piauí

O estudo caracterizou flora e vegetação de florestas estacionais em municípios na área de abrangência da Lei da Mata Atlântica no Piauí e concluiu que não há espécies botânicas exclusivas do Bioma

Carolina Lisboa ·
19 de maio de 2022 · 2 anos atrás

“A tese de que no Piauí tem Mata Atlântica é incongruente a partir do fato de que aqui não temos espécies botânicas exclusivas da Mata Atlântica. Quando as temos, estas têm também ocorrência no Cerrado, na Caatinga, e/ou na Amazônia. A análise da vegetação sem a verdade do campo é insuficiente”, defende Antonio Alberto Jorge Farias Castro, professor titular aposentado da UFPI e coordenador do Programa de Biodiversidade do Trópico Ecotonal do Nordeste (BioTEN).

Castro é o primeiro autor do estudo intitulado “Caracterização da Flora e da Vegetação de Florestas Estacionais das Serras Gerais, Municípios de Eliseu Martins, Pavussu e Canto do Buriti, Sudoeste do Piauí”. Ele e seis coautores realizaram coleta de material botânico e caracterizaram a estrutura da vegetação para propor uma classificação fitossociológica das comunidades vegetais dos três municípios.

A conclusão do estudo é que a vegetação local, caracterizada como caatinga arbórea hipoxerófila ou floresta estacional de transição, é predominantemente indicadora do Bioma Caatinga, e que as espécies endêmicas da Mata Atlântica presentes no local também são encontradas em outros biomas.

O Mapa da Lei

Atualmente, o estado do Piauí considera a incidência da Mata Atlântica no seu território. De acordo com Francisco Mascarenhas, auditor fiscal ambiental da Gerência de Florestas da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (Semar-PI), todos os procedimentos de licenciamento e autorizações ambientais levam em consideração o Mapa da Área de Aplicação da Lei da nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006 (Lei da Mata Atlântica), elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Serra Vermelha/Piauí. Foto: Daniel Mesquita

Sobre o referido Mapa, Castro questiona: “Quem afirmou que as florestas semidecíduas de transição tem relação obrigatória com Mata Atlântica? O próprio Mapa explica que em todos os Biomas encontramos as florestas estacionais. Estas, como as demais, deveriam estar associadas ao Bioma por proximidade, mas as do Piauí se distanciam da Costa Atlântica cerca de 600 km na direção norte e cerca de 1.600 km na direção leste, em linha reta, e esta última com intercepção da Chapada do Araripe e do Planalto da Borborema”.

Outra questão colocada pelo cientista é se as florestas extra-amazônicas são ou seriam atlânticas. “Não concordo. Por ser um país muito rico e diverso, elas são florestas estacionais de transição, semideciduais ou deciduais, assim como as relacionadas com a Teoria dos Refúgios, como os brejos do Nordeste (ilhas úmidas que sobraram entre a Amazônia e a Mata Atlântica quando ambas se tocavam há milhões de anos, destacadas por maiores altimetria umidade)”.

Questionado, o IBGE informou que a área de aplicação da Lei 11.428 extrapola os limites estritos da Mata Atlântica e abrange áreas no Piauí porque seu artigo 2º, que descreve os tipos de vegetação as quais se aplica, cita as florestas estacionais e explicita os ‘encraves florestais do Nordeste’ como afetados pela legislação. “No caso do Piauí, as áreas incluídas no Mapa de Aplicação da Lei 11.428 enquadram-se como Florestas Estacionais Deciduais e Semideciduais e na condição de encraves florestais do Nordeste”, esclareceu o Instituto.

O IBGE informou que fez uso do Mapa de Vegetação do Brasil (IBGE, 2004) e do Mapa de Biomas do Brasil, primeira aproximação (IBGE, 2004) para produção do Mapa. Marcos Rosa, atual coordenador técnico do MapBiomas e que participou da sua elaboração, esclareceu que foi utilizada a melhor informação disponível. “O Mapa foi elaborado com base no mapa de fitofisionomias vegetacionais do RADAM Brasil na escala 1:5.000.00 e seguindo as definições da Lei e resoluções estaduais do CONAMA”.

“É importante dizer que ao estar incluso no mapa não significa se seja Mata Atlântica, mas que está sob efeito da Lei da Mata Atlântica”, frisou Rosa, acrescentando que o estudo liderado por Castro é “muito importante para caracterizar as espécies vegetais com suas exclusividades, suas vegetações predominantes e seus endemismos particulares e cobrar que Cerrado e Caatinga também sejam reconhecidos como Patrimônio Nacional”.

Castro acredita que a inclusão das florestas do Piauí no Mapa da Lei 11.428 foi estratégica. “Reconhecemos com a maior tranquilidade que a estratégia de considerar que a vegetação da Serra Vermelha era Mata Atlântica foi providencial naquela época. Certamente se isto não tivesse acontecido, parte ou quase toda a Serra Vermelha poderia ser hoje apenas ‘carvão’. Não haviam levantamentos botânicos para a região e o Cerrado e a Caatinga não são considerados Patrimônio Nacional pela Constituição de 1988”.

Contudo, ele acredita que isso prejudicou o Piauí quanto à sua caracterização ecológica. “Se incluiu como uma das ‘riquezas intrínsecas piauienses’ a existência natural da Mata Atlântica, quando é absolutamente falso, tanto em argumento, quanto em base técnico-científica. Mais importante para o Piauí é a valorização das suas Caatinga, Cerrado e dos vastos ecótonos que se configuram como um dos três mais importantes trópicos ecotonais do Brasil”.

A Serra Vermelha

Serra Vermelha, no Piauí. Foto: Daniel Mesquita

A problemática da Serra Vermelha teve início em 2006, quando ambientalistas constataram que a empresa carioca JB Carbon estava desmatando a região para produção de carvão vegetal. O projeto, denominado Energia Verde, iria desmatar cerca de 77 mil hectares para alimentar mais de 15 carvoarias ali instaladas, consumindo a “última floresta do semiárido nordestino” que ocupa aproximadamente 300 mil hectares.

A ação chamou a atenção da imprensa nacional. O IBAMA paralisou o projeto de imediato e a Procuradoria da República abriu um processo investigativo e entrou com uma Ação Civil Pública. Uma campanha nacional para criação do Parque Nacional Serra Vermelha foi iniciada, mas sem êxito. Iniciou-se, então, um processo para incorporação de 110 mil hectares da Serra Vermelha ao Parque Nacional da Serra das Confusões, que vem se arrastando desde 2011.

Após diversas intimações da Justiça Federal ao ICMBio para incorporar a área ao Parque, as medidas administrativas foram finalmente retomadas no início desse mês. Os procedimentos para início das audiências públicas nos municípios foram autorizados pelo ICMBio e devem iniciar em breve.

Em entrevista para ((o))eco, o pesquisador Antonio Castro esclareceu seu ponto de vista e argumentou sobre a não existência de Mata Atlântica no Estado do Piauí.

((o))eco: O Mapa da Lei nº 11.428 foi elaborado exclusivamente com base na fitofisionomia, mas o senhor argumenta que deve ser levado em conta a composição florística e a fitossociologia para classificar a vegetação. Você acredita que, metodologicamente, isso seria possível, numa escala federal? Como garantir uma uniformidade metodológica, que seja refletida na legislação federal e nos mapeamentos do IBGE?

Antonio Castro: Claro que eu acho possível, embora custoso e lento. O Brasil, pela sua posição geográfica no Planeta, pelo tamanho e pela sua grande riqueza em biodiversidade, precisa ser conhecido. Com todos os avanços que já tivemos, o Brasil não conhece o Brasil! As universidades públicas e os herbários brasileiros com financiamento podem resolver muita coisa sobre o domínio do conhecimento da biodiversidade de tipo. Nesta área, as abordagens da “biodiversidade de forma” e da “biodiversidade de função” são extremamente necessárias para a interpretação da natureza. Isto é pesquisa básica. A pesquisa aplicada é absolutamente indispensável, mas ela só faz sentido quando amparada pela ciência.

Vegetação na Serra Vermelha – Piauí. Foto – Daniel Mesquita

O Inventário Florestal Brasileiro (ou Inventário Florestal Nacional do Serviço Florestal Brasileiro), que está em curso no Brasil, poderia assumir esta missão, mas começa a errar quando só inclui engenheiros florestais, políticas do agro e metodologias de amostragem absolutamente insuficientes. Quando se sabe que o mínimo para as estimativas que se tem que fazer deve ser de 1 hectare (de área amostrada), mas que considera apenas em cada local um total de 4 (quatro) parcelas de 20×50 metros, quando no mínimo seriam necessárias 10 (dez) parcelas de 1.000m² (= 1 ha), ou 17 (dezessete) parcelas de 600 m² (1,2 ha), por exemplo. O bom deste Inventário tem a ver com a sua espacialização. O Brasil foi todo quadriculado para este fim.

O mecanismo de parcelas permanentes que fizemos parte também deveria ser adotado, porque as áreas de coletas precisam ser revisitadas para complementação de coletas botânicas, uma vez que todo o sistema de classificação e determinação botânicas é dependente da oferta de órgãos reprodutores das plantas, desde os tempos de Lineu.

Uma uniformização metodológica poderia existir a partir das lideranças deste Inventário Florestal, do IBGE e das universidades públicas brasileiras, por exemplo, mas até agora nada ou pouco se avançou neste sentido

Diante dos estudos da vegetação nos três municípios citados no artigo das Serras Gerais, o senhor acredita que há elementos ou formações vegetais locais que devam ser especialmente protegidos?

O Cerrado, a Caatinga Arbórea hipoxerófila e os Ecótonos Cerrado/Caatinga remanescentes, pelo menos levando em conta as metas internacionais de no mínimo 30% de UCs (10% de UCs de Proteção Integral + 20% de UCs de Uso Sustentável).

Como o senhor acredita que os encraves florestais do Nordeste devem figurar nos mapas do IBGE?

Do mesmo jeito, como encraves, como refúgios, mas nunca como Mata Atlântica se não estão incluídos no Domínio Morfoclimático da Mata Atlântica ou dos Mares de Morro, que está circunscrito ao litoral brasileiro. Poderiam, sim, ser chamados de florestas estacionais. Algumas podendo estar “associadas à Mata Atlântica”, outras não, até porque temos florestas estacionais em todos os Biomas brasileiros.

  • Carolina Lisboa

    Jornalista, bióloga e doutora em Ecologia pela UFRN. Repórter com interesse na cobertura e divulgação científica sobre meio ambiente.

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