No território da Mata Atlântica estão espalhados 3.429 municípios. Em muitos deles, especialmente os menores, as informações sobre áreas protegidas ficam ilhadas, pouco acessíveis e invisíveis. Um esforço hercúleo de levantamento, realizado pela Fundação SOS Mata Atlântica, mostra que existem pelo menos 1.530 unidades de conservação (UCs) municipais no bioma, distribuídas em 710 municípios e que, somadas, ocupam cerca de 5,2 milhões de hectares. Os números representam quase quatro vezes mais o total de UCs reconhecidas pelo cadastro nacional.
De acordo com o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC), a Mata Atlântica possui apenas 396 unidades de conservação na esfera municipal. O número equivale a cerca de um quarto das áreas identificadas no estudo, divulgado nesta quinta-feira (10) e já disponível online. O abismo entre os valores – que certamente se repete em outros biomas – alerta para a invisibilidade das áreas protegidas municipais, que podem ter um papel chave na conservação dos remanescentes da Mata Atlântica.
O levantamento começou em 2017, quando um primeiro panorama das UCs municipais foi realizado. Na época foram mapeados 631 municípios. Em 2021, outras 1.531 municipalidades foram amostradas. E no final de 2022, foi concluída a última etapa de pesquisa, que incluiu os 1.257 municípios que faltavam no quebra-cabeça da conservação municipal da Mata Atlântica.
As 1.530 UCs estão concentradas em 710 municípios, o equivalente a 21% do total de municípios que existem no bioma. Ou seja, em 2.710 deles não foi encontrada uma única unidade de conservação sequer. Dentre os que possuem áreas protegidas, a maioria – 464, ou 65% – possui uma única unidade sob sua gestão.
Coordenador de Áreas Protegidas da SOS Mata Atlântica e um dos autores do estudo, Diego Martinez alerta, entretanto, que as 1.530 unidades de conservação municipais não são um número exato. “Já sabemos de novas unidades que foram criadas desde que terminamos a etapa de levantamento, por exemplo. Além disso, é tão difícil de encontrar informações municipais às vezes, que algumas áreas podem não ter sido encontradas. O que é importante desse número é dar uma dimensão mais real do papel dos governos municipais na conservação da Mata Atlântica”, explica o coordenador em entrevista com ((o))eco.
Diferente de outros biomas, a fragmentada Mata Atlântica é um bioma dominado por cidades e as unidades de conservação municipais têm a capacidade de proteger áreas que grandes UCs não conseguiriam chegar. Isso pode ser fundamental para proteger diferentes feições e ecossistemas da Mata Atlântica, que hoje é feita de forma não equitativa.
“Talvez uma estratégia importante para Mata Atlântica seja investir na gestão descentralizada e incentivar que os municípios se apropriem e se tornem protagonistas da proteção da natureza. Para isso é preciso trazer à tona essas UCs que estão invisíveis, isso pode mudar o panorama e os municípios podem fazer a diferença para a Mata Atlântica”, destaca Daniel.
A base de dados do CNUC pressupõe que o órgão gestor, nas três diferentes esferas – e em âmbito privado, no caso das RPPNs –, deve cadastrar suas unidades de conservação. Na prática, isso cria um desafio para os municípios menores, onde por vezes faltam recursos humanos e capacitação técnica para realizar o cadastro.
“Em muitos municípios é um mesmo técnico que atende várias áreas e falta capacidade para que eles levem essas informações a público. Alguns municípios não sabem como subir essas informações no CNUC e as próprias prefeituras precisam entender que ter essa visibilidade é importante para o município. Para isso, nós acreditamos que é necessário um incentivo do estado”, reflete o coordenador da SOS Mata Atlântica.
De acordo com ele, as UCs municipais são um instrumento importante para proteção de áreas fragmentadas e ecossistemas ainda pouco protegidos no bioma. Isso requer mais políticas públicas, principalmente estaduais e federais, assim como programas de incentivo que estimulem e capacitem as prefeituras a trabalhar suas áreas protegidas.
“Para que isso se consolide, será fundamental ampliar políticas e programas de incentivo, como o ICMS Ecológico, programas de apoio técnico, gestão integrada e outras medidas que têm contribuído para que determinados estados e municípios avancem nessa agenda. Esse estudo evidencia a importância de um olhar mais aprofundado para esse conjunto de áreas protegidas, contribuindo para o fortalecimento da gestão ambiental local, a coordenação das ações de conservação entre estados e municípios e a valorização das unidades de conservação perante a sociedade”, continua Diego.
O ICMS Ecológico é uma iniciativa de repasse do estado para financiar e fomentar as boas práticas na gestão ambiental municipal a partir de critérios como a porcentagem de áreas protegidas no território. Na Mata Atlântica, o instrumento já é adotado pelos estados do Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul. Inspirado no modelo mineiro, o estado de Pernambuco também possui o ICMS Socioambiental.
A maioria das UCs municipais concentra-se justamente nesses estados que possuem políticas de repasse do ICMS Ecológico, no sudeste e sul do Brasil, com o Rio de Janeiro na liderança, com 420 áreas protegidas municipais, seguido por Minas Gerais e Paraná, com 305 e 291. Sem coincidência, os municípios com maior número de UCs municipais são Curitiba (com 61), Rio de Janeiro (com 52) e Recife (com 25).
O caso de Curitiba, capital do Paraná, ilustra o papel das próprias prefeituras como promotoras de políticas para áreas protegidas. Das 61 UCs curitibanas, mais da metade (35) são Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), de gestão privada. “Curitiba é um caso muito emblemático de uma iniciativa de um município porque eles conseguiram incentivar a criação de RPPNs através da isenção do IPTU e do mecanismo de transferência de potencial construtivo”, destaca o coordenador da SOS Mata Atlântica.
Outro bom exemplo é Varre-e-sai, município no estado do Rio de Janeiro, que também implementou uma política de estímulo às RPPNs, com o repasse de parte do ICMS diretamente para os proprietários que mantêm as áreas protegidas privadas.
“O estado do Rio de Janeiro é um exemplo porque combina alguns tipos de incentivos. Além do incentivo financeiro e tributário, teve o incentivo técnico com o Programa de Apoio às Unidades de Conservação Municipais (ProUC), que faz a capacitação dos municípios sobre como é o rito de criação de UCs, realiza oficinas para mostrar às prefeituras a importância das áreas protegidas”, conta.
Para contornar a baixa visibilidade das unidades de conservação municipais, outra estratégia possível é a articulação dessas UCs em Mosaicos, junto com as outras duas esferas de gestão. Nesse sentido, o Mosaico Carioca, que reúne 12 UCs na cidade do Rio de Janeiro, entre elas o Parque Nacional da Tijuca. Esse diálogo e cooperação entre os entes potencializa a gestão integrada, para otimizar as ações no território e a captação de recursos.
“O Mosaico Carioca conseguiu recursos de emenda parlamentar, por exemplo. Essa estrutura integrada tem a capacidade de sair do convencional para ter acesso a outro tipo de recursos. Isso é importante principalmente para UCs que são pequenas e teriam dificuldade de se firmar e conseguir financiamento”, reforça Daniel.
Deserto de UCs
Do outro lado da equação, estão situações como a do Piauí, onde também há áreas de Mata Atlântica. Em todo o estado foi encontrada uma única unidade de conservação municipal – uma Área de Proteção Ambiental (APA) de 8.171 hectares.
Os estados do Piauí, Sergipe, Alagoas, Paraíba, Goiás e Rio Grande do Norte são, respectivamente, os com o menor número total de UCs municipais na Mata Atlântica.
“Esse mapa repete o cenário da Mata Atlântica que é ter unidades de conservação muito mal distribuídas. A maioria delas está na Serra do Mar. Ao norte do rio São Francisco, por exemplo, temos muita pouca coisa”, ressalta Daniel.
Nessa porção norte do bioma, proporcionalmente menos protegida, estão ecossistemas ameaçados como os brejos de altitude e o próprio Centro de Endemismo de Pernambuco, caracterizado pelo elevado grau de espécies endêmicas, ou seja, que ocorrem apenas ali.
Desafios
Um desafio ainda é conseguir informações georreferenciadas dessas UCs municipais, para que elas possam ser visualizadas a nível espacial de forma mais clara. Esses dados também são úteis para análises mais refinadas, cruzar com alertas de desmatamento e fazer estratégias de conservação mais localizadas. “Como essas UCs muitas vezes estão fora do CNUC nós não conseguimos cruzar isso com outras bases de dados”, comenta Daniel.
“Nossa esperança é que esses dados sejam úteis para pesquisadores desenvolverem análises mais robustas para responderem outras perguntas”, pontua o coordenador de áreas protegidas da SOS Mata Atlântica.
Outras tantas são ainda “de papel”, alcunha dada àquelas áreas protegidas sobre as quais quase nada foi feito além do decreto de criação.
Das 1.530 UCs municipais da Mata Atlântica, apenas 246 possuem Planos de Manejo, o equivalente a 16% do total. O único estado onde mais da metade das UCs municipais possuem Planos de Manejo prontos ou em elaboração é Pernambuco, com 27 das 38 UCs. O segundo melhor estado é Mato Grosso do Sul, com 41,9% das UCs com seus planos elaborados ou em processo.
Nos estados do Piauí, Alagoas, Sergipe e Paraíba nenhuma das UCs municipais possui um Plano de Manejo sequer em elaboração.
Um número ainda menor de unidades de conservação municipais possuem um Conselho instituído – ferramenta pela qual a sociedade civil pode colaborar e participar da gestão. Apenas 235 delas instituíram seus conselhos.
“Do que a gente conseguiu levantar, só 15,4% dessas UCs têm Plano de Manejo e Conselho. Se não tem a sociedade acompanhando, fica difícil ter esse controle. E a esmagadora maioria são APAs, categoria de unidade de conservação que, só com a criação, não traz uma limitação muito grande pro uso do solo. As APAs só dão certo com implementação de Plano de Manejo, zoneamento e Conselho. E esse é o maior desafio, fazer o município se empoderar da gestão de unidades de conservação do território”.
O coordenador da SOS Mata Atlântica aponta que um caminho é apresentar as áreas protegidas não apenas do ponto de vista biológico, mas como uma ferramenta para gestão do uso do solo, que pode prevenir a ocupação de áreas de risco, assim como de adaptação às mudanças climáticas e para resiliência hídrica. “É mostrar pros municípios que esse é um caminho para gestão do território”, acrescenta.
Responsável pelo levantamento das UCs municipais, a Fundação SOS Mata Atlântica irá lançar uma base de dados que permita a visualização, por município, de onde as unidades estão distribuídas. A localização não será precisa, pela falta dos dados georreferenciados da maioria dessas UCs, mas permitirá que a sociedade enxergue essas unidades.
“Nossa intenção não é competir com o CNUC, mas a sociedade civil não pode cadastrar as UCs, então precisamos que os órgãos públicos tomem essa liderança e a gente precisa pressionar para que isso aconteça”, completa o coordenador de áreas protegidas.
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Nós das áreas rurais de Morretes/PR, sofremos com a ocupação irregular do solo para especulação imobiliária. Embora o Módulo rural mínimo para registro seja 2 hectares (20 mil m2), proprietários sem matrícula georeferenciada estão parcelando suas áreas em lotes de 2 mil m2 e vendendo. Os novos proprietários querem trazer energia e água encontram o problema da infraestrutura inexistente. Não há quem proíba, multe ou exige que o plano diretor do município seja cumprido. Ainda vivemos a pré história em termos de ocupação do solo no Estado do Paraná!
O grande problema é que essas unidades também sofrem ataques de todos os lados , e o município não tem força ou muitas vezes se aliam aos agressores. Aqui em Rio das Ostras, aconteceu do prefeito se aliar aos interesses da especulação imobiliária. E fazer revisão de plano de manejo para permitir construção de prédios DENTRO da unidade. Então, essas unidades municipais estão cada vez mais ameaçadas.
Curitiba tem 120 unidades de conservação, logo o número mencionado não corresponde
Oi Olaf, o número mencionado refere-se às unidades de conservação municipais, não o total de UCs do município. No caso das RPPNs, só foram contabilizadas nesse número aquelas reconhecidas em âmbito municipal.