Pesquisadora dedica a vida a entender a dinâmica do fogo na Amazônia
A bióloga Erika Berenguer transforma a floresta em laboratório para entender os impactos do fogo e testemunha a destruição da maior floresta tropical do mundo
Texto | Paulina Chamorro
Fotos e Vídeos | João Marcos Rosa
“Lá vou eu ficar sem respirar de novo”, exclama entre uma tosse constante e uma puxada de ar, a pesquisadora Erika Berenguer, antes de entrar em uma área que há apenas duas semanas era uma floresta em recuperação e área de estudo. Estamos no baixo Tapajós, Pará, no final de outubro de 2023, quando as queimadas nos estados da Amazônia atingiram 22.061 focos de calor.
Erika está doente. Tenta disfarçar, mas passa noites com febre e dores no peito depois de inalar fumaça há dias seguidos. Encontramos com a pesquisadora no dia anterior a nossa saída, no alojamento da LBA, a partir da BR 163, no município de Belterra (PA). Combinamos que sairíamos para duas áreas próximas ao alojamento, mas em situações diferentes. Uma área de estudo que queimou completamente havia duas semanas e outra que sofreu impactos por causa da extração de madeira seletiva – e que também traz dados importante sobre a dinâmica do fogo em tempos de mudanças climáticas na floresta amazônica.
Dra. Erika Berenguer é pesquisadora das Universidades de Oxford e Lancaster, e uma das maiores referências sobre fogo em florestas tropicais do mundo.
Há 15 anos, Erika dedica longos períodos à Amazônia, estudando o impacto antrópico e das mudanças climáticas na floresta.
O principal foco do seu trabalho é o fogo, resultante da atividade humana, que altera a dinâmica da floresta, às vezes de forma irreparável.
Foto: João Marcos Rosa
Estamos à margem da Floresta Nacional do Tapajós, Unidade de Conservação mais pesquisada da Amazônia e local de estudo de Erika Berenguer há mais de uma década. A cientista climática é a primeira personagem de uma nova etapa do projeto multimídia Mulheres na Conservação, e uma das maiores referências no mundo no estudo do fogo na Amazônia.
A pesquisadora das Universidade de Oxford e Lancaster, no Reino Unido, trabalha com os impactos antrópicos e de mudanças climáticas na Floresta Amazônica.
Contagem dos mortos
Saímos no dia seguinte cedo, às 7h. Primeiro iríamos acompanhar o censo de mortalidade de árvores em um campo próximo ao alojamento. Um campo pós-guerra, onde claramente se vê quem perdeu: a floresta.
Para entrar, é importante cobrir com panos úmidos o nariz e a boca, pois ao caminhar entre cinzas de uma floresta, as cinzas são levantadas a cada passo, mesmo que a queimada em questão tenha ocorrido há 2 semanas.
“Estamos sendo envenenados pela morte da Amazônia”, ela resume quando conseguimos conversar depois de uma contagem de árvores que não estão mais lá.
Um trio de araras-vermelhas passa por nós, e o contraste de cores deixa tudo mais chocante. Trata-se de uma mata seca, marrom, com o solo coberto por cinzas. Alguns troncos estão carbonizados. Em outros, só sobrou o contorno do que foi um tronco caído e que queimou até a raiz, deixando enormes buracos no chão. Parece um campo minado.
Nos acompanham nesta contagem “Graveto”, Denilson Menezes de Freitas, e “Xarope”, Gilson de Jesus Oliveira, ambos auxiliares de campo que há muitos anos acompanham Erika. Impressiona o ânimo do trio, em que pese toda a situação que temos na nossa frente. Erika me explica que esta área era monitorada há mais de dez anos e fala com carinho mostrando árvores emblemáticas que já não existem mais.
“Aqui existia uma árvore gigante, onde brincávamos nos seus cipós”, conta, mostrando um grande vazio coberto de cinzas. O trio entra neste campo tombado e já sai coletando placas esturricadas, em meio a folhas secas e troncos carbonizados.
“Essa é sobrevivente do fogo”, “essa está viva”, “essa já morreu, pode colocar a cruz”. Xarope e Graveto vão vasculhando o terreno em busca de informações para as planilhas de Erika.
Para dar o atestado de óbito ou não de cada árvore, a dupla dá pequenos cortes na árvore para ver se realmente está morta ou não. “Têm árvores que ainda não morreram, mas se percebe que em breve vão. Por isso dizemos que está na UTI”. Algumas árvores também demoram para morrer depois do fogo, portanto só entram na lista de perdidas no próximo censo de mortalidade, que deve ser realizado em janeiro de 2024.
Gregório, como é chamado este local que acompanhamos na manhã do nosso primeiro dia, é uma área que começou a ser monitorada em 2010, com 25 parcelas e era uma das áreas favoritas de pesquisa de Erika. “Era uma área linda. Tinha árvores grandes, tinha cipós imensos, que a gente se deitava e usava de balanço. Tinha uma árvore oca aqui, muito bonita, que a gente se escondia dentro para assustar o outro. Era uma área que a gente gostava muito de trabalhar, usada para testar metodologia, porque é perto da base de pesquisa. Tinha todo um valor emocional. Em 2015 ela queimou e virou esse embaubal. Estamos vendo muita embaúba, que é uma árvore pioneira. E todas as árvores que estamos vendo aqui são pioneiras, e que estão mortas, chegaram depois do fogo de 2015. Começaram a aparecer por volta de 2016/17 . Então elas têm entre cinco a seis anos, mas são pioneiras: possuem uma densidade de madeira muito baixa e armazenam muito menos carbono. Então não é como se a floresta estivesse se recuperando”, diz.
Os relatos e as imagens nos primeiros minutos do primeiro dia em campo na beira da Floresta Nacional do Tapajós já chocam.
Conexão com o real
Há quinze anos, Erika Berenguer chegou na Amazônia e não saiu mais. E nem a Amazônia saiu dela. Uma conexão que na verdade tinha começado com os primeiros anos de vida, com ajuda de alguns livros que pertenciam aos pais sobre as famosas expedições de Jacques Cousteau pela Amazônia.
“Era algo antigo, mas então a Amazônia ocupava esse espaço no meu imaginário, de um lugar quase mítico, mágico. Mas ao mesmo tempo não era algo que víamos nos livros, era de verdade! Eu não conseguia compreender, e até hoje não compreendo, que é real. Não é ficção. E me gerou um encantamento e uma vontade de ir lá, ver, conhecer e entender e amar de outras formas. Não amar por ser mítico, mas amar por eu estar tão próximo”, diz.
O primeiro trabalho em campo na região amazônica foi somente em 2008, quando tinha terminado a graduação e se ofereceu para ajudar em campo a outro pesquisador, que prontamente aceitou. Era em Mato Grosso, em uma área fragmentada que apelidaram de Falsa Floresta.
“E foi assim que vim parar aqui. Foi um choque! Era numa região altamente fragmentada, era uma fronteira do agronegócio. Mas foi aí que comecei a aprender muito não só sobre a floresta, mas sobre o Brasil, sobre meu povo, sobre o processo de colonização desta região que é 60% do país e que a gente nem entende como se deu. E isso acabou me envolvendo de uma forma muito grande e me fez entender que nada entendia. E essa falta de conhecimento que eu, de repente, encarei, me fez ficar, para buscar entender o que estava acontecendo com a maior região do país, com a maior floresta do planeta e que eu sabia tão pouco”.
Fazer uma “ciência que não seja ingênua” parece ser uma determinação da pesquisadora. A cada conversa que fazíamos nas paradas entre o calor e o ar esfumaçado sufocante, Erika reforça que a realidade amazônica precisa ser encarada para enxergar o futuro da maior floresta tropical do planeta.
Fogo, impotência e luto
O fogo entrou na vida de Erika depois do doutorado. Mesmo depois de ter trabalhado em áreas já degradadas, foi em 2015, já integrando a Rede Amazônia Sustentável-RAS, que ela viu o fogo em ação. “Quando estava trabalhando, desenvolvendo minhas pesquisas e o fogo foi entrando nas minhas áreas de pesquisa e em outras áreas que não eram de minhas pesquisas, mas que eu conhecia intimamente e foi matando tudo. E o que sobrou depois foi a floresta arrasada. E foi uma sensação de impotência muito grande. E aquilo me deu um desespero de dizer: isso aqui é uma coisa muito importante e a gente precisa ter mecanismos para prevenir estes incêndios florestais para que não aconteça o que eu estou presenciando acontecer. Isso não pode acontecer com a maior floresta tropical do planeta”, diz.
Passados oito anos de pesquisa intensa e com marcas inclusive na saúde de Erika, a sensação é de luto. Com dores no peito, nariz entupido, garganta arranhando, ela nos explica que o mesmo não aconteceu quando, em 2015, um milhão de hectares pegou fogo na região.
“Eu não tive uma reação respiratória, apesar do excesso de fumaça. Eu tive uma reação de tristeza, e que eu fui entender meses depois que o que eu estava passando era o luto. E começou a aparecer na literatura científica coisas relacionadas com o luto ecológico e que acaba se tornando cada vez mais comum. E lendo isso me identifiquei e finalmente pude entender o que estava sentindo. Não podia nem processar nem colocar um nome. E percebi que estava em luto, mas não sabia que podia estar em luto pela floresta. Por um bioma. Não conseguia entender isso. E este ano tenho sentido isso de novo. E fico oscilando entre mau humor, tristeza, raiva, mas nunca de desistência”.
“Porque no momento que eu desistir, várias pessoas vão continuar, mas não é gente suficiente para conseguir lidar com o tamanho do problema”, completa.
O trabalho de campo
A busca por dados que possam traçar caminhos, mesmo se sobrepondo à dor física, é uma obstinação. Ainda no campo, pela manhã, contabilizando árvores mortas em um cenário que parecia um cemitério, a linguagem usada pela equipe “é a da desgraça”, como Erika define parte do seu trabalho no monitoramento da dinâmica da floresta pós fogo.
O fogo mata cerca de 50 a 60% das árvores acima de 10 cm de diâmetro. E mata 90% das árvores fininhas, em crescimento, nos conta a pesquisadora.
Paramos em frente a um tronco enorme, de 40 metros, caído e ainda pegando fogo.
Como essa árvore é muito grande, ela armazena uma quantidade desproporcional de carbono. “Com a queda dela vamos ver que os estoques de carbono desta área vão colapsar, diminuir radicalmente, pois estamos perdendo justamente as árvores que eram responsáveis por armazenar os grandes estoques de carbono que tinham nessa área”, diz.
Era um lugar silencioso, só com o som do vento batendo nas folhas secas. Estamos em uma das áreas de monitoramento, de 100 m², onde se mediam as árvores com menos de 10 cm de diâmetro, e não sobrou nada. Nem os canos de PVC que marcam os limites das áreas. Só sobrou carvão e um grande clarão. No total, 11 árvores que existiam ali viraram cinzas.
Uma das possibilidades levantadas por Erika é que era uma área com muitos cipós, o que deixou com que o fogo subisse até as copas das árvores.
Quando pensamos sobre a composição de floresta e os efeitos da ação humana, não podemos pensar apenas em indivíduos de árvores. E a mudança de um ambiente para outro também é marcante. “Em uma floresta se sente o cheiro de cocô de macaco, de folhas úmidas, de diferentes árvores que estão florindo. E agora a gente só sente o cheiro de carvão e cinzas”.
“Visualmente, em vez de ser vários tons de verde, vemos uma cor homogênea. Marrom de folha seca, o branco das cinzas e o preto do carvão. Então toda a complexidade que a floresta tem virou uma homogeneização, não só para a biodiversidade, pois agora só nascerão árvores pioneiras, mas também para os próprios sentidos”.
Floresta virando caixa de fósforo
Pela parte da tarde, visitamos outra situação de monitoramento também muito próxima do alojamento. Desta vez, ao entrar, já sentimos uma diferença enorme nos sentidos. Em uma área não desmatada, sentimos cheiros, formigas trabalhando no chão, sombra. Mesmo sendo uma área que já sofreu um impacto no passado.
A cada três meses , Erika e sua equipe acompanham a mortalidade de mais de seis mil indivíduos de árvores, distribuídos em 20 áreas diferentes. A que fomos pela manhã, que queimou há duas semanas, é uma dessas áreas. E a que estávamos de tarde nunca queimou.
Este censo ajuda a entender cenários. Primeiro, em anos normais, sem seca extrema, entendemos a dinâmica da floresta. Em anos de seca extrema, como está sendo 2023 e como foi 2015, compreende-se o impacto da seca na mortalidade das árvores. Ou melhor, o excesso de mortalidade que é causado por causa da seca. São projeções como essa que servem para traçar previsões climáticas. É importante, porque as previsões climáticas mostram que secas extremas serão cada vez mais frequentes e intensas na Amazônia.
E este levantamento também ajuda a entendermos o impacto do fogo dentro da floresta.
Historicamente, a Amazônia é úmida demais para pegar fogo. “Quando falamos dos povos tradicionais fazendo o corte e queima do roçado, o fogo não entrava dentro da floresta. Era tão úmido que o fogo morria, não se propagava. Agora a gente tem alguns problemas agindo conjuntamente. Primeiro, Mudanças climáticas. Dos anos 1970 até agora a Amazônia já aqueceu 1,5º C. Na região do baixo Tapajós, já se sente um aumento de 2,5º C de temperatura, e uma redução de 34% da precipitação de chuva, ou seja, a Floresta está mais quente e seca.”
O segundo problema, relata a pesquisadora, é o El Niño, que, com o aquecimento das águas do Pacífico, afeta a Amazônia, deixando a floresta com menos chuva.
E, por último, estamos em uma área onde já teve extração de madeira, que causa uma série de clareiras de onde as madeiras que têm valor foram retiradas. “E isso muda o microclima da floresta. Ou seja, a temperatura e a umidade em certas partes da floresta vão estar diferentes. Temperatura mais alta, umidade mais baixa, e tudo isso se junta para transformar esta floresta em uma caixinha de fósforo”, explica Erika Berenguer.
O preço da queimada
A floresta é muito mais que um conjunto de árvores. Ela não é somente aqueles indivíduos que estão aí. São todos os processos e funções que ocorrem ali dentro. Mas estamos incluindo não só as plantas, mas os animais, os fungos e as algas. Vai muito além das árvores em si.
E o impacto do fogo não é só imediato. Erika nos conta que existem estudos que mostram que 30 anos depois de uma área de floresta pegar fogo, a mesma retém 25% menos carbono em comparação a uma floresta que nunca pegou fogo.
Se colocarmos em perspectiva, então, os últimos 10 anos de fogo e desmatamento intenso na Amazônia, o futuro para os próximos 30 anos é muito preocupante.
“A recuperação da floresta não ocorre numa escala temporal dos humanos. Porque se 30 anos depois a floresta ainda armazena 25% a menos de carbono, imaginemos como será em áreas que pegaram fogo mais de uma vez. Nós não temos dados sobre isso. E isso significa que a gente não sabe como será o futuro das florestas degradadas na Amazônia”, diz. “O que vemos em áreas que já sofreram incêndios florestais é um colapso do estoque de carbono nessas áreas, porque a vegetação morre. Então estas áreas vão armazenar 30 a 40% menos de carbono do que uma área que nunca pegou fogo. Se a área teve extração de madeira e pegou fogo, vemos um colapso de até 70% dos estoques de carbono”, diz.
Quando vemos as imagens por satélite, claramente se percebe onde existem áreas protegidas. Todo o entorno é marcado com faixas marrons e verdes claras, de monocultura ou desmatamento recente. “Quem trabalha com imagens de satélite, vai olhar uma floresta como a que estamos e verá uma floresta toda verde. A imagem que a gente chama de saturada, sem clareiras. Então, dá pra pensar que é uma floresta que já se recuperou. Mas quando estamos aqui embaixo, no chão, vemos que não é bem assim. Pode estar cheio de clareiras, o dossel é baixinho, tem pouca diversidade. Pode parecer verde, mas é uma floresta completamente diferente da que existe aqui antes”, problematiza.
A esperança é verde
No segundo dia de visitação, queríamos ver a floresta de cima: e conseguimos. Visitamos o topo da Flona Tapajós, em uma torre de pesquisa e visitação. Há seis meses que Erika não visitava esse local, e parecia que lhe fazia falta ver novamente a floresta deste ângulo, com o frescor e a beleza de um nascer do sol na Amazônia, numa porção conservada.
“Me dá alegria, paz e reconexão com meu trabalho e minha pessoa estar aqui. Daqui vemos várias espécies diferentes de árvores. Pássaros diferentes, sons. Aqui é a Amazônia superlativa, tudo ao mesmo tempo, agora. Para trabalhar na Amazônia, minha fonte de inspiração, minha referência é a própria floresta. Não foi nenhuma mulher. A floresta, para mim, tem essa energia feminina”, diz.
E lá do alto, um pouco acima das copas, e para ver o amanhecer na Amazônia, quase nos esquecemos por instantes que a terra arde.
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