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Primeiro diagnóstico marinho-costeiro nacional pretende resgatar o Oceano da invisibilidade

O documento inédito revela a importância do patrimônio marinho-costeiro para o país, através da união de pesquisa científica e conhecimento tradicional

Carolina Lisboa ·
27 de novembro de 2023 · 1 anos atrás

O Brasil é conhecido mundialmente por suas vastas e ricas florestas tropicais, especialmente a Amazônia. Mas o que o mundo e os próprios brasileiros desconhecem é o potencial da nossa outra Amazônia, a Azul.

Com uma área de 5,7 milhões de km² ou dois terços do território continental do país, a “Amazônia Azul” abriga uma alta biodiversidade presente em uma grande variedade de ecossistemas, prestando serviços fundamentais para a prosperidade, a soberania e o bem-estar do povo brasileiro. Contudo, é também um patrimônio em risco. É o que revela o 1º Diagnóstico Brasileiro Marinho-Costeiro sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, em seu Sumário para Tomadores de Decisão (STD) lançado na última quinta-feira (23) pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e pela Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano.

Escrito por 53 especialistas acadêmicos e governamentais, 12 jovens pesquisadores e 26 representantes de povos indígenas e populações tradicionais, em diálogo com atores do poder público e da sociedade civil, o Diagnóstico tem como objetivo “tirar o Oceano da invisibilidade” e colocá-lo no centro da agenda da sustentabilidade do país, abordando seu histórico e estado atual, vetores de transformação, cenários e oportunidades para conservar e restaurar sua biodiversidade e seus serviços ecossistêmicos. A sua versão completa, organizada em seis capítulos, deve ser publicada em junho de 2024.

Uma das principais mensagens do estudo é que “a prosperidade e a soberania do país e o bem-estar do povo brasileiro dependem direta e indiretamente do Oceano e dos benefícios que ele provê”. Dentre estes benefícios estão a segurança alimentar, hídrica e energética, recursos minerais e biotecnológicos, proteção da linha de costa e regulação climática por meio da produção de parte do oxigênio que respiramos, atenuação do efeito estufa e controle do regime de chuvas que sustenta a produção agrícola nacional.

Durante coletiva de imprensa para a divulgação do STD, Beatrice Padovani Ferreira, do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), frisou que a maior qualidade do Diagnóstico é a discussão com a comunidade. “Foram feitas pesquisas e uma reunião coerente de informações para a zona costeira e marinha, abrangendo serviços ecossistêmicos materiais e imateriais. Produzimos novas interpretações do conhecimento já disponível”.

Fonte: BPBES

Valoração oceânica e políticas públicas

Padovani destacou que as atividades na zona marinha-costeira brasileira, como pesca, aquicultura, navegação, mineração e turismo, contribuem com cerca de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Contudo, esse valor é subestimado, pois não leva em conta serviços ecossistêmicos fundamentais e difíceis de mensurar como proteção da costa e regulação climática, ou ainda benefícios imateriais, como beleza cênica, lazer e relações espirituais com o Oceano.

Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico (IO) da USP e um dos coordenadores do estudo, destacou que foram identificadas lacunas de conhecimento que precisam ser preenchidas com estratégias, como por exemplo a estatística pesqueira, cujo programa nacional foi descontinuado em 2008. “Precisamos avaliar os estoques no mar. Há uma discussão em andamento a respeito e os tomadores de decisão podem conseguir respaldo utilizando esse arcabouço fornecido pelo Diagnóstico”.

Para Padovani, a falta de políticas públicas como a coleta de dados oficiais sobre o setor pesqueiro é “uma crise impensável para um país como o Brasil; não há como voltar nesses anos nos quais não houve coleta de dados, que deixaram de ser coletados em 2008”. Os pesquisadores avaliam que uma situação de declínio da produção pode estar em curso devido à ausência dessa gestão. Exemplo disso é que 25 espécies ou grupos de espécies responsáveis por mais de 50% da produção marinha já se encontram totalmente exploradas ou sobre-exploradas, a exemplo da piramutaba na região Norte, da lagosta-vermelha no Nordeste e da tainha no Sul.

Além da sobre-exploração, o Diagnóstico frisa que a pesca mal gerida causa diversos outros impactos aos ecossistemas marinhos-costeiros. A captura da fauna acompanhante (bycatch), por exemplo, é superior a 360 mil toneladas/ano no Brasil, excedendo a pesca de espécies-alvo em muitos casos. Já a pesca de arrasto causa degradação do fundo do mar, e a pesca fantasma, resultante da perda ou do descarte de petrechos no mar, tem ocasionado a mortalidade de organismos marinhos. O documento conclui ainda que o agravamento da ineficácia na gestão favorece a degradação da qualidade ambiental e a ausência de proteção em áreas de berçário e desova de peixes e outros organismos marinhos.

Coleta de caranguejo em manguezal de Caravelas, numa área bem de frente a Ponta de Areias. Foto: Herton Escobar/Jornal da USP.

Mudanças climáticas

Na publicação, os autores reiteram a importância da zona marinho-costeira como amortecedora contra as mudanças climáticas, sequestrando e estocando carbono e atenuando eventos extremos, ao mesmo tempo que ressalta que alterações do clima contribuem para a elevação do nível médio do mar, com ressacas de maior alcance, acidificação e aumento da temperatura da água causando impactos sobre a biodiversidade, os serviços ecossistêmicos e o bem-estar humano. 

Padovani acredita que, em relação aos esforços para manter a média de temperatura do planeta em 1,5°C até o final do século, “estamos perdendo e vamos continuar perdendo”. Para a pesquisadora, precisamos manter a resiliência desse ecossistema, especialmente porque quem sempre mais sofre são as populações mais vulneráveis, que vivem num espaço costeiro pequeno. “As mudanças climáticas podem trazer uma crise humanitária sem precedentes”, concluiu.

Turra acrescentou que, quanto menos biodiversidade, menos serviços ecossistêmicos, o que irá se desdobrar em injustiça social, colapso do turismo e problemas na bacia hidrográfica, por exemplo. “É preciso entender os ecossistemas, para parar de gerenciar a zona costeira só tirando lixo e engordando a praia. Estamos caminhando para um ponto de não retorno, de descolamento do Oceano da sociedade”.

Já Cristiana Seixas, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), frisou que, com o agravamento das mudanças climáticas, mais desastres e eventos extremos irão acontecer, e estes serão complicados pelas desigualdades sociais. “As mudanças climáticas não selecionam ricos e pobres, elas afetam a todos. Precisamos pensar daqui a 50 ou 100 anos e agir hoje”.

A pesquisadora Cristina Seixas, da Unicamp, apresenta os dados durante o lançamento do Sumário. Foto: Paula Casas/BPBES

Protagonismo

Na opinião de Turra, a solução para os problemas relativos ao Oceano deve vir “de baixo para cima, da praia, dos povos indígenas, do povo tradicional quilombola, que estão conseguindo muito protagonismo com movimentos nacionais dos territórios, bastante evidentes nos últimos cinco anos”.

Contudo, ele avalia que outros grupos, como o setor do turismo, por exemplo, não estão sequer pensando nessas questões, apesar de depender de um ambiente saudável. “Eles precisam planejar e trabalhar, por exemplo, a balneabilidade das praias a longo prazo”.

Por fim, Turra acredita que a agenda oceânica deve ser tratada “de uma forma exuberante, assim como é o Oceano, pois contém a maior biodiversidade e está em todo lugar”.

  • Carolina Lisboa

    Jornalista, bióloga e doutora em Ecologia pela UFRN. Repórter com interesse na cobertura e divulgação científica sobre meio ambiente.

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