É fácil perder a perspectiva das coisas quando se acompanha muito de perto a negociação do acordo do clima. Lá dentro, tudo o que importa são os centímetros de texto que os negociadores conseguem “limpar”, ou seja, tirar de dentro dos colchetes que traduzem desacordo. Para que isso aconteça, frequentemente é preciso recorrer ao mínimo denominador comum, ou seja, produzir um acordo menos incisivo do que algumas partes gostariam. É o que pode acontecer na conferência de Paris com diversos temas.
Os diplomatas teriam feito bem em assistir a uma série de conferências de cientistas do clima no próprio pavilhão da COP21 durante a primeira semana de negociações. Nelas os pesquisadores trouxeram alguns recadinhos do mundo real para Paris. E o que o mundo real está dizendo é que o Ártico pode ficar sem gelo no verão em cinco anos, que parte da Antártida já entrou em colapso irreversível e que, para completar, nós provavelmente temos menos “orçamento” de carbono para queimar do que se imagina hoje.
Esta última questão tem relevância direta para o texto em discussão nas salas de reunião do parque de Le Bourget, onde acontece a COP.
É sabido que as INDCs, as metas nacionalmente determinadas apresentadas pelos países antes do início da conferência, são incapazes, em seu conjunto, de impedir que o aquecimento global fique abaixo dos 2oC neste século, limite acordado como “seguro” com base em evidências científicas. Dependendo de para quem se pergunta, cumprir as INDCs nos daria um mundo de 2,7oC a 3,5oC mais quente (de toda sorte, seria melhor do que não cumpri-las, caso em que a temperatura ultrapassaria 4oC).
Para fazer a conta fechar, é necessário aumentar a ambição das metas do acordo o mais rápido possível e com a maior frequência possível. Países como o Brasil e os EUA têm defendido que esse ajuste aconteça a cada cinco anos.
Ocorre que, como as emissões do mundo estão crescendo muito depressa, apesar da desaceleração observada em 2014, alguns estudos têm mostrado que deixar para fazer o primeiro ajuste apenas em 2030 tornaria os cortes subsequentes caros demais e profundos demais para serem viáveis dentro da trajetória de 2oC. O que esses estudos têm sugerido é que o reajuste seja feito a partir de 2020.
Não é o que Paris está cozinhando. O texto preliminar entregue aos ministros para a fase final de decisões da COP21, que começa esta semana, fala em uma revisão global a partir de 2024, embora deixe cada país livre para aumentar sua ambição individual quando quiser. Embora o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, tenha feito uma referência à revisão em 2020, a data ainda está em debate.
Entra em cena Andy Wiltshire, pesquisador do Met Office, o serviço de meteorologia e climatologia do governo do Reino Unido. Na última terça-feira, ele apresentou num evento paralelo da COP21 dados que indicam que mesmo a revisão em 2020 pode estar baseada em suposições otimistas demais.
Wiltshire é especialista em modelar orçamentos de carbono, ou seja, quanto CO2 ainda é possível queimar para manter a temperatura da Terra em determinados limites. O IPCC, o painel do clima das Nações Unidas, mostrou em seu último relatório de avaliação, de 2013, que a humanidade pode emitir no máximo mais 1 trilhão de toneladas de gases de efeito estufa se quiser ter mais de dois terços de chance de ficar no limite de 2oC. Às taxas atuais de emissão, teremos estourado o orçamento por volta de 2035.
O que o britânico mostrou foi que essa cifra está provavelmente superestimada: ela exclui da contabilidade o carbono que está sendo emitido pelo derretimento de solos congelados no hemisfério Norte, o chamado permafrost. Esse degelo, por sua vez, ocorre em reação ao aquecimento já observado hoje, que é mais intenso nas altas latitudes.
“Cerca de 1.446 gigatoneladas de toneladas de carbono [5,2 trilhões de toneladas de CO2] estão em solos permanentemente congelados na região do permafrost. Esse carbono está sujeito a ser emitido se o permafrost descongelar”, afirmou Wiltshire.
Segundo ele, existe também uma contabilidade inflada do poder dos ecossistemas de sequestrar carbono da atmosfera e fixá-lo na biomassa das plantas. Para fazer isso, as plantas precisam de nitrogênio em suas raízes. “Nossas estimativas atuais provavelmente superestimam o nitrogênio disponível”, disse o cientista.
Somados, os dois processos possivelmente respondem hoje por 270 bilhões de toneladas de CO2 já lançado no ar e não contabilizado no orçamento de carbono do IPCC. Projetados no tempo até o Acordo de Paris entrar em vigor, eles podem significar até 360 bilhões de toneladas de CO2 equivalente. “Isso equivale a dez anos de emissões”, calculou Wiltshire. Ou seja, se o primeiro reajuste global das INDCs passar a valer em 2025, a humanidade já poderá ter esgotado seu orçamento de carbono e saído da trajetória dos 2oC.
QUESTÃO DE MASSA
Em Paris também foram apresentados estudos novos sobre o Ártico, primeira vítima do aquecimento global. O francês Jean-Claude Gascard, do CNRS (Centro Nacional para a Pesquisa Científica, o equivalente ao CNPq da França), mostrou a uma plateia composta por delegados, cientistas e nativos da região dados de satélite que indicam uma redução de 75% no volume da camada de mar permanentemente congelado que recobre o oceano Ártico.
Há vários anos os cientistas vêm monitorando a redução da extensão mínima do gelo marinho no Ártico no verão. O mar ali está derretendo cada vez mais cedo e recongelando cada vez mais tarde, o que tem feito alguns grupos de pesquisa projetarem que no meio do século o polo Norte possa estar sem gelo por alguns dias no verão.
Ocorre que o gelo é um sólido tridimensional: além de extensão, ele também tem volume, dado pela extensão e pela espessura. E dados de um modelo de volume construído pela Universidade de Washington a partir de informações de satélite, o Piomas, sugerem que o volume está declinando mais rápido do que sua extensão. “O volume, ou massa do gelo marinho, declinou 75% no verão”, disse Gascard.
Até agora os cientistas vinham pensando que esse declínio se devesse sobretudo ao chamado feedback do albedo do gelo: como o gelo é branco, ele reflete a maior parte da radiação solar de volta ao espaço. Se o gelo derrete um pouco, abre mais espaço para o mar escuro, que absorve a maior parte da radiação, ajudando a esquentar mais a região, derreter mais gelo, expor mais mar e assim por diante.
O que Gascard e colegas vêm observando, porém, é que, embora as reduções na extensão do gelo marinho venham acontecendo no verão, as perdas de volume ocorrem mais rápido no inverno – três vezes mais rápido. Ninguém sabe explicar direito por quê, mas o pesquisador francês acha que mudanças no regime de ventos do Ártico, o chamado vórtice polar, estão por trás do fenômeno.
O vórtice é um cinturão permanente de ventos fortes que funciona como uma espécie de isolante climático do polo, impedindo que o ar quente das latitudes mais baixas penetre na região no inverno. Como ele depende do contraste de temperaturas entre o polo e o trópico e esse contraste tem ficado menor com o aquecimento global, os ventos estão mais fracos. O resultado, teoriza Gascard, é que há mais ar subpolar soprando para a bacia do Ártico e derretendo gelo.
“O gelo no verão vai acabar em algum momento. Segundo o Piomas, em 2020 nós poderemos estar livres de gelo por alguns dias no verão”, disse o pesquisador.
COLAPSO
O degelo do oceano Ártico preocupa pelas perturbações que possivelmente já esteja causando no manto de gelo da Groenlândia e nos padrões meteorológicos de todo o hemisfério Norte. Mas, em relação ao aumento do nível do mar, uma das consequências mais temidas da mudança climática, nada tira mais o sono dos cientistas do que a desestabilização da Antártida. Os estudiosos temem que a parte oeste do manto de gelo antártico possa colapsar, o que elevaria o nível global dos oceanos em pelo menos três metros.
Uma mesa-redonda organizada em Paris pelo Conselho Científico para Pesquisa Antártica, o Scar, sugeriu que isso possa estar ocorrendo.
“O ponto de virada já é uma realidade”, disse a glaciologista Ricarda Winklemann, do Instituto de Pesquisa de Impactos Climáticos de Potsdam, na Alemanha.
Winklemann é autora de um estudo recente mostrando que, se a humanidade queimar todo o estoque disponível de combustíveis fósseis, a Antártida inteira derreterá nos próximos séculos, elevando o nível do mar em até 60 metros.
Esse cenário extremo por enquanto está descartado. No entanto, uma série de estudos publicados depois do último relatório do IPCC tem mostrado que as plataformas flutuantes de gelo que servem como tampão ao rápido deslizamento do manto de gelo do oeste antártico tiveram uma aceleração de 70% em sua perda de gelo entre 2003 e 2012, em comparação com o período 1994-2003. A perda dessas plataformas teria efeito similar ao de explodir uma represa: toda a água contida a montante vazaria.
Em um setor específico da Antártida, há sinais de que grandes geleiras já estão em colapso. Na região do mar de Amundsen, que abriga quatro grandes glaciares, estudos recentes têm mostrado que as geleiras estão derretendo de baixo para cima, devido a uma possível combinação entre mudança do regime de ventos e água mais quente penetrando por baixo das massas glaciais. Como essas geleiras têm sua base abaixo do nível do mar, e essa base fica mais profunda na direção do interior do continente, a disparada de um processo de instabilidade nessa região tende a ser irreversível na escala de milênios.
“A instabilidade provavelmente já foi disparada no setor do mar de Amundsen”, disse Winklemann ao OC. “O mecanismo de instabilidade é muito bem conhecido, a questão agora é saber quão rápido e será e quanto aumento de nível do mar podemos esperar.” Novas estimativas, também posteriores ao IPCC, falam em um limite superior de até 1,5 metro neste século.
“A maior parte do aumento do nível do mar deve ocorrer após 2100”, diz a alemã. “Mas precisamos pensar no compromisso de longo prazo.”
Veja aqui toda a cobertura da COP21, uma parceria com o Observatório do Clima |
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