Reportagens

Rastrear produção de ouro protegerá a biodiversidade

O garimpo criminoso pode acabar com a Amazônia e com a reputação do país, alertaram especialistas em debate nacional

Aldem Bourscheit ·
17 de maio de 2023 · 2 anos atrás

Ampliar e melhorar a regulação, a fiscalização e o rastreamento das cadeias produtiva e comercial do ouro é fundamental para manter a biodiversidade em áreas legalmente protegidas alvo do garimpo criminoso, desse e de outros minerais. Especialistas comentam como isso pode ser feito. 

Parques nacionais e terras indígenas são os grandes abrigos de riquezas naturais e de culturas ancestrais no país, mas ainda sofrem com a extração ilícita de recursos. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) aponta que 72% da área de garimpo na Amazônia ocorre nessas áreas.

“Há uma indústria do garimpo ilegal, fornecendo pessoas, maquinário, e logística”, diz o deputado federal Zé Silva (Solidariedade/MG) e presidente da Frente Parlamentar da Mineração Sustentável, instalada em março.

Exemplos são as terras indígenas Munduruku (foto acima) e Sai Cinza, além do Parque Nacional do Jamanxim e da Floresta Nacional de Altamira, todos no Pará. Na fronteira com o Peru, a Estação Ecológica Juami-Japurá também é vítima da mineração ilegal.

“98% do ouro comercializado no entorno de terras indígenas da Amazônia têm indícios de ilegalidade”, lembra Joênia Wapichana, presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Um dos casos mais graves atinge o território Yanomami, em Roraima (foto abaixo). Lá, a mancha afetada por garimpos saltou de 363 ha (2018) para 1.557 ha (2021), ou 330%. Uma força tarefa mobilizada pelo novo governo federal remove garimpeiros e madeireiros ilegais da área. 

“Ou a gente acaba com esse garimpo [ilegal] que está aí, ou esse garimpo vai acabar com a Amazônia e a reputação [internacional] do nosso país”, alerta Larissa Rodrigues, responsável pelos temas mineração, energia e uso de terras no Instituto Escolhas

Ela foi outra painelista no debate promovido pelo jornal Correio Braziliense nessa terça-feira (16), sobre a problemática socioambiental e econômica atrelada à extração ilegal de minerais no Brasil.  


Motor do corte de florestas e do assoreamento de rios, o garimpo de ouro contamina terras, águas, animais e pessoas com mercúrio, fonte de doenças que podem levar à morte. Não há dose mínima segura no organismo humano para o tóxico, usado para separar o mineral de outras substâncias. 

Desde 2013, uma lei federal sancionada por Dilma Rousseff permitia a “lavagem” de ouro retirado de áreas protegidas com simples declarações de que havia sido extraído de forma regular. A chamada “presunção de boa-fé” foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no início de maio.

A decisão da Corte foi unânime e também fixou 90 dias para que o Executivo federal detalhe novas regras fiscais e comerciais para o mineral, no país todo. A ideia é dificultar a circulação de outro extraído ilicitamente de unidades de conservação e de terras indígenas.

“A exploração de riquezas tem que ser dentro de marcos legais não perturbadores do meio ambiente e das comunidades”, ressaltou o ministro do STF Gilmar Mendes, relator de ações diretas de inconstitucionalidade questionando a legislação sobre o comércio nacional de ouro.

Área afetada por garimpo criminoso ao longo do Rio Uraricoera, na Terra Indígena Yanomami. Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real

Volta aos trilhos

Atenta aos prejuízos que o garimpo criminoso causa em terras indígenas e outras áreas protegidas, a presidente da Funai espera que o país dê amplas transparência e confiabilidade às cadeias produtiva e comercial do ouro, beneficiando inclusive as forças policiais. 

“Precisamos de uma política fiscal eficiente e permanente para controlar de onde vem o ouro e seus caminhos da extração à venda. Isso ajudará no combate aos ilícitos pela Polícia Federal e outros órgãos de fiscalização e de policiamento”, ressalta.

A medida também pode manter abertas as portas de mercados internacionais, onde crescem as exigências por produtos comprovadamente legalizados e livres de impactos sociais e ambientais.

Para Larissa Rodrigues, o ouro brasileiro pode ser enquadrado como um “mineral de conflito” pelo endurecimento de regras comerciais na União Europeia. Isso prejudicaria economias regulares e negócios do país no Exterior.

“Não dá para imaginar que um comércio bilionário [o do ouro] vai funcionar apenas na base da boa fé”, apontou a especialista do Instituto Escolhas e doutora em Energia pela Universidade de São Paulo (USP). 

O Brasil não tem uma lei para minerais de conflito, como tem por exemplo os Estados Unidos. A norma desestimula o uso de materiais que podem fomentar violências e outros prejuízos humanos e ambientais.

Enquanto isso, a União Europeia adotou esta semana regras dificultando as importações de produtos ligados a desmatamento e degradação florestas. As normas iniciais incidem sobre óleo de palma, gado, madeira, café, cacau, borracha, soja e derivados como chocolate, móveis e papel. 

Um estudo da organização ambiental internacional WWF estima que de 50% a 70% do ouro negociado no mundo passa fisicamente pela Suíça. O país é um grande importador do mineral extraído no Brasil. O Instituto Escolhas aponta que 17% do ouro exportado em 2020 pelo país foi ilegal, ou 19 toneladas.

Além disso, a guerra Rússia-Ucrânia e o avanço geopolítico chinês abalaram a confiança mundial no Dólar e fizeram a compra de ouro por bancos centrais de países alcançar os níveis mais altos desde os anos 1950, conforme o Conselho Mundial do Ouro, entidade mobilizadora desse mercado.

As fontes especializadas comentaram igualmente que a regulamentação do setor passa por melhorar o licenciamento ambiental e as condições de trabalho, pela recuperação dos locais degradados – sobretudo em áreas protegidas – e pelo banimento do mercúrio na mineração. 

Dar fim aos usos da substância é uma das diretrizes da Convenção de Minamata, promulgada pelo Brasil em 2018, mas ainda não colocada em prática.

Manter a floresta, seus povos e sua biodiversidade depende de um grande plano de desenvolvimento sustentável. Foto: Neil Palmer/CIAT / Creative Commons

Pondo uma lupa na procedência e transações com ouro, a Casa da Moeda do Brasil (CMB) começa a implantar este ano uma plataforma de rastreabilidade. Cada movimentação legal receberá um selo digital e físico, válido no Brasil e no Exterior. A tecnologia é usada em bebidas e cigarros, desde 2021.

Garimpeiros e DTVMs terão que se registrar na plataforma, com reconhecimento facial ou de biometria, senhas e diferentes perfis de acesso. “Só agentes credenciados ou autorizados a produzir ouro acessarão os códigos, armazenados na blockchain na Casa da Moeda”, explica o diretor de Inovação e Mercado da CMB, Leonardo Abdias.

As DTVMs são distribuidoras de títulos e valores mobiliários autorizadas pelo Banco Central para intermediar a compra e a venda de itens no mercado financeiro.

Presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), representante de empresas e instituições do setor mineral, Raul Jungmann lembra que o combate ao garimpo criminoso depende também da atração de mão-de-obra para atividades legalizadas.

“O garimpo é um enorme problema de pobreza, de miséria. Cadê as alternativas econômicas? Há necessidade de gerar emprego e renda para as  pessoas”, destaca. 

Na Amazônia vivem cerca de 29 milhões de brasileiros, 70% deles em cidades, ou pouco mais de 20 milhões de moradores. A região tem 5 milhões de km2 – ou 60% do território nacional –, mas responde por apenas 8% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional.

Conforme Jungmann, o poder público precisa ampliar sua presença neste “grande vazio demográfico” através de um plano de desenvolvimento sustentável para a floresta equatorial, peça chave no enfrentamento da crise climática global. 

“O Brasil não tem projeto para a Amazônia. O que o país quer da região?”, questiona.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

Leia também

Notícias
11 de agosto de 2021

Interesse em garimpo de ouro no Amazonas aumentou 342% em 2020

Mais de 12 milhões de hectares do Amazonas são alvo de processos minerários ativos na Agência Nacional de Mineração, o que corresponde a cerca de 8% do Estado

Salada Verde
6 de abril de 2023

Liminar do STF derruba “presunção de boa-fé” no comércio de ouro

Decisão do ministro Gilmar Mendes suspende efeitos de trecho de lei que facilitava ação do garimpo ilegal. Plenário ainda julgará a ação

Notícias
15 de janeiro de 2015

Corrida do ouro deixa rastro de desmatamento na América do Sul

Estudo mostra que subida rápida do preço internacional incentivou corrida pelo metal na Amazônia e levou à destruição de florestas.

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.