Reportagens

Uma década para restaurar o planeta

Brasil poderia ser um dos grandes destaques do esforço global da restauração, mas avanço do desmatamento e desmonte ambiental colocam em xeque o papel do país na Década da ONU

Cristiane Prizibisczki ·
29 de março de 2022 · 2 anos atrás

A restauração de ecossistemas é uma ciência que ainda floresce no mundo. Mais madura em alguns países, como é o caso da Costa Rica, ela ainda precisa brotar em muitas nações ao redor do globo. Ao lançar a Década da Restauração em 2021, a Organização das Nações Unidas se comprometeu com a tarefa de catalisar um movimento global que visa envolver governos, empresas, grupos e indivíduos da sociedade civil em ações que busquem não só trazer de volta à vida ambientes degradados, mas, sobretudo, que redefina nossa relação com a natureza. 

No cenário internacional, o Brasil tem se destacado pelos projetos de restauração em curso, não obstante as dificuldades que enfrenta internamente. No entanto, ao considerar os objetivos gerais da Década, estamos longe de sermos referência.

“É importante saber que talvez existam bons exemplos de restauração no Brasil, mas definitivamente ele ainda não é um bom exemplo como país para a Década da ONU. A Década é sobre prevenir, frear e reverter a degradação de ecossistemas. Enquanto o Brasil continuar a dizimar a Amazônia, isso não pode ser compensado pelos esforços de restauração em outros lugares”, disse Tim Christophersen, coordenador da Década da Restauração junto ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em entrevista exclusiva a ((o))eco.

Como ilustram as reportagens e artigos do especial “Mata Atlântica: Novas Histórias”, fazer reviver ambientes degradados envolve muita ciência, esforço, dinheiro e múltiplos atores. Envolve também o empenho em evitar que os ecossistemas sejam perdidos, para que as iniciativas de restauração não sejam em vão, como ressalta Christophersen.

Se em nível nacional a tarefa já é complexa, em nível global o desafio é ainda maior.

Os povos indígenas da comunidade Nairi Awari em Limon, Costa Rica, são pagos para cuidar do meio ambiente, como parte de um programa concedido pela realeza britânica. Foto: Ezequiel Becerra/AFP.

Década da Restauração

Desde que foi lançada, em meados de 2021, a Década da Restauração da ONU já registrou o compromisso de 115 países, que somam cerca de 1 bilhão de hectares a serem recuperados – uma área maior do que a China.

O número impressiona, mas, segundo Christophersen, ao estabelecer a iniciativa mundial, a ONU decidiu por não colocar nenhuma meta numérica no horizonte.

“Nós já temos metas demais, o que não temos é ação. Nós conscientemente decidimos, em nossa estratégia, que a Década não seria sobre metas, mas seria sobre como rastrear as metas já estabelecidas nas Convenções do Rio, no Desafio de Bonn, no 20X20, na ODS, como todas elas estão sendo implementadas”, explica.

Tirar do papel as promessas feitas pelos países envolve uma boa dose de otimismo e persistência: muitos dos compromissos lançados em acordos internacionais prévios não foram alcançados. Nenhuma das metas globais acordadas para a proteção da vida na Terra e para deter a degradação da Terra e dos oceanos foi totalmente cumprida (PNUMA 2021), e apenas 6 das 20 Metas de Biodiversidade de Aichi foram parcialmente alcançadas (CBD 2020).

“É preciso deixar claro que essas metas internacionais são ambições. Muitas vezes não dá nem para chamar de meta, são compromissos generalistas, compromissos descompromissados. Então, realmente não dá para levar muito a sério muito esses compromissos, porque eles nem sempre vêm acompanhados de um plano de execução”, explica o coordenador do Laboratório de Silvicultura Tropical da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ/USP), Pedro Brancalion. 

O pesquisador, que é vice-coordenador do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, salienta, no entanto, a importância de campanhas como a Década da ONU. “Ela cria um momentum, um movimento político de apoio, de animação, divulga empresas”, complementa.

Além do desafio da implementação, a ONU e os cerca de 100 parceiros envolvidos na iniciativa também terão a tarefa de convencer as nações ao redor do globo a ampliarem os ecossistemas abrangidos em seus programas nacionais de restauração. Isso porque as metas assumidas até então são voltadas para ecossistemas terrestres. Oceanos e ambientes costeiros não estão contemplados de forma suficiente pelas iniciativas domésticas dos países.

“Os países precisam cumprir seus compromissos existentes para restaurar 1 bilhão de hectares de terras degradadas e assumir compromissos semelhantes para as áreas marinhas e costeiras”, diz uma mensagem-chave do relatório “Becoming #RestorationGeneration – Ecosystem Restoration for people, nature and climate” (Tornando-se #GeraçãoRestauração – Restauração de Ecossistemas para as pessoas, a natureza e o clima), lançado pela ONU em 2021, por ocasião do início da Década.

Medindo o progresso da Década

Muitos hectares dessa incrível cifra de 1 bilhão, assim como explicou Tim Chistophersen, incluem aqueles que já haviam sido prometidos pelos países em iniciativas anteriores, como o Desafio de Bonn, lançado pelo governo da Alemanha e pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) em 2011, e que atualmente tem a meta de restaurar 350 milhões de hectares de florestas e paisagens florestais ao redor do globo até 2030.

Também contam nessa cifra de dez dígitos as metas estabelecidas na Iniciativa 20X20, lançada formalmente na COP20, em 2014, com o objetivo de restaurar 50 milhões de hectares na América Latina e Caribe até 2030, e outros compromissos formalizados por diferentes países no âmbito das Convenções do Rio de Janeiro em 1992 e 2012, além de outras iniciativas.

Apesar de já terem se passado vários anos do estabelecimento de tais iniciativas, a ONU ainda não sabe o quanto, de fato, já foi alcançado em restauração ao redor do globo. “Nós estamos nos perguntando exatamente a mesma questão. Nós não sabemos realmente onde essas áreas estão […] não temos um número global ainda”, admite Tim Christophersen.

Para tentar resolver o problema, no início de março de 2022, a ONU lançou um apelo aos países para que nomeiem bandeiras da restauração mundial. Até o final do ano, a Organização vai selecionar os 10 esforços de restauração mais significativos do mundo – já realizados ou promissores. 

Os ganhadores farão parte de uma campanha de divulgação comandada pela ONU, de forma a dar mais visibilidade e angariar recursos a estas iniciativas. Os países têm até esta quinta-feira (31) para registrar suas “bandeiras”.

Além disso, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), parceira do PNUMA na Década da Restauração, lidera uma força-tarefa para a criação de um Painel para Restauração de Ecossistemas (Framework for Ecosystem Restoration – FERM).

“O FERM reunirá e integrará dados de diferentes plataformas para ajudar a fornecer uma visão geral do progresso da restauração de diferentes ecossistemas”, disse o Diretor-Sênior do setor de Florestas da FAO, Julian Fox, durante o lançamento da plataforma geoespacial, em junho de 2021.

Atualmente, segundo o documento da ONU “Becoming #RestorationGeneration”, mais de 270 especialistas de 100 organizações participam da força-tarefa liderada pela FAO, a fim de identificar as melhores opções para monitorar o progresso global da Década, bem como para preencher as lacunas de informação atuais. 

A plataforma FERM, ainda em construção, pode ser acessada aqui

Desfragmentando a Década da Restauração

Assim como acontece no Brasil, as iniciativas de restauração ao redor do mundo têm acontecido de forma muito fragmentada. Mesmo dentro de um mesmo território ou dentro de um só bioma, elas não necessariamente conversam entre si.

Reunir todos os projetos em uma só plataforma parece ser tarefa  impossível. “Eu acho que nunca teremos um único banco de dados que contenha todos os esforços de restauração do mundo”, diz Tim Christophersen.

Ainda assim, os pesquisadores em ecologia global do Crowther Lab, do Instituto Federal de Tecnologia de Zurick – umas das 10 melhores universidades do mundo no ramo de engenharia e tecnologia – se lançaram no desafio e criaram o Restor, uma plataforma desenvolvida com o Google que busca justamente isso: conectar as iniciativas de restauração e, assim, acelerar o movimento global de fazer reviver os ecossistemas.

Restor – A restauração em só lugar 

O Restor, parceiro da Década da Restauração da ONU, é uma plataforma de dados abertos com base científica para apoiar e, sobretudo, conectar o movimento global de restauração.

Segundo Clara Rowe, CEO da Restor, a ferramenta funciona sobre dois pilares principais: conectividade e transparência.

A conectividade, na perspectiva da plataforma, significa descobrir onde a restauração está acontecendo e quem é responsável por ela. “A ideia é que sejamos esse local onde as iniciativas possam se encontrar, aprender umas com as outras, possam encontrar potenciais financiamentos e se conectar com bons dados, de forma a aumentar o impacto, a escala e acelerar a restauração”, disse, Clara, em entrevista a ((o))eco.

Já a transparência se baseia na premissa da confiança de que um dado ali registrado de fato representa uma iniciativa real de restauração. “Se você vir que o trabalho está acontecendo, é mais provável que os financiadores continuarão a colocar recursos, ou os criadores de políticas continuarão a fazer políticas ou até mesmo mudarão as políticas já feitas porque viram que eventualmente algum tipo de intervenção não está funcionando”, explica.

A ideia por trás do projeto é que qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, possa registrar sua iniciativa de restauração. Ao cadastrar uma área, a plataforma fornece automaticamente informações sobre a biodiversidade local, carbono atual e potencial no solo daquela localidade, além de outras variáveis, como padrões de cobertura da terra, pH do solo e precipitação anual.

Também é possível saber quais os projetos estão perto de você, para aumentar a troca de experiências, encontrar parceiros em potencial e buscar fontes de financiamento.

Lançado oficialmente em outubro de 2021, a plataforma possui atualmente 10.025 áreas públicas cadastradas, em 108 países (dados até 16/03/22). O Brasil é o país que possui maior número de áreas publicamente visíveis no Restor. 

Além das áreas públicas, outras 67.772 áreas estão cadastradas de forma privada na plataforma. Elas representam iniciativas cujos responsáveis, por diferentes motivos  – como o projeto não estar finalizado –, ainda não querem tornar públicos os dados.

Segundo Clara Rowe, quanto mais iniciativas cadastradas, mais o Restor poderá se desenvolver. “Nosso objetivo é focar em funcionalidades da plataforma que são úteis e fazê-las ainda mais úteis para as iniciativas de restauração. Essa é uma parte chave de nosso trabalho, agregar as experiências e alimentar de volta soluções”, disse.Para acessar o Restor, clique aqui.

Colocando a Década da Restauração em pé

A Organização das Nações Unidas estima que, para tirar do papel os 1 bilhão de hectares em projetos de restauração prometidos pelos países, seriam necessários recursos que giram entre 1 e 3 trilhões de dólares americanos, algo em torno de R$ 15 trilhões, ou quase dois anos de toda riqueza produzida no Brasil

Com o lançamento da Década da Restauração, muitos governos se apressaram em anunciar suas iniciativas. O Reino Unido prometeu mais de 8 milhões de libras em um novo fundo para proteger habitats vulneráveis ao redor do globo. 

O setor privado também fez promessas notáveis. A Dove e Conservação Internacional comprometeram 8,5 milhões de euros para proteger e restaurar 20 mil hectares de floresta no norte de Sumatra, na Indonésia.

“Muito já foi gasto, mas não é o suficiente”, aponta Tim Christophersen. Segundo ele, as iniciativas de restauração ao redor do mundo serão financiadas, principalmente, por fontes domésticas, fundos públicos e privados e o crescente mercado voluntário de carbono.

Segundo o engenheiro agrônomo Miguel Calmon, gerente-sênior do Programa Global de Florestas da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) entre 2013 e 2017 e hoje Líder de Carbono nas Américas na Conservação Internacional, o mercado de carbono, de fato, pode representar uma saída para o problema do financiamento da restauração ao redor do globo.

“A demanda hoje do mercado de carbono é enorme. A gente não consegue atender a essa demanda. Se você conseguir desenhar bons projetos de restauração para esse mercado, a tendência é ter bilhões e bilhões entrando para a restauração”, disse em entrevista a ((o))eco. 

Ainda que a 26ª Conferência do Clima da ONU, realizada entre outubro e novembro de 2021, tenha fracassado nas negociações para regulamentar o Artigo 6º do Acordo de Paris – outra potencial fonte de financiamento para os projetos de restauração ao redor do mundo – o mercado voluntário de carbono tem espaço suficiente para as iniciativas de restauração presentes e futuras, defendem pesquisadores.

O artigo 6º do Acordo de Paris regulamenta o mercado regulado de créditos de carbono e assegura que os países possam negociar tais créditos uns com os outros para garantir suas reduções de emissões. 

Já o mercado voluntário é formado por empresas que se comprometem a compensar suas emissões comprando créditos de quem é capaz de provar que está tirando carbono atmosférico. Nessa modalidade, a transação é totalmente voluntária, sem qualquer meta pré-estabelecida por órgão regulador, e de acordo com a oferta e demanda.

“O mercado de carbono não está nem aí para essa regulamentação. Ele está se organizando e funcionando. Hoje você tem grandes empresas internacionais, ou mesmo nacionais, que assumiram publicamente metas de serem carbono neutro, e não estão conseguindo reduzir as emissões de suas cadeias e estão atrás, que nem doidos, de projeto de restauração ou quem possa vender créditos de carbono”, reforça Pedro Brancalion, da ESALQ/USP.

Um estudo lançado no início do ano passado por grandes empresas mundiais e organizações ligadas ao mercado voluntário de carbono mostrou que este mercado tem potencial para ser 15 vezes maior do que é hoje até 2030. Uma fonte preciosa para as iniciativas de restauração.

Além das fontes públicas e privadas, a ONU também criou um Fundo Fiduciário Multiparceiros para a Década da Restauração de Ecossistemas (Multi-Partner Trust Fund). Os recursos do fundo serão usados para a manutenção das atividades da Iniciativa e para financiar, parcialmente, alguns projetos emblemáticos de restauração – ainda a serem definidos. 

Atualmente, segundo Tim Christophersen, o fundo conta com US$ 25 milhões. A meta até o final da década é arrecadar US$ 100 milhões para tais fins.

A ONU também faz um chamado para que os planos de recuperação pós Covid-19 dos governos incorporem a restauração de ecossistemas. Atualmente, apenas 18% dos planos de recuperação foram caracterizados pela ONU como “verdes”.

Por que restaurar?

A degradação atinge todos os ecossistemas ao redor do globo e já afeta o bem-estar de cerca de 3,2 bilhões de pessoas – cerca de 40% da população mundial, alerta a ONU. As perdas de serviços ecossistêmicos superam 10% da produção econômica mundial todos os anos.

Atualmente, cerca de 80% da terra arável global é impactada por pelo menos uma forma de degradação, como aridez, declínio de vegetação, salinização do solo e perda de carbono estocado. 

A Organização também estima que o mundo perdeu cerca de 50 milhões de hectares de florestas entre 2015 e 2020 (FAO e PNUMA 2020). Anualmente, uma média de 122 milhões de hectares de florestas ao redor do globo são afetados por incêndios, pragas, espécies invasoras, secas e eventos climáticos adversos.

Este cenário de intensa degradação, somado às crises trazidas pela emergência climática, a insegurança alimentar e hídrica e a pandemia de Covid-19, colocam a vida na terra e os ecossistemas em risco.

Prevenir, frear e reverter a degradação de florestas, savanas, rios, montanhas, turfas, terras aráveis, oceanos, zona costeira e áreas urbanas pode mudar o curso do nosso futuro, diz a ONU. 

Segundo estimativas do órgão, a recuperação de ecossistemas e outras soluções baseadas na natureza podem contribuir com mais de um terço da mitigação climática total necessária até 2030.

Ela também pode reduzir em 60% o risco de extinções em massa de espécies e evitar futuras pandemias, quando associada à proteção dos ecossistemas naturais existentes.

Atualmente, segundo a Organização das Nações Unidas, cada dólar investido em restauração produz U$ 30 no Produto Interno Bruto (PIB) dos países. 

Restaurar ecossistemas produtivos também é essencial para a segurança alimentar mundial. Somente a restauração por meio de agrofloresta poderia aumentar a segurança alimentar de 1,3 bilhão de pessoas ao redor do mundo.

“A tarefa é monumental. Precisamos replantar e proteger nossas florestas. Precisamos limpar nossos rios e mares. E precisamos esverdear nossas cidades. A realização dessas coisas não apenas protegerá os recursos do planeta, mas também criará milhões de novos empregos até 2030, gerará retornos de mais de US$ 7 trilhões por ano e ajudará a eliminar a pobreza e a fome”, disse o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, durante a cerimônia de lançamento da Década da Restauração no ano passado.

Um homem caminha entre árvores de Cedro na fazenda El Paraiso, em Maynas, região de Loreto, no norte da floresta amazônica peruana (novembro de 2018). – No coração da Amazônia peruana, um pesquisador espanhol conseguiu germinar maciçamente três espécies de árvores ameaçadas, o que poderia se tornar uma solução para o reflorestamento. Shihuahuaco, Mogno e Cedro estão na lista da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Selvagem (CITES). Foto: Ernesto Benavides/AFP.

Restaurar não é só plantar árvore

Nos últimos anos, governos e organizações em diferentes partes do mundo anunciaram suas iniciativas de plantio massivo de árvores: 1 milhão, 10 milhões, 1 bilhão, 1 trilhão de árvores, diziam as campanhas, na promessa de restaurar ecossistemas e, assim, dar sua contribuição para reduzir os impactos das mudanças climáticas. Mas trazer de volta à vida ambientes degradados não se resume somente a plantar árvores. 

“A restauração ecológica pode envolver uma grande variedade de atividades em qualquer ecossistema, como mudar práticas agrícolas com o objetivo de preservar e melhorar a saúde do solo ou proteger áreas degradadas para que elas possam se regenerar em uma exuberante floresta tropical. E pode ser muitas coisas no meio disso, incluindo incorporar mais árvores nos sistemas agrícolas, manejar sustentavelmente florestas, reabilitar campos e áreas úmidas e muito mais”, explica Clara Rowe, CEO da plataforma Restor.

O problema de iniciativas baseadas somente no plantio de árvores, segundo especialistas, é que elas podem, por diferentes fatores, não atender aos objetivos esperados de um projeto de restauração.

Tanto é que, quando o Fórum Econômico Mundial lançou a campanha “Um trilhão de árvores”, iniciativa abraçada por muitas multinacionais ao redor do mundo, organizações convidadas a participar responderam com um sonoro “Não, obrigado!”.

“Plantar um trilhão de árvores não é solução, é uma distração. Quando usado indevidamente para compensação, são apenas truques de contabilidade”, disse o Greenpeace na ocasião. 

Além disso, apesar de as monoculturas darem suporte para economias locais, tais plantações são muito mais pobres do que florestas naturais. 

Segundo artigo publicado na revista Nature em 2019 por pesquisadores de universidades do Reino Unido, em média, florestas naturais são seis vezes mais eficientes do que agroflorestas e 40 vezes melhores que monoculturas na tarefa de estocar carbono.

Além disso, monoculturas tendem a ser derrubadas a cada 10 ou 20 anos, liberando o CO2 estocado novamente para a atmosfera.

De acordo com o artigo, 45% de todos os compromissos assumidos dentro do Desafio de Bonn envolvem o plantio de vastas monoculturas de espécies comercialmente lucrativas, como eucalipto e seringueira. A maioria está planejada em grandes países, como Brasil, China, Indonésia, Nigéria e República Democrática do Congo.

As outras formas de restauração indicadas pelos países no Desafio de Bonn são a regeneração natural (34% dos compromissos) e agroflorestas (21% dos compromissos).

Para o coordenador da Década da Restauração, Tim Christophersen, o uso de monoculturas em projetos de restauração só representa um problema se a meta estipulada for baseada somente nestas grandes plantações. 

“Nós podemos ter plantações como parte do conceito geral de paisagem. Plantações não são necessariamente sempre ruins, elas podem ser uma ferramenta. Mas se é apenas sobre monoculturas e sobre uso comercial, então alguma coisa está faltando na restauração”, diz.

De acordo com Christophersen, para terem êxito, os projetos precisam seguir os 10 princípios para uma boa restauração, um tipo de guia criado pelo PNUMA, em parceria com a União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) e FAO. O documento, que contou com o trabalho de cerca de 300 especialistas, foi lançado em setembro de 2021 durante o Congresso Mundial da Conservação. 


Ecossistemas saudáveis ​​sustentam todos os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e reúnem as metas das três Convenções do Rio ao abordar simultaneamente as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade e a degradação da terra.

Os implementadores da restauração devem incluir as pessoas afetadas durante todo o processo – e prestar atenção especial às vozes de grupos sub-representados e marginalizados, como povos indígenas, minorias étnicas, mulheres, jovens e pessoas LGBTIQ+.

Não existe uma abordagem única para a difícil tarefa de trazer de volta o que foi perdido. Às vezes, basta dar espaço à natureza. Ecossistemas severamente degradados, no entanto, podem exigir mais esforço. O ganho líquido para a biodiversidade, a saúde dos ecossistemas e para as pessoas é o mesmo para qualquer técnica usada com eficiência.

Embora as atividades de restauração de ecossistemas possam variar, elas devem buscar os maiores benefícios possíveis. Sob nenhuma circunstância a restauração deve levar a uma maior degradação do meio ambiente ou das pessoas que dele dependem.

A restauração de ecossistemas não substitui a conservação. Um projeto eficaz precisa enfrentar os fatores de degradação, desde os contribuintes diretos, como a extração de recursos, até os fatores indiretos, como as mudanças climáticas.

Para ter sucesso, a restauração do ecossistema deve integrar vários tipos de conhecimento. Isso inclui o trabalho científico, mas também o conhecimento indígena e tradicional e a experiência das comunidades locais.

No início de cada jornada de restauração, os implementadores e os afetados pela restauração devem decidir para onde querem ir, com o estabelecimento de metas de ação - como número e variedade de árvores a serem plantadas, por exemplo - e metas econômicas e sociais. Todas as metas devem ser periodicamente medidas em relação a uma linha base.

A restauração é uma missão global. Para reviver a Terra até 2030, a ação deve abranger todos os continentes e oceanos. Mas a restauração também é de natureza local. Medidas que são benéficas em um lugar podem ter efeitos adversos em outros, por isso elas precisam se adaptar aos contextos locais.

O monitoramento contínuo é essencial para garantir que as medidas estejam progredindo em direção aos objetivos de um projeto. Mas nem tudo pode ser controlado. As iniciativas de restauração devem, portanto, seguir práticas de gestão adaptativas e ajustar as intervenções conforme necessário.

Vários fatores, incluindo o financiamento, podem determinar o sucesso de uma iniciativa a longo prazo. Instrumentos de governança, como leis e políticas, são fundamentais para sustentar o renascimento dos ecossistemas.

Saiba mais sobre os princípios da restauração aqui (em inglês).

A restauração ao redor do globo

Ao longo das últimas décadas, algumas iniciativas de restauração se destacaram no cenário mundial. Este é o caso da Costa Rica, que, a partir de um robusto programa de pagamento por serviços ambientais, conseguiu recuperar suas áreas degradadas. 

Apesar desta e de outras iniciativas emblemáticas, os especialistas ouvidos por ((o))eco salientam que não existe um ranking de restauração mundial. Isso acontece porque as iniciativas são muito diferentes umas das outras e envolvem também diferentes esforços, não sendo possível traçar uma comparação.

Algumas nações da Ásia, por exemplo, possuem grandes projetos de restauração de manguezais, baseados nas comunidades locais (Community-based Ecological Mangrove Restoration). O Estados Unidos é conhecido por seu esforço na restauração de riachos. Países como Colômbia e México, nas Américas, possuem importantes projetos de restauração florestal dentro da Iniciativa 20X20. A África se comprometeu com a restauração de 100 milhões de hectares em diferentes ecossistemas até 2030, dentro da iniciativa AFR100 (African Forest Landscape Restoration Initiative), que envolve 32 países do continente.

“Existem tantos projetos indo bem, que não é possível destacar países individuais”, ressalta o coordenador da Década.

Além disso, grandes números não necessariamente significam bons resultados. Esse é o caso da China. Se a métrica for de hectares restaurados, a China ganha disparado, com a recuperação de mais de 70 milhões de hectares na última década. O problema é que a maior parte dessa restauração foi baseada na plantação de grandes monoculturas.

“Nós fomos lá ver a qualidade [da restauração realizada] e era muito ruim, no geral. Muita monocultura e também plantavam árvores em lugares que, de repente, não era nem pra ter árvore. Porque, qual era o objetivo lá? Era reduzir a erosão, gerar emprego, então o negócio é plantar árvores, rápido, rápido, rápido”, explica Miguel Calmon, da Conservação Internacional. Apesar deste histórico, atualmente a China tem diversificado as espécies que usa em seus projetos de restauração, salienta Calmon.




Em 2019, o Paquistão lançou o programa “Tsunami de árvores”, com a ambiciosa meta de plantar dez bilhões de árvores até 2023. O programa chamou a atenção da Organização das Nações Unidas, que apoia a iniciativa e tem o país como um exemplo dentro da Década da Restauração.

Segundo o governo Paquistanês, o programa criou 85 mil empregos durante a pandemia da Covid-19 e outros milhares são esperados durante os próximos anos. A taxa de sobrevivência das mudas foi de 90% em 72% dos locais plantados.



Além do programa de plantio de árvores, o governo do Paquistão também se comprometeu a aumentar suas áreas protegidas para 15% do total do país até 2023 (atualmente, esse número está em 13%).

*Avaliação Global de Recursos Florestais 2020-FAO-ONU



A Costa Rica dobrou sua cobertura florestal desde a década de 1980 através da restauração, ao mesmo tempo que conseguiu triplicar sua renda nacional. Segundo a plataforma do Desafio Bonn, a área total do país sob restauração ultrapassa os 3 milhões de hectares e cobre 59,36% do total de seu território. Na década de 1980, a cobertura florestal do país estava em cerca de 25%.

Isso só foi possível através de um programa robusto de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), que remunera proprietários de terra pelo sequestro de carbono e pela proteção de bacias hidrográficas.



Hoje o país é líder em ecoturismo: o setor representa 6% do seu Produto Interno Bruto (PIB) e fornece 7% dos empregos no país (OCDE 2021).

A Costa Rica também foi o primeiro país da América Central a receber recursos do Fundo Verde para o Clima (US$ 54,1 milhões). Atualmente, o país também conta com financiamento do Banco Mundial (60 milhões de dólares) e da Coalização Leaf e do governo norueguês (20 milhões) para manter suas florestas em pé, o que tem ajudado a nação a contornar a crise econômica trazida pela Covid-19.



A Grande Muralha Verde (GGW, na sigla em inglês) é uma iniciativa que tem por objetivo combater a degradação da terra, desertificação e seca em 11 países da região semi-árida do Sahel da África Ocidental, a partir a restauração de 100 milhões de hectares de terras, em uma extensão que chega a 8 mil quilômetros.



A ONU reconheceu a Grande Muralha Verde como a primeira iniciativa emblemática da Década da Restauração, pelos resultados alcançados durante as últimas décadas. Entre 1987 e 2015, mais de 200 milhões de árvores foram plantadas na região, ajudando a restaurar cerca de 5 milhões de hectares de terra. O plantio de árvores nativas em sistema de agrofloresta ajudou a aumentar a produção de grãos em meio milhão de toneladas por ano, impulsionando segurança para mais de 2,5 milhões de pessoas.

Atualmente, vários projetos na Grande Muralha Verde são financiados pelo Fundo Global para o Meio Ambiente (PNUMA) e por outros doadores. A ideia é que os projetos de restauração ao longo da muralha gerem até 10 milhões de empregos.

O Brasil na Década da Restauração

Ao longo das últimas décadas, o Brasil assumiu compromissos em diferentes iniciativas nacionais e internacionais. Em 2009, foi criado o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, um movimento multissetorial que assumiu como meta restaurar 1 milhão de hectares até 2020. A meta foi cumprida e as organizações envolvidas no Pacto se lançaram em um desafio bem maior: restaurar 15 milhões de hectares até 2030.

Em 2016, o Brasil aderiu, oficialmente, ao Desafio de Bonn e à Iniciativa 20X20, com a intenção de restaurar, reflorestar e promover a recuperação natural de 12 milhões de hectares de florestas até 2030, além de implementar 5 milhões de hectares de sistemas agrícolas integrados, combinando lavoura, pecuária e florestas, também até 2030, e recuperar 5 milhões de hectares de pastagens degradadas, até 2020.

Em 2017 foi instituído no país o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), que busca a recuperação de, no mínimo, 12 milhões de hectares, principalmente em Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reserva Legal (RL), sendo 4,8 milhões de hectares só na Amazônia. A meta do Planaveg se sobrepõe à anunciada no Desafio de Bonn e na Iniciativa 20X20.

Também em 2017, foi lançada a Aliança pela Restauração da Amazônia, uma iniciativa multi-institucional e multissetorial cujo objetivo é promover, qualificar e ampliar a escala da restauração de paisagens florestais na maior floresta tropical do mundo. A Aliança não estipulou meta de restauração do bioma, ela trabalha para que a meta determinada no Planaveg seja alcançada.

Apesar de todas as dificuldades que o Brasil enfrenta na implementação de seus compromissos de restauração, como falta de governança e ausência de recursos, o país é um dos que se destacam no assunto.

“Por incrível que pareça, eu diria que hoje o Brasil é o país mais avançado [em restauração de florestas tropicais]. Nós somos líderes na pesquisa em restauração. A maior parte dos artigos de alto nível que têm sido publicados no tema têm a liderança de brasileiros. E é onde a restauração com alta diversidade ocorre há mais tempo. É também onde a gente tem legislação específica para isso, tem muitas organizações locais, muito viveiro, produção de mudas. Temos um know how [sabemos como] que é internacionalmente reconhecido sobre como restaurar florestas tropicais e diversas”, diz Pedro Brancalion, da ESALQ/USP.

Miguel Calmon, da Conservação Internacional, concorda. Segundo ele, o Brasil “é o país da vez”, tanto pela qualidade da restauração que promove em seus ecossistemas, quanto pelos benefícios que consegue alcançar com ela.

“Nós temos as políticas públicas em nível federal, estadual e municipal e eu acho que nenhum país tem assim, o pacote inteiro. Nós temos engajamento do setor privado, da sociedade civil, da academia. A restauração integra muito bem no nosso sistema de produção, então eu acho que temos todos os elementos hoje”, diz.

Calmon ressalta que, no final do dia, o que vale é a implementação. Mas sua crença de que o Brasil é capaz de cumprir o desafio é tanta que o fez encerrar sua atuação na IUCN, nos Estados Unidos, para retornar ao país e trabalhar mais de perto nesta tarefa.

“Depois de três anos e meio trabalhando na IUCN, eu botei na minha cabeça o seguinte: eu vou voltar para o Brasil, porque se o país não entregar a meta dele, que é de 12 milhões de hectares [no Desafio de Bonn], eu não acredito que nenhum outro país vá cumprir”.

Apesar dos elogios que recebe, o Brasil tem sofrido com a alta nos índices de desmatamento e queimadas em todos os seus biomas. Somente na Amazônia e no Cerrado o país perdeu 21.766 km² de vegetação, área maior do que o território de El Salvador.

Além disso, o país padece com o desmonte de  sua legislação ambiental, com a paralisação e enfraquecimento de mecanismos de comando e controle.

É justamente por estes motivos que, apesar de todos os seus esforços em restauração, o Brasil “definitivamente ainda não é um bom exemplo como país para a Década da ONU”, como ressaltou o coordenador da iniciativa global.

“A Década é sobre prevenir, frear e reverter [a degradação de ecossistemas]. Nós temos que sempre ver isso como um esforço holístico para virar a maré da degradação ambiental e o modo mais rápido e barato é simplesmente parar de destruir”, sintetiza Tim Christophersen.

O projeto Mata Atlântica: novas histórias é apoiado pelo Instituto Serrapilheira.

  • Cristiane Prizibisczki

    Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College – Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow...

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Comentários 1

  1. Felipe diz:

    Ótima reportagem. Parabéns pelo bom trabalho.