Distribuídas em baldes, 5.050 tartarugas-da-Amazônia (Podocnemis expansa) foram soltas na areia para caminhar rumo ao rio Trombetas no terceiro sábado de janeiro (19), na Reserva Biológica do Rio Trombetas, em Oriximiná, Pará. A soltura encerra um ciclo de proteção aos quelônios da unidade e segue à risca o mandamento número um da conservação: só se conserva o que se conhece.
As crianças eram as mais animadas da festa. Algumas assustadas com a confusão dos filhotes de tartarugas que, agitados, corriam em direção aos pés dos pequenos ajudantes e não para o rio. Esse ritual de virá-las na areia e esperar que caminhassem de encontro às águas demorou cerca de 30 minutos e faz parte da celebração do projeto que cuida de três espécies de quelônios na região: a tartaruga-da Amazônia (Podocnemis expansa), o tracajá (Podocnemis unifilis) e a pitiú (Podocnemis sextuberculata). Dessas três, só a primeira está ameaçada.
Não que as 9 comunidades quilombolas que vivem dentro da Reserva Biológica do Rio Trombetas não saibam o que é uma tartaruga. O animal provavelmente está na dieta local desde os tempos em que os primeiros escravos fugiram das fazendas de cacau e fincaram raízes nessa parte da Amazônia. O que mudou ao longo do tempo foi o status de conservação desses quelônios. Antes tão abundantes, ao ponto dos cascos baterem nas canoas e barcos, como se estivessem em um jogo do Mario Bros, o declínio da espécie na região foi contínuo e hoje elas se encontram ameaçadas localmente de extinção.
A história das tartarugas-da-Amazônia do rio Trombetas é um conto sobre como as espécies são extintas. Todos os elementos estão ali reunidos. De alto valor comercial ‒ uma fêmea adulta chega a custar mil reais no mercado ilegal ‒, símbolo de status na culinária regional e apreciada pela população, passou de mais de 5 mil fêmeas desovando nas praias locais no final dos anos 70 para menos de 600 em 2018. Logo no lugar já considerado o de maior concentração de tartarugas-da-Amazônia do Brasil, o que motivou a criação da reserva biológica.
“Os quelônios são culturalmente apreciados na culinária local. Então, há essa pressão do consumo. Mas o que de fato impacta mais a população de quelônios é a comercialização ilegal e o tráfego de embarcações, não só dos navios de grande porte que trafegam na região de Porto Trombetas e que fazem o transporte de combustível e de bauxita, mas também o tráfego de embarcações para cima, os barcos que levam pessoas para as comunidades, porque na época da reprodução o rio fica muito baixo e os barcos passam muito próximos das praias. A iluminação nas praias afugenta os animais. Ao se aproximar uma embarcação, as tartarugas se afugentam e isso dificulta a reprodução delas”, explica Deborah Jane Lima de Castro, gestora da Reserva Biológica (Rebio) do Rio Trombetas.
Duas características fazem os quelônios do rio Trombetas vulneráveis: uma são os ovos, que ficam desprotegidos nas praias, prontos para serem coletados por quem tem o olho treinado para saber onde estão enterrados. A segunda é que é muito simples caçar tartarugas adultas. Basta esperar a época da reprodução, quando sobem o rio à procura das praias para desova, entre agosto e setembro. Bloquear as saídas com uma rede e coletá-las ainda nas praias, virando as tartarugas de cabeça para baixo. Uma vez com o casco para baixo, uma tartaruga adulta não consegue se virar sozinha e fugir.
“Usamos o mesmo procedimento na pesquisa, tomando cuidado para que a tartaruga não fique mais do que duas horas virada de costas, já que o peso exerce uma pressão sobre o pulmão e ela acaba morrendo sufocada após algumas horas virada”, explica a bióloga Virgínia Bernardes, do Instituto Ipê, que conduz o trabalho de capacitação do projeto de Monitoramento Participativo da Biodiversidade na Rebio do rio Trombetas.
O resultado é o gráfico abaixo: ao longo dos anos, menos tartarugas adultas subindo para depositar seus ovos, menos ninhos e, consequentemente, menos filhotes.
Para parte dos adultos humanos que cresceram tendo como base alimentar tartarugas e vendo milhares subirem todos os anos para depositar seus ovos, é muito difícil acreditar que elas possam simplesmente desaparecer. Esse ensinamento é mais fácil de ser transmitido para as crianças, que nasceram em um mundo sem tartarugas batendo o casco nos barcos e canoas.
“Só existe tartaruga onde há proteção. Se não tiver Ibama, ICMBio ou comunidade protegendo, ela se perde”, explica a bióloga Virgínia Bernardes, do IPÊ.
Essa proteção ‒ que envolve desde o monitoramento dos ninhos até a desova das ninhadas ‒, é o objetivo do projeto Quelônios do Rio Trombetas (PQT), que conta com famílias quilombolas voluntárias que se mudam para perto das praias a partir de agosto para acompanhar a desova das tartarugas, proteger as fêmeas, monitorar os ovos e posteriormente, se precisar, transportá-los para locais mais seguros, as chamadas chocadeiras.
Faz parte do trabalho registrar cada movimento: quando o ninho é encontrado, número de ovos, data de eclosão, número de filhotes nascidos vivos, número de filhotes mortos e de ovos não eclodidos.
Cada família ganha uma cesta básica completa por mês pelo trabalho voluntário de monitoramento dos quelônios, que dura cerca de 5 meses. A cesta é fornecida pela Mineração Rio do Norte (MRN), que explora uma mina de bauxita na Floresta Nacional Sacará-Taquera, unidade de conservação próxima que também está sob a gestão da mesma equipe do ICMBio que cuida da Rebio. O combustível mensal, ferramentas como lanterna, colete de identificação e as reuniões de capacitação dos voluntários e agentes ambientais são fornecidos pelo Instituto Ipê, que começou a participar do projeto em 2017.
Já as lonas, capas de chuva, baldes, fichas de monitoramento, sacos de lixo são fornecidas pela MRN e pelo ARPA (Programa Áreas Protegidas da Amazônia). O ARPA também financia as diárias dos policiais militares que reforçam a segurança das equipes de fiscalização no período de monitoramento das tartarugas. Sem as parcerias, o projeto não conseguiria mobilizar tantas pessoas e nem monitorar 11 praias.
Em 2018, 27 famílias participaram do PQT. Além dos voluntários, há a contratação de agentes ambientais, que trabalham auxiliando as duas bases do projeto: a de Tabuleiro e a de Santa Rosa. Em 2018, 23 agentes e 27 famílias participaram do PQT.
O monitoramento e a proteção dos quelônios na Reserva Biológica existe desde a criação da unidade, em 1979, ainda na gestão do antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF). Mas o envolvimento da comunidade só ocorreu em 2003.
De lá para cá, as famílias responsáveis pelo monitoramento dos ovos foram sendo treinadas para diminuir o número de perdas.
“Antes a gente colocava de qualquer jeito. Tentávamos colocar na mesma profundidade do animal, mas a gente não sabia direito. Aí o pessoal do projeto começou a trazer pessoal pra nos ensinar, ensinar como pegar o ovo, deixar ele do mesmo jeito que estava enterrado”, explica dona Dulcineide de Jesus Barbosa, moradora da comunidade Último Quilombo, no Lago Erepecu, dentro da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Dulcineide é uma das mais antigas voluntárias do projeto e hoje ensina a outros moradores a arte de conservar tartarugas.
Graças ao trabalho dessas famílias e dos agentes ambientais, ao todo, 27.862 tartarugas-da-Amazônia, 24.921 filhotes de tracajás e 3.102 filhotes de pitiús nasceram em 2018. Embora seja considerado um sucesso, o monitoramento não está livre de controvérsias.
“Tradicionalmente eles [os quilombolas] têm o costume de se alimentar com tartarugas. E mesmo com esses benefícios [da cesta básica], a gente recebe muita denúncia de que alguns dos predadores são voluntários. Eles colocam na tabeleta um número de ninhos abaixo do real, e fazem isso tanto para comer quanto para comercializar esses ovos”, explica Ribeiro, servidora da Coordenação de Proteção do Núcleo de Gestão Integrada (NGI) ICMBio Trombetas.
Como regra, a família de quem for pego predando ou vendendo tartaruga fica três anos sem poder participar do projeto.
Nas reuniões de monitoramento realizados ano passado, chamou atenção da equipe que em algumas famílias os ninhos sempre tinham um mesmo número de ovos, bem abaixo da média histórica.
“Vimos que tinha um, dois, três, quatro ninhos da mesma família com 10 ovos, um sinal claro de que eles recolheram para si”, diz Deborah Jane Lima de Castro, gestora da reserva. “Os números dos ninhos cuidados pelos agentes ambientais dão sempre mais filhotes que os ninhos dos voluntários”, explica.
Para Cristina Tófoli, coordenadora-geral do projeto de Monitoramento Participativo da Biodiversidade, do Ipê, uma das questões que pode dar fim a esse conflito seria pensar em possíveis cotas para que as famílias mantenham sua tradição alimentar, sem significar o fim do recurso.
“Só precisamos saber quanto se pode pegar. Ao descobrir isso, é totalmente possível estabelecer uma cota, como já ocorre com o manejo do pirarucu”, diz.
Essa dualidade entre conservação e uso dos recursos faz parte da história humana. Não há bandidos ou mocinhos nessa história. O que faltou, por muito tempo, foi envolver a comunidade nesse objetivo. Por 24 anos, proteger os quelônios foi objetivo dos servidores do IBDF/Ibama e do uso de mecanismos de comando e controle para reprimir o comércio ilegal e o uso tradicional. Não deu certo. Ano após ano, menos tartarugas apareciam para desovar.
Envolver a comunidade na conservação é a aposta do ICMBio e parceiros para a proteção de espécies ameaçadas. Os quilombos do rio Trombetas e do Lago Ereperu existiam antes da criação da unidade, mas só foram reconhecidos oficialmente em 2013. A sobreposição de dois grandes territórios quilombolas [Alto Trombetas e Alto Trombetas II] na área da Reserva Biológica do Rio Trombetas e da Floresta Nacional Sacará-Taquera impõe uma nova postura do órgão ambiental sobre a gestão do território, que já está sendo adotada. Proteger ou não os quelônios do rio Trombetas, mais do que uma missão do ICMBio, só florescerá com a aprovação dos moradores. Parte deles já concorda, e trabalha, para isso acontecer.
*Os repórteres viajaram a convite do Ipê.
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"Por 24 anos, proteger os quelônios foi objetivo dos servidores do IBDF/Ibama e do uso de mecanismos de comando e controle para reprimir o comércio ilegal e o uso tradicional. Não deu certo. Ano após ano, menos tartarugas apareciam para desovar." Achismo puro. Onde estão os dados numéricos para dizer isso???? Que tal a hipótese de que só há tartaruga da amazônia HOJE porque esses malvados do comando e controle, por mais de duas décadas, fiscalizaram? Mas não, é mais bonito esta teoria né. Ah, uma dica: ter um escravo no pátio de casa era um "uso tradicional", portanto essa lenga lenga de "tradições" absurdas precisa acabar. Chega de museu antropológico em plena era da internet e com a molecada querendo ir pra cidade passear no shopping center e ter um iphone – aliás, como qualquer urbano com condições faz.
Dados na própria matéria, que não sei se você se deu ao trabalho de ler "De alto valor comercial ‒ uma fêmea adulta chega a custar mil reais no mercado ilegal ‒, símbolo de status na culinária regional e apreciada pela população, passou de mais de 5 mil fêmeas desovando nas praias locais no final dos anos 70 para menos de 600 em 2018."
Fiscalizaram bem pra caramba né?
Bela matéria. Mas acho que talvez precise de uma correção quanto ao status de conservação dessas espécies. Creio que, ao contrário do que foi dito, apenas o tracajá e o pitiú estão em algum nível de ameaça nas listas da a IUCN e do livro vermelho.