As obras bilionárias do chamado sistema produtor São Lourenço, para matar a sede da grande São Paulo, são uma decorrência da falta de cuidado com as florestas que protegem os mananciais, um erro repetido historicamente que a regulamentação do novo código florestal no Estado de São Paulo quer perpetuar para sempre através da chamada “Lei do Desmatamento”, um agrado a proprietários rurais que não cumpriram a lei florestal e agora não seriam mais obrigados a cumprir.
Lembram da insana euforia com as obras para a Copa do Mundo de Futebol no Brasil, no recém finado ano 2014? E dos superfaturamentos devidamente arranjados legalmente? Tudo tinha como grande e inabalável justificativa um tal “legado”. No caso, o termo legado usado como bens de infraestrutura moderna, aeroportos, sistemas de trens urbanos e metrôs, rodovias e, claro, estádios, que seriam a herança ou saldo positivo do evento. Em boa medida o legado ainda não aconteceu, quer porque não foi entregue a tempo, quer porque custou caro demais e a conta ficou pendurada para ser paga. Sem contar que ainda pode dar muita dor de cabeça política e ser adjetivado de legado “maldito”, a imaginar onde os desdobramentos das investigações da operação lava-jato, em relação a Petrobras, ainda podem levar no que tange a obras públicas.
E o que esse legado tem ver com um “Legado das Águas”? Nada e tudo ao mesmo tempo. Vejamos.
Sistema São Lourenço
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Possivelmente, a mais importante dessas obras é o chamado Sistema Produtor São Lourenço. Desenhado e comandado pela SABESP, a estatal paulista de águas e saneamento, dito sistema será implementado em formato PPP (Parceria Público Privada) por consórcio que une Camargo Correa e Andrade Gutierrez. Deu no site G1: “A presidente da República, Dilma Rousseff, e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, assinaram nesta quinta-feira (4/12), em cerimônia no Palácio do Planalto, contratos no valor de R$ 3,2 bilhões para obras de abastecimento de água e mobilidade urbana no estado. De acordo com o Ministério das Cidades, do valor total previsto nos contratos, R$ 2,6 bilhões são referentes a obras do Sistema Produtor São Lourenço, responsável por parte do abastecimento de água na região metropolitana de São Paulo”. O mesmo G1 havia informado antes (21/08) que “a PPP formada pela construtoras Andrade Gutierrez e Camargo Correa iria custear integralmente todo o investimento de R$ 2,21 bilhões da obra…” e que “com o investimento, a Sabesp vai captar água na represa Cachoeira do França, em Ibiúna, que é formada pelo Rio Juquiá. Além disso, serão instalados também uma estação de tratamento de água, estações de bombeamento, 83 km de adutoras (grandes tubulações), além de reservatórios para armazenar um total de 110 milhões de litros de água. O novo sistema produtor será interligado aos outros oito que abastecem a Grande São Paulo. Segundo o governo de São Paulo, será a maior obra de ampliação do sistema de fornecimento de água da região em 20 anos”. Obras, obras, obras!
À parte detalhes como as diferenças de valores divulgados e quem pagará a conta, há de se perguntar se de fato acontecer, quando passará à realidade e por quanto tempo paulistas e paulistanos desfrutarão do “legados de obras” com eficiência e eficácia. Afinal, este é um investimento em infraestrutura de engenharia que, por todos os dados disponíveis, desconsidera completamente a infraestrutura natural da qual depende.
O verdadeiro “Legado das águas”
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É aqui, então, que entra, sim, um legado pra valer, que contou não apenas com um idealizador, mas um efetivo realizador, que não colocou placas, não fez inauguração (afinal, reconhecia não ser obra dele como empreendedor) e nem pediu votos em troca da iniciativa. Trata-se do significativo território, superior a 50 mil hectares, adquiridos faz mais de cinquenta anos, pelo visionário empresário Antônio Ermírio de Moraes. Coberto de florestas, Mata Atlântica dda melhor qualidade, em boa extensão primária, esse território foi incorporado ao patrimônio da corporação exclusivamente para proteger as bacias hidrográficas que alimentam as usinas hidrelétricas da Votorantim: França, Fumaça, Barra, Jurupará, Porto Raso, Alecrim, Serraria e Salto do Iporanga. Pequenas em termos de reservatórios, todos bem encaixados na topografia acidentada, o conjunto gera empregos de forma parcimoniosa, energia de forma generosa e significativa arrecadação de ICMS aos municípios de Tapiraí, Miracatu, Juquiá, Juquitiba e Ibiúna, além de água de qualidade em abundância à jusante. Água que falta na Grande São Paulo.
Parte do território original, um pouco mais de dois mil hectares, foi cedido em doação ao governo do estado de São Paulo no processo de estabelecimento do Parque Estadual do Jurupará. Outras partes, descontínuas, que totalizam cerca de 18 mil hectares protegem os reservatórios das usinas de França, Fumaça, Jurupará e Salto do Iporanga. Por fim, mais de 30 mil hectares de terras contínuas, onde estão as represas de Barra, Porto Raso, Alecrim e Serraria, representando hoje, possivelmente, a maior reserva privada de Mata Atlântica efetivamente protegida, integram o que o Grupo Votorantim denominou “Legado das Águas“.
É esse território, de inestimável valor ecológico, a julgar pela fabulosa biodiversidade que encerra e onde facilmente se encontram espécies botânicas como os simbólicos e raros jequitibás, jatobás, perobas e ipês, além de animais também raros e ameaçados como muriquis, onças parda e pintada e cachorro-do-mato-vinagre, que vai abastecer de água o “Sistema Produtor São Lourenço”. Diferentemente de São Paulo e região metropolitana, ali tem água porque tem floresta, e tem floresta porque, um dia, mais de meio século atrás, Antônio Ermírio entendeu que precisava delas para garantir a geração de energia para suas indústrias. E agiu.
O problema e as soluções
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A água é hoje escassa em São Paulo porque não foram protegidos, na devida medida, as florestas dos mananciais que abastecem as cidades. E, paradoxo maior, não bastasse o caos já instalado, o prefeito da capital paulista altera limites de parques municipais, reduzindo-os, para legalizar invasões de sem-teto, potencializando o desastre hídrico. Justificativa: dar casa para quem não tem casa – mesmo que sejam casas onde no futuro venha faltar água para beber ou onde os residentes venha sofrer com o excesso de água de inundações, como ocorre em outras áreas de mananciais de São Paulo com invasões consolidadas. A lógica é simples: destruir mais um pouco os mananciais, picotar parques, mas fazer obras! Falta água em São Paulo, porque sobram obras e faltam florestas, e isso estranhamente parece não ser notado.
Em 2006 a Fundação Grupo Boticário, com apoio da Mitsubishi Foundation, implantou o Projeto Oásis São Paulo, na região da represa de Guarapiranga. Objetivo: proteger os mananciais através da preservação das suas florestas via pagamentos aos proprietários de imóveis que fizessem mais do que o mínimo legal obrigatório. Números modestos e resultados impressionantes. Cinco anos depois, em 2011, com 14 propriedades contratadas variando de 5 a 269 hectares, o projeto abrangia 747,7 hectares de áreas naturais protegidas, sendo 257 ha de áreas de preservação permanente que incluíam 101 nascentes, e 45,6 km lineares de rios protegidos, por apenas R$ 1.156.000,00 de prêmios pagos acumulados. Não obstante tais resultados, o projeto não teve adesões de empresas e organizações locais e nem foi adotado como política pública estadual. Todavia, inspirou e serviu de modelo para “projetos oásis” em sete diferentes municipalidades de seis estados (Paraná, Minas Gerais, Santa Catarina, São Paulo, Tocantins e Mato Grosso do Sul). Florestas para água!
Código Florestal desastroso
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Do “legado das obras” ao “Legado das Águas” há lições para se aprender. E a mais importante delas é sobre preservar e restaurar a infraestrutura natural, que tem sido historicamente desrespeitada e agora cobra seus dividendos. Precisamos de florestas em São Paulo, estado onde a Assembleia Legislativa aprovou o projeto de lei PL219/14, apelidado de “Lei do Desmatamento”. Ele permite que quem não cumpriu a lei antes não seja obrigado a fazê-lo agora, podendo compensar as florestas devidas em São Paulo em locais distante como a remota Amazônia, florestas que o estado desesperadamente precisa hoje.
Seguindo assim, sem aprender com as lições do passado e do presente, não demorará e São Paulo necessitará de um sistema produtor “Paraná”, um sistema produtor “Araguaia, e até um sistema produtor “Paraguai”, neste caso talvez adaptando os tubos e as estações de bombeamento do gasoduto Bolívia-Brasil para trazer para São Paulo água do Rio Paraguai, na nossa distante fronteira Oeste, conforme me comentou em um misto profecia e chacota um velho amigo pantaneiro. Assim, para que o sistema produtor São Lourenço seja um legado de águas além de obras, Governador Alckmin, use seu poder institucional e vete a perniciosa norma legal aprovada pela Assembleia Legislativa que, supostamente, beneficia poucos e certamente prejudica a absoluta maioria da população do seu estado.
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Campanha pelo veto do PL219/14
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