Reportagens

Trabalho análogo à escravidão na pecuária do Pará chega a 31% nos últimos dois anos, revela pesquisa

Prevalência de trabalho forçado e tráfico de mão de obra identificada em todos os principais indicadores por estudo que ouviu 1.241 trabalhadores em Marabá, Ulianópolis e Itupiranga

Elizabeth Oliveira ·
9 de dezembro de 2024

Com o segundo maior rebanho bovino do Brasil, perdendo somente para o Mato Grosso, o Pará teve 31,82% de um universo de 1.241 trabalhadores entrevistados em Marabá, Ulianópolis e Itupiranga vitimados por experiências de trabalho em condições análogas à escravidão, nos últimos dois anos, na pecuária. Liderada pela Fundação Pan-Americana para o Desenvolvimento (PADF, na sigla em inglês),  a pesquisa Combate à escravidão moderna no Brasil: estimativa de prevalência e perfil de vulnerabilidade do trabalho forçado e análogo ao de escravo na pecuária no Pará, Brasil, foi divulgada na quinta-feira (5). 

O estudo, que levou três anos para ser desenvolvido, revelou outras estatísticas preocupantes envolvendo a prevalência de trabalho forçado e tráfico de pessoas, nos últimos dois anos, na pecuária paraense. Do total de entrevistados (25% representados por mulheres), 27,53% enfrentaram recrutamento injusto, retenção de salários e restrições de movimento, enquanto 17,71% passaram por abuso sexual, servidão por dívida e violações da autonomia corporal.

A escolha do Pará para a realização da pesquisa não se deu por acaso. Ainda que não seja o número um em rebanho bovino, o estado tem em São Félix do Xingu, localizado na região oeste, o município com a maior quantidade de cabeças de gado do país (2,5 milhões). Além disso, o Pará lidera a quantidade de trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão desde 1995, segundo o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, com base em estatísticas de órgãos como o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) sistematizadas até 2023. No período, São Félix do Xingu ficou em terceiro lugar na prevalência de resgates (1.166), sendo o município com maior quantidade de inspeções realizadas (97).

A pesquisa identificou um perfil de alta vulnerabilidade social dos entrevistados. “São trabalhadores braçais que atuam nas fazendas, derrubam árvores, fazem serviços domésticos, entre outras funções que não exigem qualificação técnica. Eles recebem muito pouco para uma jornada de nove horas diárias, seis dias por semana e, às vezes, muito mais do que isso”, afirma Irina Bacci, diretora técnica da PADF, em entrevista ao ((o))eco. Segundo o levantamento, a média salarial é de 1.246 reais (cerca de 250 dólares), abaixo do salário mínimo em vigor. Em relação à seguridade social, ela observa que “esses são trabalhadores invisíveis”.

Além disso, eles atuam em condições insalubres, com a maior parte da jornada envolvendo exposição ao sol e às altas temperaturas, sem receberem dos patrões qualquer tipo de equipamento de proteção. Como identificado na pesquisa, até o acesso à água é dificultado em parte dos casos relatados. Por isso, foi lançado um alerta na pesquisa de que em cenários de agravamento das mudanças climáticas, “longas jornadas e acesso limitado à água potável aumentam o risco de estresse térmico, desidratação e insuficiência renal”. “Há necessidade de se olhar para as condições de trabalho rurais e urbanas. Elas são muito diferentes”, observa Bacci sobre as necessidades diferenciadas e mais complexas dos trabalhadores rurais brasileiros, sobretudo, na Amazônia.

Desigualdade histórica perpetuada

Como 89% declararam ser pretos ou pardos, a diretora enfatizou que o processo histórico de escravidão enfrentado no Brasil segue provocando desdobramentos em termos de exclusão social dessa parcela da sociedade, a julgar pelos resultados da pesquisa. Dentre as questões críticas no cotidiano dos entrevistados ela exemplifica a realidade dos acidentes de trabalho que deixam de ser registrados, uma vez que, na maioria dos casos, os trabalhadores não são atendidos em serviços de saúde, o que levaria, consequentemente, à notificação do Ministério Público do Trabalho para a tomada de medidas cabíveis. E explica que, mesmo não havendo um contrato formal de trabalho, deve haver atendimento e relato. Do contrário, o caso fica subnotificado, como tem acontecido rotineiramente. 

Como outro exemplo de exclusão social intergeracional, é ressaltada a questão do trabalho infantil que nem era objetivo fim do estudo, mas foi identificada no contexto desse levantamento. Segundo relatos dos entrevistados, 54% começaram a trabalhar na pecuária entre os 10 e os 17 anos, enquanto 12% ingressaram nesse segmento antes dos 10 anos e 12% disseram ver crianças trabalhando em sua fazenda atual.

Como parte dos desdobramentos dos resultados da pesquisa a organização vem dialogando com representações de diferentes segmentos sociais, dentre os quais, o setor privado que tem grande importância no processo de aprimoramento para evitar situações como as identificadas na pesquisa. 

Nesse contexto, Bacci exemplifica que conversas já foram realizadas com o setor financeiro. E ressalta que nas primeiras oportunidades de diálogo percebeu preocupações gerais sobre como seria possível melhorar as condições de conformidade para fortalecer o atendimento às regras e regulamentos em vigor, questões que serão objeto de ações da próxima etapa do projeto. Da mesma forma, destaca o papel do Ministério Público do Trabalho à frente de inúmeras ações sobre o tema e a necessidade de desenvolver ações em parceria com esse e outros órgãos públicos e instituições privadas. 

Com intuito de melhorar os mecanismos institucionais para reduzir a incidência de trabalho análogo à escravidão na cadeia da pecuária, concentrando-se em atividades de prevenção, proteção e prossecução em sete municípios importantes no sudeste do estado do Pará, a PADF desenvolve inúmeras ações para o enfrentamento do problema por meio do projeto Trabalho Justo

Questões de saúde relatadas na pesquisa

  • 35%  adquiriram uma doença grave enquanto trabalhavam na pecuária.
  •  Dentre esses, 90% relataram ter interrompido o trabalho devido à doença, com

             uma média de 53 dias afastados.

  • 38% se machucaram gravemente. 
  • Dentre esses, 30% não buscaram atendimento de saúde.
  • 51% foram afetados pela malária e 25% pela dengue.
  • Os perigos mais frequentemente foram lidar com gado e pastagem (72%), derrubar árvores (32%) e manusear veneno ou enfrentar animais peçonhentos (23%).
  • 58% relataram fornecer seu próprio EPI (Equipamento de proteção).
  • Nos grupos focais, os trabalhadores confirmaram que os empregadores não forneciam nenhum tipo de EPI.

Serviços de proteção desejados

  • 82,84%, assistência médica profissional. 
  • 73,01%, atendimento odontológico.  
  • 59,47%, abrigo/moradia e auxílio sustento. 
  • 56,24%, habilidades para a vida/treinamento profissional
  • 51,17%, assistência jurídica.

Síntese das recomendações da pesquisa

Conhecimento e ações dos empregadores

Instituições governamentais e comunitárias podem educar proprietários de fazendas de gado sobre a legislação trabalhista brasileira. 

Informações sobre direitos

Atividades acessíveis para conscientizar os trabalhadores da pecuária sobre seus direitos e estratégias coletivas para afirmar esses direitos.

Assistência jurídica gratuita 

Ainda que tenha sido considerada prioridade, poucos trabalhadores relataram estar em contato com os serviços jurídicos.

Segurança e saúde ocupacional

O Brasil possui padrões rigorosos de saúde, segurança e meio ambiente ocupacional

que devem ser ampliados nas fazendas de gado do Pará.

Cadeia produtiva

Inspeções regulares de trabalho, saúde e segurança, além de certificações de condições éticas, devem ser requisitos obrigatórios para proprietários de fazendas que buscam licenças de exportação ou acesso à cadeia de suprimentos no mercado interno.

Comissão Pastoral da Terra tem campanha contra trabalho escravo

Brígida Rocha, agente pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e integrante da equipe dinâmica da campanha De Olho Aberto para não Virar Escravo, afirma que esse tipo de exploração e de violação de direitos humanos desafia a sociedade brasileira, onde 66 mil trabalhadores já foram encontrados em condições análogas à escravidão entre 1995 e 2023, segundo dados sistematizados pela CPT. 

Com atuação no Maranhão, ela ressalta que apesar de todos os esforços empreendidos, no sentido de enfrentamento do problema, esse estado tem sido identificado como provedor de mão de obra explorada para a Amazônia e outras regiões. No caso da pesquisa da PADF não foi diferente. Os dados revelaram que 66,16% dos trabalhadores eram migrantes internos, sendo a maioria oriunda do Maranhão.

“A gente atua junto às comunidades, aos movimentos sociais e ao poder público no sentido de alertar para a gravidade do problema e cobrar soluções”, observa a agente. Ela explica que,  muito do que tem sido desvendado em termos de trabalho escravo nas fazendas da Amazônia e de outras regiões brasileiras,  tem sido fruto de denúncias que chegam à CPT. Esses desfechos são resultados de articulações, diálogos e ações pedagógicas. Tudo isso para que os trabalhadores e suas famílias tenham mais entendimento das dinâmicas dos aliciadores e suas consequências em processos de recrutamento envolvendo engano que só vem a ser descoberto no destino final dos contratados, quando, muitas vezes, as condições de saída da situação são muito mais difíceis.  

“Foram mais de 1.600 denúncias em 27 anos de campanha”, celebra a agente. Ela diz que essas denúncias fortalecem a confirmação da existência de trabalho escravo no Brasil. “São as dinâmicas de atuação dos aliciadores que mudam”, observa.  Buscar compreender essas mudanças para saber melhor como enfrentá-las é parte fundamental do trabalho pedagógico desenvolvido. 

Dados da CPT indicam que, nos últimos dez anos, mais de 34,5% das vítimas de trabalho escravo não completaram o 5º ano e a faixa etária mais afetada é a de jovens homens de 18 a 24 anos. Quando o perfil é racial, os dados da Comissão revelam que 65,3% se autodeclaram pardos, seguidos por pretos (16,8%), brancos (16%), indígenas (1,4%) e amarelos (0,4%), entre 2016 e 2023.

De acordo com o relatório anual Conflitos no Campo Brasil 2023, lançado em abril deste ano, cerca de 2,7 mil trabalhadores foram resgatados em fiscalizações do governo federal no campo. Esse foi considerado o maior número de resgatados dos últimos dez anos, em diferentes tipos de negócios, dentre os quais, cafeicultura, vinícolas, pecuária, lavouras de cana-de-açúcar, construção e indústria têxtil. 

Com base na Plataforma SmartLab, iniciativa do MPT e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre 1995 e 2023, aproximadamente 63,5 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão foram encontrados. Os setores mais envolvidos, no período, incluíram a criação de bovinos (27,9%), o cultivo de cana-de-açúcar (13,7%), a produção florestal (7,34%), o cultivo de café (5,91%), a fabricação de álcool (4,21%) e a construção civil (4,04%).

“Nos fazemos presentes em várias comunidades, para onde levamos materiais de campanha e refletimos com eles sobre modos de produção e consumo da sociedade atual, além de vulnerabilidades envolvidas que impulsionam, entre outros processos, a própria migração de trabalhadores que têm sua mão de obra explorada em estados da Amazônia e em outras regiões”, afirma Brígida Rocha. Ela acrescenta que migrar é um direito, mas que o trabalho dos agentes tem enfoque em fortalecer as informações de alerta e identificar casos de aliciamento de jovens, homens e mulheres. Quando isso acontece, redes de apoio, fiscalização e acolhimento são acionadas em todo o país.

Ao assinar acordo entre Mercosul e UE presidente Lula defende sustentabilidade na agropecuária 

Em discurso durante a solenidade de assinatura do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, após 25 anos de impasses nas negociações, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou, na sexta-feira (6), a importância de ter assegurado nesse pacto, temas relevantes envolvendo as questões ambientais e as negociações climáticas no âmbito da Convenção do Clima. “Após dois anos de intensas tratativas, temos hoje um texto moderno e equilibrado, que reconhece as credenciais ambientais do Mercosul e reforça nosso compromisso com o Acordo de Paris”.

Ele também trouxe à baila, uma resposta à questão que rendeu recentes polêmicas envolvendo as condições fitossanitárias da carne brasileira, por uma grande rede varejista francesa. “Não aceitaremos que tentem difamar a reconhecida qualidade e segurança dos nossos produtos”. “Nossa pujança agrícola e pecuária nos torna garantes da segurança alimentar de vários países do mundo, atendendo a rigorosos padrões sanitários e ambientais”.

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante Cúpula de Presidentes dos Estados Partes do MERCOSUL e dos Estados Associados – Montevidéu, Uruguai. Foto: Ricardo Stuckert / PR

Ainda que resultados como os da pesquisa apresentada nesta reportagem desafiem o setor e a sociedade brasileira, em geral, para Lula, o Mercosul “é um exemplo de que é possível conciliar desenvolvimento econômico com responsabilidade ambiental”. E reiterou um compromisso nesse sentido com uma iniciativa a ser lançada, chamada de “Mercosul Verde”. “O Brasil vai propor o lançamento de um programa de cooperação para a agricultura de baixo carbono e promoção de exportações agrícolas sustentáveis”, destacou sobre essa proposta futura. 

Sobre a crise climática, ele mencionou problemas já visíveis no continente sul-americano. Alertou, ainda, que “alterações nos padrões de precipitação afetam a produção agrícola, os recursos hídricos e a biodiversidade em todos os biomas”. Além disso, ressaltou que “os impasses verificados na COP 16 da Biodiversidade, em Cali, e as dificuldades de se chegar a um texto de consenso na COP 29 do Clima, em Baku, acendem um alerta”.

  • Elizabeth Oliveira

    Jornalista e pesquisadora especializada em temas socioambientais, com grande interesse na relação entre sociedade e natureza.

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