Quase nove meses depois da decisão do Ibama de embargar as obras de duplicação de uma rodovia no Ceará que representava uma potencial e grave ameaça à sobrevivência de uma espécie de peixe, o superintendente regional do órgão ambiental deu sinal verde para a retomada do empreendimento. A obra, alertam pesquisadores, pode comprometer grande parte do já restrito habitat conhecido do peixe das nuvens ameaçado, chamado Hypsolebias longignatus, que ocorre apenas numa pequena localidade do estado cearense. A decisão interlocutória do superintendente, o advogado Luiz Cesar Barbosa, foi assinada no dia 6 de outubro e deve acelerar a tramitação em prol do desembargo.
As obras de duplicação da rodovia CE-257 (antiga CE-452), no município de Aquiraz, litoral cearense, já aterraram parte da lagoa temporária que era, à época, o único local conhecido habitado pelo H. longignatus. Os peixes das nuvens possuem um ciclo de vida curto e sazonal, associado às áreas úmidas temporárias que se formam na época das chuvas. Os ovos ficam enterrados para sobreviver à seca e eclodem apenas quando a lagoa ou poça enche. Invisíveis durante o período de estiagem em que as lagoas secam, a sobrevivência dos peixes das nuvens está intimamente ligada à das lagoas e poças temporárias, aterrá-las, portanto, é interromper o ciclo da vida deste grupo de peixes e, em última análise, extinguí-los.
As obras foram embargadas pelo Ibama em janeiro deste ano, após a denúncia de pesquisadores sobre o aterramento do habitat do longignatus, até então restrito a uma área de 0,4km² e o alerta da possível extinção da espécie mediante a continuidade das obras.
O processo de desembargo ainda está em tramitação e conforme apurado por ((o))eco, as obras seguem paralisadas, mas com o aval do superintendente, tudo indica que o caminho está aberto para retomada do aterramento em breve. Dois dias após Barbosa emitir a decisão interlocutória, a Divisão Técnico-Ambiental (DITEC) concluiu o processo administrativo e remeteu-o de volta à própria Superintendência Regional do Ibama no Ceará (Supes-CE), que pode concluir o processo.
((o))eco entrou em contato com a assessoria de imprensa do Ibama e a própria Supes-CE em busca de esclarecimento sobre o atual status do processo e se, junto ao eventual desembargo, serão exigidas contrapartidas adicionais para mitigar possíveis impactos da duplicação da rodovia na sobrevivência do H. longignatus. Infelizmente, a reportagem não obteve nenhum retorno até o fechamento do texto.
Barbosa, que assumiu a chefia da Superintendência Regional do Ibama no Ceará em maio deste ano, é ex-coordenador jurídico do Partido Social Liberal, o PSL, antiga sigla do presidente Jair Bolsonaro. O advogado foi nomeado após uma sequência de indicações do deputado federal Heitor Freire (PSL-CE) nos últimos dois anos, que foi sucedida por um hiato de quatro meses no qual a Supes ficou sem chefe nomeado.
A decisão do superintendente se baseia no relatório de levantamento de ictiofauna (fauna de peixes) encomendado pela Superintendência de Obras Públicas (SOP) do Estado do Ceará, a responsável pelas obras de duplicação da rodovia, após o embargo, para averiguar a possível extensão do habitat do H. longignatus. O estudo foi elaborado entre fevereiro e maio deste ano.
O levantamento fez coletas nas Área Diretamente Afetada e Área de Influência Direta do empreendimento em análise, em um raio de 1.500m do ponto de ocorrência da mesma na coordenada (3°53’51″S e 38°24’13″W), bem como em áreas de provável ocorrência fora do raio determinado. O estudo verificou a presença do peixe das nuvens em 49 dos 63 pontos amostrais, inclusive em pontos fora do perímetro de 1.500 metros onde foram concentradas as coletas, “o que pode garantir a sobrevivência, mesmo suprimindo os locais de provável desova próximos da estrada a ser duplicada, desde que seja providenciado um contínuo monitoramento do mesmo”, aponta o estudo.
O biólogo Telton Ramos, que integra o time de pesquisadores do Plano de Ação Nacional para a Conservação (PAN) dos Peixes Rivulídeos, ou peixes das nuvens, discorda da avaliação do relatório. “O estudo diz que coletou a espécie e 49 pontos de amostragem numa área de 1.500 metros, então que a espécie ocorre em vários outros pontos além daqueles impactados pela obra, mas 1.500 metros é uma área muito pequena para distribuição de uma espécie. E você ainda assim vai permitir que mais 100 ou 200 metros dessa área sejam destruídos? Assim você está restringindo ainda mais a área dessa espécie e a sua população”, ressalta Telton.
“O ideal seria um estudo mais amplo, que avaliasse a bacia [do rio Pacoti] toda, para ver se a espécie ocorre em extensão acima de 20, 15 quilômetros, mas um estudo de 1.500 metros não é nada. Qualquer grande impacto destrói a espécie, então não faz sentido essa obra ser aprovada do jeito que está”, continua o biólogo.
Telton destaca ainda que no levantamento, no ponto em que a espécie foi descoberta pela primeira vez, na lagoa temporária já parcialmente aterrada pela duplicação da rodovia, não foram encontrados exemplares do H. longignatus.
“O próprio relatório mostra a espécie presente ao redor deste local, onde está sendo a duplicação, mas no local mesmo, não ocorre. Se ela não foi encontrada nesse local onde ela foi registrada pela primeira vez, possivelmente é porque o aterro que fizeram lá aterrou os ovos dessa espécie e eles não eclodiram. Então ao invés do Ibama liberar essa obra, deveriam multar o empreendimento por destruir o ambiente de uma espécie ameaçada”.
O relatório de ictiofauna foi avaliado por um analista do Ibama, em julho, que emitiu um documento (Informação Nº 19/2021/NUFIS-CE/DITEC-CE/SUPES-CE-IBAMA) no qual indica “a possibilidade de se conciliar a continuidade da obra com a existência de criadouros naturais da espécie”, sem citar o monitoramento sugerido pelo relatório, e ressalta que o licenciamento da obra em questão é de competência estadual, portanto recomenda o encaminhamento do processo para a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) do Ceará, “com vistas a manifestação quanto à possibilidade de continuidade da obra ou necessidade de complementação do processo de licenciamento ambiental”.
De acordo com a tramitação processual disponível para consulta no site do Ibama, o processo ainda não foi remetido à Semace.
“A gente vai tentar lutar de tudo que é jeito para que esse empreendimento continue embargado ou que no mínimo se faça um estudo mais amplo. Do jeito que está, aprovando todos esses empreendimentos ali, a espécie não vai ter mais local e vai ser extinta”, destaca Telton.
Habitat pressionado
O levantamento realizado no primeiro semestre deste ano amplia a abrangência do habitat do H. longignatus, mas também faz ressalvas sobre ameaças à espécie no território, como a “existência de diversas áreas de extração de argila ao longo do baixo rio Pacoti, o que pode estar afetando a sobrevivência do H. longignatus, já que seus locais de desovas, podem estar sendo afetados, com essas escavações e construções de canais”; o aporte do peixe-beta (Betta splendens), nas áreas de desova do peixe das nuvens, já que o beta é um competidor natural do H, longignatus; e a existência da espécie invasora unha-do-diabo (Cryptostegia madagascariensis) que vem matando o carnaubal (Copernicia prunifera), em cujo ambiente pode existir o peixe, dificultando sua sobrevivência.
“É de fundamental importância, que seja feito, um monitoramento da ictiofauna, por pelo menos cinco anos, a fim de garantir, a real preservação e conhecimento, das populações de Rivulídeos existentes na região, verificando, não apenas a bacia do rio Pacoti, como também em outros corpos d’água da região”, alerta o estudo.
O peixe das nuvens cearense, Hypsolebias longignatus, é considerado como Vulnerável à extinção no Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção, volume 6 — Peixes (ICMBio, 2018), devido principalmente ao seu habitat restrito. Até o começo deste ano, quando as obras de duplicação da rodovia foram embargadas pelo Ibama, o único local onde a espécie era conhecida era uma pequena lagoa temporária de apenas 0,4km² próxima à Área de Proteção Ambiental (APA) do Rio Pacoti, no município de Aquiraz, no litoral do Ceará.
Telton lembra que no Livro Vermelho, o ICMBio orienta a demarcação de uma unidade de conservação no local, que garanta a proteção da H. longignatus. Outra solução seria a ampliação da área protegida vizinha, a APA do Rio Pacoti, sugere o biólogo, para abranger o ambiente de ocorrência do peixe das nuvens e garantir algum nível de proteção ao seu habitat.
“Provavelmente essa região toda, nesse perímetro de 1.500 metros, era uma lagoa, só que foi sendo degradada, aterrada e dividida em várias outras lagoas e poças pequenas. E é uma região que está sendo bastante explorada, como diz o próprio relatório, existem vários tipos de empreendimento, estradas, retirada de argila, olarias… A medida em que esses empreendimentos vão sendo aprovados e licenciados na região, vão diminuindo as áreas e populações dessa espécie e obviamente ela vai acabar sendo extinta, porque não vai ter espaço para ela mais”, sentencia o biólogo.
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