Restaurar a Mata Atlântica numa terra indígena pode facilitar a movimentação de grandes animais no noroeste gaúcho. Disputa pela área aguarda uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto a Força Nacional de Segurança Pública tenta acalmar os ânimos regionais.
Homologados em abril do ano passado, os 711 ha da Terra Indígena Rio dos Índios abrigam cerca de 230 kaingang. Cada ha equivale a cerca de um campo de futebol. Hoje marcados pela agropecuária, de 350 ha a 550 ha do total podem ser recuperados.
Quem avalia é Alexandre Krob, coordenador Técnico e de Políticas Públicas do Instituto Curicaca. A ong atua com os indígenas resgatando a vegetação nativa, inclusive para formar um corredor que ajudará espécies como onça-pintada, queixada e veados. “É uma oportunidade de ouro”, resume.
Essa “estrada verde” facilitaria o deslocamento desses ameaçados animais entre os maiores maciços conservados naquela porção do estado, as terras indígenas Nonoai Rio da Várzea e Guarita, os parques estaduais florestais de Nonoai e do Turvo, e margens vegetadas do Rio Uruguai.
Já rodando, a restauração acontece com mutirões e privilegia plantas usadas no artesanato e alimentação kaingang, incluindo a erva-mate e a araucária. O cacique Saci, ou Luís Salvador, afirma que o trabalho irá manter fontes de água, biodiversidade e a cultura daquele povo.
“O extermínio da floresta e do pinhão [semente da araucária] bateram forte na região, mas no território [Rio dos Índios] ainda terá muita vida. Nossos filhos e netos e toda a sociedade colherão os frutos da restauração da Mata Atlântica”, projeta.
Balanço de terras
Uma das seis terras indígenas homologadas pelo governo federal desde o início de 2023, a TI Rio dos Índios é palco de disputas e pressões políticas. Até agora, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) indenizou e desapropriou cerca de 100 ha (14%) dos 711 ha da área protegida.
Proprietários legítimos ou de boa-fé que forem pagos pelas benfeitorias devem deixar o local em até 30 dias, diz a autarquia federal. Já quem ocupou as terras com violência, causou destruição ambiental ou o fez após a destinação aos kaingang, pode não receber nenhum tostão.
“Se indenizarem apenas as benfeitorias, os produtores irão plantar onde?”, questiona o prefeito de Vicente Dutra, Tomaz Rossato (MDB).
A Funai não atendeu nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem, mas em notícia do Ministério dos Povos Indígenas diz que a saída de “não indígenas” mitigará “conflitos fundiários” e irá reparar “injustiças, violências e esbulho perpetrados historicamente”.
A autarquia também afirma que a Rio dos Índios foi homologada após “extenso e criterioso processo” de “identificação e delimitação, respeitado o direito ao contraditório”.
Já o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Vicente Dutra, Marcelo Soares, diz que a Funai avançou na regularização fundiária da terra indígena mesmo após uma liminar da Justiça Federal ter congelado as desapropriações. “Foi um ato ilegal essa retirada de moradores”, acredita.
A liminar concedida em outubro passado pela juíza Maria Pezzi Klein, da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, atendeu uma ação de agricultores e da Associação dos Amigos das Águas do Prado. O caso aguarda julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Uma batida de martelo que pode acabar com uma disputa de ao menos duas décadas entre indígenas, agricultores e microempresários por aquelas terras, em Vicente Dutra. O município é capital estadual da cuia de chimarrão, bebida típica gaúcha.
Para Soares (Sindicato dos Produtores Rurais), 711 ha serão “perdidos” com a Rio dos Índios e até o turismo será afetado, como num parque de águas termais agora na terra indígena. “Que fiquem na área deles e não tirem terras de quem está trabalhando, produzindo e pagando impostos”, diz.
Já o prefeito Tomaz Rossato diz que a área da TI a “vida toda” foi de produção rural, como soja, milho, trigo, feijão e mandioca para sustento familiar, e que os índios apenas acampavam, por exemplo para vender artesanato, na área hoje homologada.
“Se for respeitar o marco temporal, temos boa expectativa para solução do problema, mas se não tiver volta teremos que cumprir, mesmo contra a vontade”, diz o administrador.
Em avaliação no STF, a tese do marco temporal só permitiria a demarcação de terras ocupadas por indígenas até 1988. Naquele ano foi proclamada a nova Constituição Federal, determinando a devolução gradual das terras a povos indígenas que foram removidos à força de suas moradas.
Alta temperatura
Os kaingang hoje pleiteando a TI Rio dos Índios ocupavam até então cerca de 8 ha em Vicente Dutra. Daí a expectativa da etnia de que a homologação dos 711 ha seja validada pela Corte Suprema. O impasse mantêm os ânimos regionais acirrados.
Em novembro passado, casas e galpões de famílias agricultoras na terra indígena foram incendiadas. À época, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) afirmou que os crimes foram uma retaliação a famílias que estariam negociando indenizações com a Funai.
A TI Rio dos Índios é listada no relatório de 2022 sobre Violência contra Povos Indígenas no Brasil, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A temperatura subiu ainda mais quando a Prefeitura de Vicente Dutra pagou R$ 200 mil a um advogado e a um antropólogo para questionar a homologação, diz o jornal Sul21. “Estamos fazendo de tudo para que isso não aconteça”, ressalta Soares (Sindicato dos Produtores Rurais) a ((o))eco.
A ameaça de conflitos fez o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, enviar a Força Nacional à região, ao menos até o fim de outubro, para garantir a segurança de todas as pessoas e apoiar servidores federais e estaduais na demarcação das terras.
“É a própria Funai e essas ongs que fazem a cabeça dos coitados [indígenas], mas conseguimos levar ‘meio conversado’ [com os produtores rurais]. Até então está tudo na paz”, pondera o prefeito Tomaz Rossato.
Conforme o cacique Saci, a área terra indígena também é alvo de “políticos falsos” levando violência, álcool e drogas tentando minar a resistência dos kaingang em permanecer na área homologada. “Mas, sem território não há vida, não há cultura”, ressalta a liderança.
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