Ao longo de todo o rio Negro, o gigante de águas negras que percorre o estado do Amazonas, há inúmeras unidades de conservação, tanto de proteção integral, quanto de uso sustentável que, juntas, ajudam a proteger não apenas a floresta amazônica e o rio, mas também as comunidades ribeirinhas, tradicionais ocupantes das margens do curso d’água. Uma proposta enviada pelo governador, Wilson Miranda Lima (PSC) à Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas cria uma nova área protegida neste território — a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Bom Jesus do Puduari, com cerca de 203 mil hectares — e altera os limites de outras duas já existentes, o Parque Estadual Rio Negro Setor Norte e a Área de Proteção Ambiental da Margem Direita do Rio Negro, para comportar a nova reserva. Ao todo, a proposta aumenta em 175,8 mil hectares o território protegido no Baixo Rio Negro.
O texto do Projeto de Lei Ordinária nº 214/2021 foi apresentado aos parlamentares no começo de maio (03/05), junto a uma mensagem do governador, na qual este ressalta que foram cumpridos todos os procedimentos prévios definidos pela legislação, como estudos técnicos e consultas públicas, e acrescenta ainda que os moradores das localidades envolvidas manifestaram-se a favor da medida, “em razão de a recategorização ajudar na preservação da área, tendo, inclusive, se comprometido a colaborar na gestão da unidade de conservação”.
O projeto de lei visa resolver a situação de três comunidades e cerca de 210 famílias que vivem dentro dos limites do parque estadual desde antes de sua criação, em 1995, e para isso estabelece uma nova Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), unidade de conservação de uso sustentável onde a moradia de comunidades tradicionais é permitida. Além da porção do parque, a área proposta da RDS avança também sobre parte do território da APA do Rio Negro.
“Por Lei, os Parques Estaduais são áreas de proteção integral, que não admitem populações em sua área, nem o uso direto dos recursos naturais. Apesar disso, em 1995, embora já houvesse comunidades residentes na área, o Parque Estadual Rio Negro Setor Norte foi criado, sem levar em conta que já havia comunidades residentes naquela região, fruto de uma ocupação histórica ainda do século 18”, conta o secretário de Meio Ambiente do Amazonas, Eduardo Taveira. “Em uma RDS, as políticas públicas de conservação ambiental avançam na medida em que os costumes das populações tradicionais são preservados, inclusive, no manejo dos recursos naturais, possibilitando a essas famílias geração de renda, a Concessão de Direito Real de Uso daquele território, como instrumento de regularização fundiária; o acesso a linhas de crédito para fomentar a produção familiar e outros mecanismos de incentivo ao desenvolvimento sustentável e melhoria da qualidade de vida dos ribeirinhos”, completa o secretário.
Com a proposta o parque ganha novo nome: Parque Estadual Velho Airão e apesar de perder parte do território para criação da RDS, dobra de tamanho com a proteção de novas áreas de floresta e de igarapés que garantem a preservação da cabeceira do rio Puduari. No total, o projeto amplia a extensão do parque para 292.424 hectares, pouco mais que o dobro do tamanho atual, de 146.028 hectares.
A proposta também rebatiza a APA, que passará a ser chamada de APA Rio Negro-Solimões e sofrerá uma redução de 37,6% do seu território atual, dos 461.740 hectares atuais para 288.105, conforme detalha o projeto de lei. A diminuição cederia espaço tanto para a nova RDS quanto para parte do avanço do parque estadual.
“Foram cumpridos todos os pré-requisitos para um projeto de recategorização de unidade de conservação, como não diminuir a área de proteção, ter um processo de consulta e construção coletiva desses limites. Nós tomamos o maior cuidado possível para considerar realmente as áreas de uso tradicional dessas comunidades nesses desenhos. É todo um processo técnico de anos de pesquisa e diálogo com o poder público, comunidades, sociedade civil, Ministério Público, academia, onde vários interesses e questões legais são observadas. O projeto foi realmente construído de baixo para cima com o objetivo de melhorar a gestão territorial daquela área e para garantir os objetivos de criação dessas unidades de conservação, tanto de proteção ambiental quanto de desenvolvimento socioeconômico das populações locais”, explica Fabiano Silva, coordenador-executivo da Fundação Vitória Amazônica (FVA), ONG que há 30 anos atua na região do rio Negro.
A organização apoiou, inclusive, a elaboração do Plano de Manejo do Parque Estadual do Rio Negro Setor Norte, em 2008, quando começou a ser debatida a ideia de recategorização como alternativa para as comunidades. E desde 2013, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) realiza consultas públicas para discutir o tema. Em 2018, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) emitiu um parecer favorável sobre o projeto de lei, que agora aguarda votação na Assembleia Legislativa do Amazonas.
De acordo com Fabiano, a criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável na área de recuo do parque concilia de maneira muito mais adequada o perfil da unidade de conservação com as dinâmicas históricas de ocupação das margens do rio Negro. “E como a gente entende que a APA é uma unidade de conservação mais frágil e inefetiva pro contexto amazônico, a gente trabalhou essa expansão da RDS sobre parte da APA também”, completa.
Para tal, as populações que vivem na APA também foram consultadas, esclarece Fabiano, e apenas uma comunidade não aceitou migrar para o formato de RDS. “A única que não quis foi Sobrado, que é a primeira comunidade ao norte de Novo Airão, subindo pelo rio Negro, na margem direita. E por isso ela ficou de fora do desenho final e permaneceu na APA. Essa é uma comunidade que tem muita influência de Novo Airão, é uma espécie de sítio de final de semana e tem uma dinâmica ligeiramente diferente das outras comunidades que optaram por migrar para RDS”, conta para ((o))eco o coordenador-executivo da FVA.
Com isso, o desenho final da RDS abrange cinco comunidades ribeirinhas, as três originais do parque estadual, e mais duas que estão hoje inseridas na APA.
“Essencialmente o objetivo dessa mudança é diminuir o conflito com essas comunidades locais, fazer com que elas não tenham que ser removidas e indenizadas, gerando um custo para o estado e todo um estresse social, e levando uma UC que, em última instância, favorece o acesso a certas políticas públicas importantes. E o intuito [do novo desenho] do parque estadual foi excluir as áreas de uso, principalmente nos primeiros 10-15 quilômetros da beira do rio Negro, onde tem um uso mais intensivo das comunidades que estão ali, e expandir o parqu ao norte, para as cabeceiras dos igarapés, aumentando o grau de proteção para áres importantes e protegendo a margem direita do rio Carabinani, para que não tenha nenhuma frente de expansão por ali”, resume Fabiano. Na margem esquerda, o Carabinani já está protegido pelo Parque Nacional do Jaú.
“Obviamente que qualquer matéria falando de novas unidades de conservação gera um alarde político muito grande e já houve um movimento de reticência, mas muito por falta de conhecimento do processo. Eu entendo que o processo está bem articulado tecnicamente e tem poucos contras, inclusive sobre a perspectiva de criação de uma nova UC, porque já são unidades de conservação nesse território e eu acho que essas mudanças vêm a desonerar o Estado, melhorar a imagem do poder público frente a essas comunidades, eu acho que o arranjo é bastante positivo”, analisa o coordenador-executivo da FVA que acredita que o esforço agora é combater a possível desinformação sobre o projeto e sobre o que ele de fato irá representar ao território. “Vai ter o debate e eu acho que o projeto passa [na Assembleia] porque uma vez que ele é explicado minimamente, existem poucos argumentos contrários”, conclui.
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