Após ser exonerado do ICMBio, voltei ao Itamaraty, que me enviou para a Embaixada do Brasil em Tirana, na Albânia. Coincidentemente, alguns dias antes de embarcar, li uma matéria no caderno de viagens de O GLOBO sobre a trilha de longo curso Peaks of Balkans. Trata-se de um trajeto de 192 km que costura quatro parques nacionais em três países com longa história de conflitos: Albânia, Montenegro e Kossovo, este último não reconhecido oficialmente pelo Brasil.
Com uma elevação mínima de 670 metros (próximo à cidade de Cerem, na Albânia), uma altitude máxima de 2.290 metros (junto à fronteira da Albânia com o Kossovo) e um desnível cumulativo de aproximadamente 9.800 metros a Peaks of Balkans é uma caminhada para gente grande, exige disposição e preparo físico. O sítio eletrônico oficial da trilha recomenda que seja percorrida em um período que vai de dez a treze dias.
Naturalmente não poderia vir à Albânia sem pisar na Peaks of Balkans, o que acabei fazendo logo que as neves derreteram, no primeiro fim de semana de agosto. Antes de ir, contudo, me reuni com Ismail Beka, da GIZ na Albânia. A GIZ é a agência de cooperação internacional da Alemanha, em cuja carteira a Trilha Peaks of Balkans é um dos principais projetos. Beka é o responsável por sua implementação.
Fiquei muito bem impressionado com o projeto, que ademais de ligar o mosaico internacional de parques nacionais, também une as áreas mais depauperadas de três países pobres da Europa (Albânia, Kosovo e Montenegro). Salta aos olhos sua dimensão geradora de emprego e renda. Como estímulo à implementação da trilha foi criada uma linha de crédito de pequenos empréstimos a fundo perdido para que os moradores do entorno da trilha montem pequenas pousadas em suas casas (quarto de dormir, roupa de cama, toalhas, banheiro com privada e chuveiro de água quente, geladeira, refeitório com mesa e cadeiras, pratos e talheres, além do estímulo a hortas e galinheiros). Com esse incentivo cerca de cinquenta novas opções de hospedagem e outros pequenos negócios já foram criados ao longo da Peaks of Balkans.
Outra vertente do Projeto, tocada por uma fundação local, é de capacitação com um componente de educação ambiental, para manter a qualidade da trilha e arredores (não só a manutenção da trilha em si, mas também reflorestamento e gestão de resíduos) e outro de ensino do idioma inglês. O segundo componente é voltado para a população jovem e inclui treinamento em guiagem, resgate e primeiros socorros, entre outras disciplinas. Ambas as iniciativas são excelentes e perfeitamente replicáveis no Brasil.
Além de suas dimensões ambiental e social, a trilha tem o objetivo secundário de ser uma linha pacificadora e de dar nova vida econômica a uma área antes conflagrada pelas guerras dos Balcãs. Por isso liga comunidades previamente inimigas, estimulando-as a cooperar em nome do bem comum. Sua divulgação tem sido feita por meio de um website bem estruturado, que permite ao usuário identificar e contatar diretamente serviços como pousadas, táxis e pontos de abastecimento de suprimentos, pela participação em feiras de turismo (Milão, Berlim, Paris) e por uma política consistente de trazer jornalistas para visitá-la.
O projeto coordenado pela GIZ tem como parceiros os Serviços de Parques Nacionais albanês, kosovar e montenegrino, todas as prefeituras cujos territórios são atravessados pela trilha e diversas ongs e fundações. Em seu primeiro ano de existência já atraiu quinze mil turistas estrangeiros (estamos falando de uma região que, como as favelas do Rio, é conhecida internacionalmente por sua violência), que representa um aumento de 70% em relação ao ano anterior.
Iniciei a jornada em um sábado na pequena vila de Valbona, nos alpes albaneses. Como o deslocamento de Tirana até ali tomou grande parte do dia, a caminhada só começou às 14 horas, com o sol na cabeça. Foram quinze quilômetros e quase novecentos metros de desnível até a Vila de Theth. Nessa parte do percurso, a Peaks of Balkans atravessa os Parques Nacionais Vale do Valbona e Theth.
Foram cerca de cinco horas de suor intenso, vistas espetaculares e prazer indescritível. Em matéria de beleza, a trilha não deixa nada a dever a nenhuma outra que eu jamais tenha percorrido. A melhor palavra que consigo encontrar para a paisagem é “grandiosa”.
De Valbona… (Clique nas imagens para ampliá-las) | |||
Em Theth, meu companheiro de cabritada Henrique Calil e eu, nos hospedamos na estalagem de Pavlin Polia, nascido e criado na região. Theth é uma aldeia com cerca de 100 casas de madeira construídas em estilo arquitetônico típico dos alpes albaneses. Pavlin e sua esposa nos receberam com uma lauta refeição típica, regada a vinho balcânico. Durante o repasto conversamos muito sobre a Trilha.
Pavlin relata que a implementação da Peaks of Balkans contou com grande envolvimento dos moradores: “fizemos a manutenção das trilhas e sua sinalização. Pessoalmente, eu sinalizei mais de 40 quilômetros”. Segundo ele, inicialmente, a maioria dos moradores estava muito descrente de que a Trilha pudesse aliviar a pobreza local: “Ninguém acreditava que alguém quizesse vir aqui para subir essas montanhas quase verticais. Quando os primeiros turistas começaram a aparecer vindos de Valbona, as pessoas perguntavam: quem os está pagando para fazer esse sacrifício? Estão sendo forçados? No país deles o regime ainda é comunista”? Mesmo o Governo teve dificuldades em entender que o montanhismo é uma atividade de recreação com muitos adeptos. Pavlin conta rindo que, na inauguração, o representante da Prefeitura de Shkoder, município ao qual Theth pertence, fez um belo discurso, cheio de promessas: “hoje estamos inaugurando apenas essa singela trilha, mas esteja o povo de Theth tranquilo que esse governo envidará todos os esforços para que em breve possamos substituí-la por uma bela estrada”!
Passados cerca de três anos do início do Projeto a atitude é outra. O constante afluxo de alemães, italianos, tchecos e… até brasileiros, provou que a Peaks of Balkans é sustentável. Pavlin conta que sua renda praticamente triplicou no período. Quase todos os moradores aderiram ao projeto: “poucos são aqueles que não construíram pelo menos um quarto de hóspedes em casa”.
Sob o aspecto ambiental, também houve ganhos: “os turistas vêm porque querem ver a nossa natureza. Reclamam quando deparam com lixo ou com caçadores, mostram indignados as fotos que tiraram de áreas recém desmatadas. Nas últimas reuniões da cominidade começamos a discutir seriamente como dispor de nossos residuos de uma maneira mais apropriada. Também começou a pressão para que a caça e o desmatamento acabem. Já há moradores denunciando os infratores para a administração do Parque. Antes a maioria dos habitantes era contra a Unidade de Conservação, hoje grande parte da comunidade entende que a manutenção de suas belezas pode ser o nosso melhor ganha pão”.
…a Teth (Clique nas imagens para ampliá-las) | |||
Domingo o dia foi mais longo. Caminhamos cerca de 21 quilômetros em oito horas. No trajeto, além das vistas desabridas, passamos por geleiras em rápido descongelamento, lagos alpinos, campos cobertos por uma explosão de flores e muitas casamatas. Essas últimas são uma marca registrada da Albânia. Conta-se que o regime comunista de Enver Hoxha construiu cerca de 700 mil delas. Talvez a estimativa seja exagerada, mas é certo que essas feiosas construções de concreto podem ser encontradas em toda parte, incluindo os lugares mais improváveis do território albanês.
Terminamos a cabritada na vila montenegrina de Vusanje, onde pegamos um táxi de volta para Shkoder, onde havíamos deixado nosso carro. Foi viagem cara. Nos custou cem euros. O motorista não tinha do que reclamar: “desde que a trilha foi inaugurada tenho feito cinco a seis corridas dessas todo verão. Raro é o turista que faz de uma só pernada os 192 quilômetros da Peaks of Balkans. O mais comum é percorrem de dois a quatro dias de cada vez. Os caminhantes mais velhos (acho que ele se referia a mim… Henrique Calil tem 25 anos…) têm dinheiro mas não dispõem de tempo. Me contratam para levá-los de volta ao local onde deixaram seus automóveis”.
Na fronteira, o policial de plantão folheou nossos passaportes, olhou nossas caras, folheou nossos passaportes de novo… não encontrava os carimbos de entrada em Montenegro. Finalmente coçou a cabeça e perguntou: “alpinisti?”. Quando respondemos afirmativamente, nos devolveu os documentos de viagem, abriu um sorriso e, em um inglês esforçado disse: “voltem sempre”.
Pretendo aceitar o convite!
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