O governo do estado do Rio Grande do Sul tem se apressado em tirar do papel um projeto que prevê a concessão da Lagoa dos Patos à iniciativa privada para a exploração de energia eólica. O projeto, bem como os procedimentos adotados pelo executivo gaúcho em sua condução, tem preocupado pesquisadores e sociedade civil. Inconsistências e fragilidades encontradas em todas as etapas da proposta podem ocasionar impactos irreversíveis à sociobiodiversidade, defendem.
Problemas prévios – pressa e falta de subsídio técnico
O processo de concessão de uso de bem público para instalação de parques eólicos na Lagoa dos Patos começou no apagar das luzes de 2021: no dia 29 de dezembro, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul (SEMA/RS) publicou um “Aviso de Audiência e Consulta Pública”.
A consulta pública virtual foi aberta no dia 3 de janeiro e durou 19 dias, até 21 de janeiro, quando a audiência foi realizada. A expectativa inicial da SEMA era de que o edital fosse publicado já em fevereiro.
Do projeto, pouco se sabe. Segundo site da SEMA/RS, a Lagoa dos Patos será dividida em dois grandes lotes (norte e sul), “o que é capaz de atrair o maior número de investidores”, diz a página. As informações técnicas da iniciativa param por aí.
“A gente não tem absolutamente nenhuma informação sobre o empreendimento, não diz qual a capacidade, quantas torres, qual a altura delas, nem onde elas estarão localizadas”, diz Leandro Bugoni, pesquisador do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Além da falta de detalhamento dos parques eólicos que se pretende instalar na Lagoa dos Patos, Bugoni também alerta para a ausência de estudos prévios sobre a proposta.
Tanto o termo de referência quando o texto de apresentação do projeto não apresentam nenhum levantamento sobre a viabilidade econômica e ambiental do projeto, nem os impactos que ele terá ao meio ambiente e às comunidades que se utilizam da laguna.
“É um cenário completamente cego o que foi apresentado”, complementa o pesquisador.
No dia 20 de janeiro, outros 21 pesquisadores da FURG publicaram um parecer técnico sobre os documentos disponibilizados até então pelo governo do estado sobre a iniciativa.
Nele, os especialistas lembram que a legislação brasileira prevê que órgãos públicos realizem estudos prévios para tomada de decisão, calcada em prognósticos de impactos, a exemplo da Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) e o próprio Zoneamento Ecológico Econômico/ZEE. Nenhum desses procedimentos foi feito para embasar o projeto gaúcho.
“A SEMA, enquanto ente do Sistema Nacional do Meio Ambiente, deveria realizar tais estudos antes da concessão […] Somente após os subsídios técnicos e de compatibilização entre a geração de energia eólica e demais atividades econômicas, bem como em relação à conservação da biodiversidade, poderia ser iniciado o processo de oitivas para concessão da área”, diz trecho do documento.
“O processo de consulta e audiência pública, bem como o edital que está sob consulta, violam os princípios do Direito à Informação, a Participação, da Precaução, dentre outros”, conclui o parecer técnico.
A SEMA/RS foi questionada por ((o))eco sobre a existência de tais avaliações prévias. Por e-mail, a secretaria disse que “o projeto para cessão de uso da Laguna dos Patos está ainda em curso, sendo que os estudos sugeridos fazem parte do contexto da primeira fase do plano de trabalho, conforme minuta de edital”.
Problemas durante: Falta de participação popular
A Lagoa dos Patos é a maior laguna – água salgada ou salobra – da América do Sul, com 265 km de comprimento e 60 km de largura. Atualmente, em torno de 13.500 pessoas, o que totaliza mais de 50% dos pescadores artesanais do Rio Grande do Sul, fazem uso do local para subsistência. Além disso, ao longo das margens da Lagoa e ao sul do Rio-Lago Guaíba existem diversas comunidades indígenas Mbyá-Guarani, além de comunidades quilombolas.
Contrariando o que preconiza a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a lei brasileira, nenhuma dessas comunidades foi consultada previamente pelo governo gaúcho sobre o projeto.
O formato da audiência pública também não facilitou a manifestação popular. Além de não considerar a dificuldade de acesso à internet dessas comunidades, o processo de participação demandou que cada participante tivesse em mãos dois dispositivos eletrônicos, já que era preciso assistir à audiência pelo Youtube e ingressar no debate através de outra plataforma, simultaneamente.
Durante a audiência, que durou cerca de duas horas e foi marcada por problemas técnicos, cada participante teve direito a apenas dois minutos de fala e as manifestações no chat foram desconsideradas.
Também no chat do youtube, usuários reclamavam que não estavam sendo aceitos na sala virtual para contribuir com a audiência, mesmo tendo feito inscrição prévia por e-mail.
Todos esses problemas subsidiaram um pedido de anulação do debate online, endereçado ao Ministério Público Federal e assinado por pesquisadores, pescadores artesanais, coletivos e movimentos populares. A representação foi protocolada no MPF na última terça-feira (1º).
Também na terça-feira, 161 organizações da sociedade civil e academia publicaram um “Manifesto contra a concessão onerosa da Lagoa dos Patos”, em que demonstram “contrariedade” a respeito da forma como o processo vem sendo conduzido.
No documento, elas pedem a revogação dos procedimentos já realizados, bem como a realização de consulta prévia, livre e informada das comunidades afetadas e condução de estudos técnicos prévios à concessão.
Problemas depois: Falta de critérios para licenciamento
Especialistas também alertaram para fragilidades do processo mesmo após a concessão, caso ela de fato ocorra. Isso porque, atualmente, não há dentro do órgão responsável pelo licenciamento da obra no estado, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM), um modelo claro para esse tipo de licenciamento.
Segundo o biólogo Israel Fick, conselheiro do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) e voluntário da União Protetora do Ambiente Natural (Upan), falta, dentro do órgão licenciador, um termo de referência que liste as diretrizes metodológicas a serem seguidas pelo empreendedor para elaboração dos estudos de impacto ambiental (EIA-RIMA) nos casos de licenciamento de parques eólicos em lagoas gaúchas. Tampouco existe dentro do Consema uma resolução regulando esse tipo de empreendimento em águas estaduais.
“Caso se opte pelo uso dessas lagoas, precisa ter diretrizes muito bem estabelecidas, para que cada empreendedor e empresa de consultoria ambiental não execute seus estudos da forma que bem entender”, disse, a ((o))eco.
Atualmente, os termos de referência usados pela FEPAM são para ambiente onshore (em terra). Os regramentos para ambiente offshore (em alto mar) tampouco contemplam as características da Lagoa dos Patos, que têm profundidade média de 3 metros.
“Estamos falando de um projeto que não é comum, mesmo internacionalmente, que é a instalação de eólicas em um corpo hídrico de baixo calado, com profundidade média muito baixa. Existem outros casos no mundo, mas aqui tem muitas particularidades”, acrescenta Israel Fick.
Para tentar suprir essa ausência de regramento, o próprio setor eólico tem tomado a dianteira. Desde o final de 2021, o Sindicato da Indústria de Energias Renováveis do RS (Sindienergia), junto com academia, outras entidades e órgãos públicos, tem se reunido em grupos de trabalho a fim de criar e propor as diretrizes para o licenciamento da lagoa.
Para Fick, ainda que o debate ampliado sobre a construção das diretrizes seja positivo, o fato de ele ocorrer com o processo de concessão já em curso pode significar uma pressão negativa sobre o corpo técnico da FEPAM.
Questionada sobre como se dará o licenciamento do parque eólico na Lagoa dos Patos, a SEMAS/RS disse que “A modalidade de licenciamento ambiental é definida pelo órgão licenciador competente dependendo da potência, da área e da sensibilidade do local, só podendo ser definida após o empreendedor entrar com pedido de Declaração de Termo de Referência. No RS os licenciamentos de eólica acontecem por EIA/RIMA e RAS, atendendo a regulamentações federal e estadual”.
Segundo a secretaria, ainda não há data para publicação do edital.
A Lagoa dos Patos, que apesar do nome é uma laguna, é a maior formação lagunar da América do Sul. Além de sua importância biológica e social, ela está circundada por importantes áreas protegidas, que servem de abrigo e rota de aves migratórias.
O Parque Nacional da Lagoa do Peixe, situado entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico, é listado pelo acordo internacional Ramsar como sítio relevante para conservação de aves limícolas. O parque também está incluído na Rede Hemisférica de Reservas para Aves Limícolas (WHSRN) e foi considerado como Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. No parque, estão catalogadas mais de 240 espécies de aves, sendo 35 migratórias.
Outra área de importância mundial próxima à região da Lagoa dos Patos é a Estação Ecológica do Taim, também incluída na lista de sítios Ramsar do Brasil. Nela, vivem 220 espécies de aves.
Toda região da Lagoa dos Patos e seu entorno é reconhecida pela importância biológica nas categorias alta e muito alta da Lista de Áreas Prioritárias do Ministério do Meio Ambiente, o que indica a necessidade de sua conservação e uso de baixo impacto, considerando populações tradicionais e povos originários.
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