Reportagens

UFMG mede prejuízos em pesquisas após realização de corrida da Stock Car

Prova obrigou o fechamento do Hospital Veterinário, e o ruído dos carros causou estresse e até a morte de animais utilizados em pesquisas da UFMG

Gabriel Tussini ·
22 de agosto de 2024

A realização da etapa Belo Horizonte do campeonato automobilístico Stock Car Pro Series, com eventos indo da última quinta-feira (15) até a corrida principal, no domingo (18), causou grandes transtornos à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e seu entorno. Após meses de protestos, alertas e tentativas de suspensão da corrida – sem sucesso –, o resultado foi o previsto: animais mortos, pesquisas científicas e atendimento hospitalar prejudicados, além de transtornos à população. A UFMG, agora, contabiliza os prejuízos.

Em nota, a universidade confirmou que pesquisas foram inviabilizadas, e afirmou que “jamais recebeu dos organizadores uma proposta formal de mitigação dos ruídos exigida pela justiça”, sendo obrigada a realizar essa mitigação, com todos os custos envolvidos, por conta própria. Medidas como a blindagem de portas do Biotério Central (onde são criados ratos de laboratório essenciais a pesquisas e muito sensíveis ao barulho), a contratação de profissionais para monitoramento de animais da Estação Ecológica da universidade e a realocação de animais que estavam no Hospital Veterinário custaram cerca de R$ 1 milhão – recurso tirado do orçamento de manutenção, segundo a reitora Sandra Regina Goulart.

“A UFMG teve pouco tempo, sem nenhum apoio desses bilionários, para gastar quase R$ 1 milhão, de forma desesperada, fazendo licitações e coisas que não podem sair da regra, num desespero gigante para conseguir proteger os animais”, lembrou o professor Bruno Rezende de Souza, do departamento de Fisiologia e Biofísica da UFMG. “E a gente conseguiu fazer. Só que se você perguntar para mim, obviamente não está perfeito. A gente poderia ter feito [melhor] se tivesse dado tempo, se esses bilionários tivessem pensado ‘ah, vamos ajudar, vamos dar uma contrapartida’”, afirmou.

Um estudo da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG), anexado ao contrato assinado entre as organizadoras da Stock Car e a prefeitura de Belo Horizonte, estima investimentos de mais R$ 163 milhões na preparação para o evento, e arrecadação de até R$ 27,7 milhões em gastos do público, num total de R$ 191 milhões em impacto.

E enquanto a UFMG contabiliza os prejuízos, a organização da corrida, por outro lado, comemora. Sérgio Sette Câmara, CEO da Speed Seven Participações, uma das organizadoras da etapa de Belo Horizonte da Stock Car (ao lado da empresa DM Corporate), chegou a provocar a cúpula da UFMG e aqueles que tentaram suspender a prova, em entrevista à Itatiaia.

“Esse pessoal, que pensa pequeno, um tchau para eles. Eles perderam, nós tratoramos esse pessoal. Teve uma outra turma aí que infelizmente entrou na onda, tentou entrar com 1.001 recursos e perderam todos. A cidade de Belo Horizonte não aceita mais esse tipo de gentalha, essas pessoas que são pequenas, provincianas, que não querem deixar nossa cidade crescer. Esse pessoal tem que ir embora daqui, vão morar em outra cidade e encher o saco em outro canto”, disparou Sette Câmara.

BH Stock CAR em Belo Horizonte, no entorno do Minerão, no domingo (18/08). Foto: Dinho Santos/UAI Foto/Folhapress.

A extensão dos danos causados às pesquisas desenvolvidas na universidade ainda não é totalmente conhecida. O professor Bruno Rezende de Souza conta que análises bioquímicas e estatísticas dos efeitos sobre os animais dos biotérios e laboratórios ainda serão realizadas, incluindo estudos comparativos entre o número de mortes de animais nos dias de corrida em relação ao número de mortes em condições normais, com um mesmo intervalo de tempo.

“O que eu posso falar é que, aparentemente, a gente teve um aumento no número de mortes de animais, e tivemos alguns casos, até mesmo no laboratório em frente ao meu, em que de 9 fêmeas que estavam grávidas, 8 deram à luz animais prematuros. Faz parte, porque traumas, sustos, geralmente aceleram o parto. Mas não dá pra eu falar que essa é a causalidade, a gente precisa comparar. Na ciência tem que ter um grupo controle, e o grupo controle é pré-Stock Car”, frisou o professor.

Como mostramos em março, o barulho produzido pelos carros (que chegam a emitir 110 dB, equivalente a uma turbina de avião) pode causar graves consequências aos animais e às pesquisas em curso na universidade, incluindo alterações de parâmetros bioquímicos que inviabilizariam populações inteiras de ratos de laboratório, por exemplo, e até a morte de espécimes por estresse. Segundo Marla Calazans, doutoranda em Fisiologia e Farmacologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG – que é vizinho do circuito –, a sua e diversas outras pós-graduações do instituto chegaram a orientar a suspensão de pesquisas.

“O barulho dos carros alcança até o último bloco do ICB”, disse Calazans. Ela trabalha em um laboratório no bloco B, o mais distante da pista, e relatou que, durante os treinos da última sexta-feira (16), o barulho era claramente ouvido – mesmo com “todas as paredes de todos os blocos que servem de barreira acústica”. “O ICB tem vários laboratórios em todos os blocos, várias linhas de pesquisa, e muitas delas utilizam animais. Naqueles laboratórios que estão mais próximos da pista de corrida, esses animais com certeza estão num nível de estresse absurdo, a ponto de alterar completamente a resposta, alterar parâmetros fisiológicos”, frisou.

O professor Bruno Rezende explica que o estresse crônico, consequência possível dos dias de altos ruídos aos quais os animais estiveram sujeitos, causa uma série de problemas, como a interrupção da produção normal de hormônios e o excesso na produção de cortisol, por exemplo. “O excesso de estresse leva à morte de neurônios no hipocampo, que é muito sensível ao cortisol. Quando o cortisol fica muito alto por muito tempo ele acaba matando neurônios no hipocampo, e isso está envolvido com depressão. A gente sabe que isso tudo está envolvido com estresse crônico em humanos. Como a ciência fez para descobrir isso tudo? Através de modelos animais”, explicou.

“Então se a gente sabe isso tudo que eu falei através de experimentações e pesquisas com animais, a minha próxima pergunta é: isso não vai acontecer com os animais? Então todos os nossos animais correram o risco de ter tudo isso que eu falei e atrapalhar todas as pesquisas que a gente faz. Porque se esses animais tiverem estresse crônico por causa de uma corrida, a gente só vai descobrir isso em meses de pesquisa, porque vamos ter que comparar os resultados de agora com os resultados do passado”, elaborou o professor.

Depois da corrida, a doutoranda Marla Calazans relatou os problemas causados à sua e outras pesquisas realizadas em seu bloco. “Eu estava monitorando animais para um experimento futuro, e nesse monitoramento eu percebi alteração de comportamento deles. Então vai interromper. Não prejudicou um experimento em andamento, mas vai adiar, interromper temporariamente o meu e de todo mundo que trabalha comigo por pelo menos uns 2 meses”, estimou. Segundo ela, outros pesquisadores do mesmo programa de pós-graduação tiveram experimentos em andamento inviabilizados.

“No meu caso”, narra Rezende, “minha pesquisa estuda estresse na infância e como isso afeta o desenvolvimento do cérebro. Os animais que estão lá, sejam as mães, os filhotes ou outros animais que estavam ali no biotério, sofrendo o estresse de uma corrida, com esses sustos – porque o animal não tem a menor ideia do que é esse barulho –, isso vai atrapalhar o desenvolvimento do cérebro, que vai atrapalhar a minha pesquisa, já que eu investigo isso”, disse.

Rato wistar, variedade utilizada em pesquisas, em laboratório da UFMG. Foto: Divulgação/Escola de Veterinária da UFMG.

“Se você estressou o animal agora, jovem, com 3 semanas, nem entrou na adolescência, você alterou o comportamento desse animal em questão de ansiedade, depressão, essas coisas. Aí esse animal vai crescer, e quando ele tiver com 8 semanas, mais ou menos, esse animal pode ter – e é uma coisa que o estresse na infância causa – alteração no cuidado parental. Olha só o que essa Stock Car pode ter feito. Aí atrapalha o estresse agora, num animal que estava com poucas semanas de idade, tem alteração por causa do estresse. Quando ela tiver 8 semanas ela vai ter o filhote dela. E aí quando tiver o filhote ela vai ter alteração do cuidado parental, ela vai cuidar do animal de forma diferente, o que vai afetar no crescimento, no desenvolvimento do próximo filhote”, apontou. 

“Ou seja, o neto desta geração que sofreu com a Stock Car pode também ter um pequeno efeito. Só que ele vai diminuindo aos poucos. E aí depois, lá na frente, limpa. Mas agora não”, lamentou o professor. “Ou seja, se para chegar na vida adulta demoram dois meses, a gente ainda vai ter que esperar mais ou menos 6 a 8 meses para observar a redução dos efeitos do estresse que a Stock Car fez nos animais agora. Isso significa que a Stock Car atrapalhou pelo menos 6 meses, se a gente não conseguiu reduzir todos os danos, de trabalho dos cientistas”, destacou.

“Isso significa que essa pessoa pegou os salários de todos os professores que trabalham com modelo animal, todas as bolsas de todos os cientistas que trabalham com modelo animal, e falou assim: ‘vou te dar dinheiro para você ficar 6 meses trabalhando numa coisa que não vai dar certo, e esse dinheiro vai ser jogado no lixo, porque não vai adiantar nada’. Então, por causa de um lucro para bilionário de R$ 40 milhões por ano, a gente pode perder – porque corremos atrás pra isso não acontecer, torcemos para que não tenha acontecido – 6 meses de salários e bolsas de cientistas que vivem para fazer ciência, que foram contratados para fazer ciência. Um setor bilionário estragou um setor do serviço público que tem interesse à autonomia do Estado, de uma nação”, reforçou. 

Segundo o professor, estima-se que há, atualmente, cerca de R$ 500 milhões investidos em pesquisas no ICB – por financiadoras públicas, como o CNPq, a CAPES e a Fapemig, e por uma privada, o Instituto Serrapilheira.

Interrupção das pesquisas

Na última quarta (14), antes dos primeiros treinos, o diretor do ICB, Ricardo Gonçalves, falou ao site da universidade sobre a orientação de interrupção de pesquisas, e disse temer que o barulho alcançasse longas distâncias dentro do campus. “Em Curitiba, tivemos o relato de moradores reclamando do barulho a 600 metros de distância da corrida. Isso é o que mais nos desespera”, disse. Curitiba, vale lembrar, recebeu corridas da Stock Car até 2018, quando uma multa emitida pela prefeitura em 2019, em razão do excesso de barulho dos carros, chegou a causar a saída da competição da cidade – apesar disso, etapas voltaram realizadas na capital paranaense em 2020 e 2021, com saída definitiva a partir de 2022.

Mas, em Belo Horizonte, o barulho foi sentido bem além dos 600 metros. A localização do circuito, que além de vizinho da universidade fica numa área residencial, causou transtornos aos moradores da região. Sofia Borges, estudante de Letras da UFMG, relatou ter conseguido ouvir claramente o barulho dos motores de dentro de casa, a mais de 2 km da pista. “Não esperava que o som fosse alto assim para chegar aqui”, disse. “Eu vi muita gente justificando, falando que como tem o Mineirão lá a vizinhança já é acostumada com barulho. Só que é absurda a diferença de barulho de jogo ou show pro barulho dos carros”, comparou.

“Os biotérios são preparados para o barulho do trânsito normal”, explicou Bruno Rezende. “Esse é um argumento que eu já escutei, algumas pessoas falam ‘ah, mas aí na esplanada [do Mineirão] tem shows, no Mineirão tem jogos, tem trânsito perto da UFMG’. Concordo totalmente, só que é mais distante, os níveis de decibéis são mais baixos do que um carro que passa fazendo 100 e poucos dB perto da UFMG, muito mais alto que o normal. O Carnaval não é na rua próxima da UFMG, é lá na esplanada, é longe do Biotério, não é 110m de distância, não é 50m de distância, é mais de 500m de distância. E para esses barulhos nós já estamos preparados, nós já temos anos, décadas de preparo e infraestrutura para esses barulhos”, frisou. 

“Então, de repente, falam que em pouco mais de 6 meses vai vir um barulho de 110 dB a 30m, 50m do meu biotério, aí te desespera, e aí obviamente não dá pra fazer um planejamento. A gente teve que construir o avião enquanto o avião estava voando”, reclamou o professor.

Rezende citou ainda que o ruído da corrida pode ter prejudicado a utilização de animais que demandam muito tempo e dinheiro para sua produção: os transgênicos. “[É necessário] muito material, biologia molecular pesada, e por muito tempo. Para fazer um transgênico demora 4, 5, 20 anos, dependendo. Porque os genes são muito difíceis de fazer. Ou não tem dinheiro. Você ganha dinheiro aos pouquinhos, vai fazendo aos pouquinhos”, relatou.

Foto: Foca Lisboa/UFMG

“Nós temos um monte de animais transgênicos nos nossos biotérios. São animais especiais, animais caros, que às vezes deixam a gente único na UFMG. Tem animais que são só da UFMG, desenvolvidos na UFMG. Deixam a gente à frente de outros pesquisadores da mesma área, porque só a gente tem esses animais. A gente até passa pra outros laboratórios, mas é nosso, orgulho nosso, sabe, que a gente conseguiu desenvolver”, disse. 

“Aí vem um autorama de bilionário e pode estragar a saúde desses animais, o investimento público no desenvolvimento desses transgênicos, e pode simplesmente destruir tudo isso, jogar bilhões – vou falar bilhões mesmo – de reais fora, de dinheiro público, de autonomia de uma nação, que é ciência, por um lucro de R$ 40 milhões de um grupo de bilionários”, protestou o professor.

Eliane Gonçalves de Melo, vice-diretora da Escola de Veterinária, afirmou em entrevista à Rádio UFMG Educativa, na sexta (16), que já se notavam alterações no comportamento de animais no local, como o sumiço de gatos, que procuravam locais mais calmos e afastados. Ela relatou também a morte de peixes no Laboratório de Terapêutica Veterinária devido ao ruído. “A gente já teve, imediato, óbito no laboratório. E a gente aguarda, porque a gente sabe que os peixes têm um efeito também mais crônico, então a gente está monitorando e avaliando como será esse impacto daqui a alguns dias”, relatou.

O funcionamento do Hospital Veterinário foi inviabilizado pela corrida. Diminuindo atendimentos em 50% desde o domingo anterior, segundo a vice-diretora, o Hospital precisou transferir animais internados e fechar durante os 4 dias de corridas e treinos da Stock Car. O local atende cerca de 70 a 100 animais todos os dias, segundo a UFMG.

Segundo a universidade, 27 animais, sendo 15 equinos, 6 bovinos e 6 cães, foram transferidos para outros locais, como a Fazenda Experimental Professor Hélio Barbosa, em Igarapé (MG), que pertence à UFMG; o sítio de um aluno de residência e “outras escolas e hospitais” do entorno. Do campus Pampulha, onde fica o Hospital Veterinário, até a fazenda de Igarapé, por exemplo, são 55 km de viagem. Outros animais, porém, não puderam ser transferidos – como cabras grávidas ou que recém pariram, além de 45 bezerros que participam de um experimento e precisam permanecer em ambiente controlado.

“É claro que temos que retirar do campus todos os animais que podem ser transferidos. Mas também nos preocupam muito os riscos de acidente implicados numa operação de transporte e o estresse gerado pelo percurso e pela mudança de local de abrigo”, comentou Melo ao site da UFMG. Além dos animais do Hospital Veterinário, o professor Bruno Rezende estimou que cerca de 1200 animais de biotérios de peixes, ratos e corujas, por exemplo, precisaram ser movimentados ou submetidos a medidas adicionais de isolamento por conta da corrida.

Segundo Carlos Bruno Ferreira da Silva, procurador da República em Minas Gerais e responsável por algumas das ações que tentaram a suspensão da prova, perícias realizadas durante os dias de corridas, com medições do barulho dentro e fora das instalações da universidade, determinarão os próximos passos – inclusive para que as próximas edições da Stock Car na Pampulha, previstas para ocorrer por contrato até 2029, sejam canceladas.

“O caminho natural será, sendo confirmado o ilícito pelas perícias, que sejam tomadas as medidas necessárias para reparação da universidade e da comunidade, e que ocorra judicialmente a insistência no pedido de que a prova não se repita na capital mineira em condições similares às do último fim de semana”, afirmou o procurador à reportagem.

Com falhas e eficiência contestada, barreiras acústicas não resolveram a situação

Vídeos postados nas redes sociais nos últimos dias demonstram a inadequação das barreiras acústicas instaladas pela organização da competição. O engenheiro ambiental Felipe Gomes filmou a barreira em frente ao Hospital Veterinário durante a corrida. As imagens mostram falhas na estrutura, como buracos e a própria fragilidade do material. Outro vídeo, publicado pelo perfil “BH Stock Caos”, mostra picos acima de 100 dB medidos com um decibelímetro, também em frente ao Hospital Veterinário. A Faculdade de Farmácia também registrou alto ruído dentro de suas instalações durante o treino de sexta (16).

Os números corroboram o divulgado pela própria universidade, que registrou ruídos com médias de 70 a 80 dB dentro de prédios e de 80 a 90 dB na área externa ao lado da pista, além de picos de 120 dB em frente ao Centro Esportivo Universitário (CEU). Essas médias estão acima dos limites estipulados pela lei municipal 9505/08, que estabelece máximos de 70 dB em áreas residenciais e 55 dB em áreas hospitalares (como o Hospital Veterinário) no período diurno, quando aconteceram as competições.

Ainda na sexta-feira, após constatação de ruídos acima do limite durante os treinos, o MPF tentou novamente suspender a corrida, sem sucesso, como mostrou o site especializado em automobilismo Grande Prêmio. “Entramos com uma petição e recorremos durante o regime de plantão (com o apoio do procurador plantonista) a partir dos laudos da UFMG que demonstravam em tempo real o descumprimento da legislação ambiental. Infelizmente a Justiça não concedeu o cancelamento da prova”, lamentou o procurador Carlos Bruno Ferreira da Silva, em comentário a ((o))eco.

No fim de julho, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Minas Gerais (CAU-MG) se posicionou contra a realização da prova na Pampulha devido à “constatação técnica dos impactos negativos advindos da realização da corrida no local previsto, que colocam em xeque direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, especialmente o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. 

O conselho produziu duas notas técnicas sobre as barreiras acústicas propostas (e depois instaladas) pela Stock Car. A primeira, assinada pela engenheira Danielly Borges Garcia Macedo, conselheira do órgão, concluiu que “o uso de barreiras acústicas não solucionará o impacto sonoro causado pela Stock Car”. 
Já a segunda, assinada pelo engenheiro Victor Mourté Valadares, do Laboratório de Conforto Ambiental da UFMG, concluiu que “com uma eventual barreira implantada nas condições básicas de exequibilidade presente, os níveis sonoros ficarão no mínimo, nessa situação mais crítica, a mais de 20 dB do permitido, ordem de grandeza é considerada de ser mais que suficiente para mobilização social em busca de se evitar essa exposição sonora excessiva”.

Deputadas estaduais visitam a UFMG e destacam falta de licenças ambientais para a corrida 

Nesta segunda (19), as deputadas estaduais Beatriz Cerqueira (PT) e Bella Gonçalves (PSOL) fizeram visita oficial à universidade, representando a Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Cerqueira, presidente da comissão, frisou que a prova precisaria de licenciamento ambiental prévio, enquanto Gonçalves afirmou que “a confluência de interesses muito poderosos permitiu a realização da Stock Car”.

Como mostramos em março, a corrida foi enquadrada pela prefeitura de Belo Horizonte, chefiada por Fuad Noman (PSD), como um “evento”, e não um “empreendimento” – o que exigiria licenças ambientais e estudos de impacto. O decreto municipal 17.266/20, que trata dos empreendimentos, disciplina o processo de licenciamento nas situações especificadas pelo Plano Diretor da cidade – que citam a necessidade de licenciamento pelo Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM) para “autódromos, hipódromos e estádios esportivos”, segundo trecho do artigo 344, e que causem “intervenções viárias significativas”, pelo artigo 345.

Em uma reunião do COMAM realizada no dia 21 de fevereiro – que deliberou sobre o corte de 63 árvores para adequações na pista e instalações de estruturas para a corrida, com ata publicada no fim de abril –, conselheiros chegaram a discutir o enquadramento da corrida como evento ou empreendimento, embora isso não estivesse entre os itens votados. Na ocasião, o conselheiro Paulo Freitas, representante da Secretaria Municipal de Política Urbana (SMPU), sustentou que a Stock Car não se enquadraria nos requisitos para ser considerado um empreendimento de impacto – apesar do que diz o Plano Diretor.

“O Conselheiro Paulo Freitas explicou que a Diretoria de Licenciamento de Alta Complexidade [da SMPU] é responsável, no município de Belo Horizonte, por emitir as orientações para os empreendimentos de impacto, sejam ambientais ou urbanísticos, e que a SUDECAP [Superintendência de Desenvolvimento da Capital] fez uma consulta à diretoria quanto ao enquadramento das intervenções previstas, se seria ou não de impacto. A resposta do órgão foi negativa. O entendimento é que as intervenções pretendidas neste momento não se enquadram como de impacto ambiental e nem urbanístico, nos termos dos artigos 344 e 345, da Lei nº 11.181, e da DN 217/17 do COPAM”, diz a ata da reunião.

Durante a visita, as deputadas constataram que o acesso principal ao Hospital Veterinário ainda não havia sido liberado até aquele momento, na manhã de segunda. “Um cão veio a óbito durante a visita das parlamentares por parada cardiorrespiratória. Sua tutora se queixou da dificuldade para chegar ao Hospital Universitário, fator que pode ter sido determinante para a morte do animal”, relatou o site da assembleia mineira.

Falta de diálogo

A falta de diálogo entre as organizadoras da competição, as empresas Speed Seven Participações Ltda e DM Corporate Ltda, a prefeitura de Belo Horizonte e a UFMG foi destacada por diferentes atores, como a reitora Sandra Regina Goulart e membros dos legislativos municipal e estadual. Sem reuniões diretas entre as partes e sem o comparecimento de representantes das empresas nas audiências públicas sobre o tema na ALMG e na Câmara Municipal de Belo Horizonte, a tentativa de resolução dos problemas acabou sendo feita na Justiça.

Os sinais de falta de disposição para o diálogo já se revelavam ainda na audiência de fevereiro no Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM) da cidade. Segundo a ata da reunião, o advogado Thiago Americano, que é consultor do escritório de advocacia Sette Câmara, Corrêa e Bastos Advogados Associados – que tem como um dos sócios Sérgio Sette Câmara, CEO da Speed Seven –, afirmou que “a questão da UFMG é âmbito federal e não municipal, por isso não deve ser abordado neste local”, ainda que todas as intervenções estivessem sujeitas ao controle municipal.

Sem a presença das empresas organizadoras em audiências, parlamentares também tentaram alertar para os problemas da realização da corrida naquela região. Em indicação ao presidente da Câmara Municipal, Gabriel Azevedo (MDB), o vereador Bruno Pedralva (PT) solicitou, em junho, que fosse encaminhado ao prefeito Fuad Noman um pedido de mudança do local da prova, alertando para a omissão da prefeitura e das empresas no diálogo com os afetados.

“A ausência de diálogo por parte da Prefeitura de Belo Horizonte e dos organizadores da corrida Stock Car também tem sido motivo de extensas queixas entre os moradores e a comunidade acadêmica”, destacou o vereador. “A preocupação dos efeitos negativos e transtornos para a comunidade e a vizinhança na região do Mineirão e da Universidade são imensas”, reforçou.

Já a comissão de Educação, Ciência e Tecnologia da ALMG realizou duas visitas à universidade antes da corrida, com relatórios produzidos por sua presidente, a deputada Beatriz Cerqueira (PT). Em março, o relatório apontou que o circuito “poderia perfeitamente ser realizado em local que não comprometesse o funcionamento de uma instituição de

ensino e pesquisa do porte da UFMG, em benefício de toda a sociedade”. Já em maio, além de reforçar essa recomendação, a deputada frisou a “falta de diálogo entre a Prefeitura de Belo Horizonte, os organizadores do empreendimento e a universidade, que revela negligência com os interesses acadêmicos e comunitários”.

Como mostramos no início de março, os primeiros capítulos da batalha judicial contra a realização da corrida na Pampulha se deram após a autorização do Conselho Municipal de Meio Ambiente, por 10 votos a 2, para o corte de 63 árvores para as obras de adequação. Uma liminar proibindo os cortes chegou a ser concedida quando 17 árvores já haviam sido retiradas, mas a decisão acabou sendo derrubada pelo presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), José Arthur de Carvalho Pereira Filho – que dias antes chegou a ser convidado por Sette Câmara, que visitou seu gabinete no tribunal, para comparecer à corrida.

Na ação que contestava os cortes, proposta pela deputada Beatriz Cerqueira, um despacho do dia 9 de julho, assinado pelo juiz Wauner Batista Ferreira Machado, sugere que Speed Seven e DM Corporate, as organizadoras da corrida, não estavam sendo encontradas pela Justiça – o juiz determinou a citação da DM Corporate em endereço indicado pela autora, e uma pesquisa por um novo endereço da Speed Seven no Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário (SISBAJUD).

Além disso, uma ação popular foi proposta na última segunda (12) pela deputada Beatriz Cerqueira contra as organizadoras e a prefeitura de Belo Horizonte. Nela, Cerqueira pedia a suspensão da corrida, citando compromissos climáticos assumidos pela cidade, a falta de licenciamento ambiental adequado, os impactos sobre a UFMG e o risco de contaminação da Lagoa da Pampulha. 

O mérito da ação, porém, não foi julgado antes da corrida. O juiz Wauner Batista Ferreira Machado entendeu que o valor da ação, fixado em R$ 1 mil, era inadequado. A parte autora foi intimada a corrigir o dado, mas sustentou que essa mensuração era inviável, já que “não há proveito econômico” na causa, como descrito em despacho de Machado, da 3ª Vara dos Feitos da Fazenda Pública Municipal da Comarca de Belo Horizonte.

“A mensuração do valor da causa, ainda que de forma estimada e bastante subjetiva, visa, no caso, aquilatar e destacar a importância dos bens históricos, culturais e ambientais em comento, de suma importância para a coletividade, ou dos prejuízos a eles impostos, os quais, por certo, não beiram a irrisoriedade do valor de um mil reais, que, nessa hipótese, equivale a nada”, respondeu o juiz – permitindo, na prática, a realização da corrida.

Já o MPF propôs outras 3 ações no Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), que também não tiveram sucesso na alteração das condições de realização da prova ou de seu cancelamento – as empresas organizadoras chegaram até mesmo a ignorar uma ordem de apresentação de um plano de mitigação dos ruídos.

Por outro lado, no início deste mês, as duas empresas entraram com uma notificação para explicações, com indicação de possível crime de calúnia, contra o Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Minas Gerais (CAU-MG) – como citamos, o conselho produziu notas técnicas que demonstraram a inadequação das barreiras acústicas instaladas ao redor do circuito. 

Os documentos disponíveis publicamente não mostram os argumentos das empresas, apenas o despacho da juíza Arlete Aparecida da Silva Coura, da 6ª Vara Criminal da Comarca de Belo Horizonte, para que o réu fosse notificado. O pedido é resumido por Coura como “questionamentos sobre declarações feitas pelo interpelado em site oficial do órgão”.

Em outra ação, distribuída ontem (19), as empresas pedem explicações da Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (FEPE) da UFMG, com indicação de possível crime de difamação. O processo ainda não tem documentos públicos.

  • Gabriel Tussini

    Estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), redator em ((o))eco e interessado em meio ambiente, política e no que não está nos holofotes ao redor do mundo.

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