Em novembro de 2014, o Congresso Mundial de Parques realizado em Sydney, Austrália, abriu sob muitas expectativas negativas. De um lado, a recente reunião da Convenção sobre Diversidade Biológica havia recém-lançado o quarto Relatório Global Sobre Biodiversidade mostrando um cenário absolutamente sombrio sobre a conservação da Natureza no planeta, mostrando que no ritmo atual as extinções continuarão, os ecossistemas seguirão se deteriorando (e com eles a capacidade de suporte da vida humana na Terra), e as famosas Metas de Aichi não serão cumpridas até a data-limite de 2020. De outro, as alterações climáticas e seus impactos estão já ficando evidentes na maioria dos ecossistemas, e as negociações ora em curso para tentar chegar a um acordo global de redução das emissões de carbono não estão levando a compromissos efetivos que reduzam as emissões a tempo de evitar desastres generalizados na estrutura, composição e integridade funcional dos ambientes naturais.
Mesmo assim, o Congresso terminou com notas de otimismo, com diversos países se comprometendo a ampliar suas áreas naturais protegidas, diversos mecanismos de financiamento, fiscalização e implantação de parques e reservas sendo desenvolvidos e postos em prática, e recomendações ambiciosas como a de se decretar ao menos 30% de áreas marinhas e costeiras como proteção integral para assegurar que os oceanos sigam vivos.
A pergunta é como concordar com esses tons de otimismo quando vemos ao nosso redor um cenário de devastação ambiental galopante, de desapreço às áreas naturais protegidas e, ao menos aqui na nossa lastimosa Banânia, de governos francamente hostis à ideia de ampliar as áreas destinadas à proteção integral da Natureza e totalmente analfabetos quanto ao caráter essencial dos serviços ambientais que elas prestam para a manutenção de atividades econômicas e da qualidade de vida no país.
Ao menos na área marinha, o otimismo tem endereço certo e conhecido: as nações insulares do Pacífico. Lá, numa vasta área que se estende por metade do globo e onde os habitantes de porções ínfimas de terra governam espaços marinhos jurisdicionais maiores que muitos países continentais, estão acontecendo os maiores progressos na criação e implementação de vastas áreas marítimas protegidas, tendo por base o reconhecimento de sua função vital para a sustentabilidade da pesca ao seu redor; os benefícios econômicos diretos dos usos não-extrativos como o Mergulho e Ecoturismo permitidos em seu interior; e o apoio decidido de grandes ONGs financiadoras e de empresas de alta tecnologia para assegurar que, ao contrário dos nossos tristes “parques de papel”, esses santuários gigantescos sejam efetivamente salvaguardados contra as máfias internacionais da pesca industrial.
Para nós, que estamos acostumados a uma conjunção perversa de governantes inimigos da conservação, lobbies mafiosos da indústria pesqueira insustentável e do petróleo investindo pesado em impedir a criação de mais parques e reservas marinhos, e “comunidades tradicionais” muitas vezes lideradas por bedéis de políticos nas famigeradas “colônias de pesca” sendo açulados contra toda e qualquer iniciativa de criação de Unidades de Conservação de Proteção Integral, é difícil imaginar que essas áreas não apenas sejam o produto de líderes políticos esclarecidos, mas também contem com plena legitimidade social, apoiadas por populações insulares inteiras. Ver a expressão dessa legitimidade nas discussões havidas na CoP12 da CBD e no Congresso Mundial de Parques foi inspirador.
Bom exemplo no Pacífico
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Qual o segredo? Simples. No Pacífico, lida-se com comunidades tradicionais verdadeiramente aferradas a seu modo de vida local, e que ao ver seus recursos naturais diminuírem, não podem valer-se de bolsas-esmola, seguros-defesos, e outras benesses estatais. Em boa parte das ilhas e atóis, as pessoas são conscientes dos próprios erros de gestão, e das ameaças que a pressão vinda das frotas pesqueiras internacionais representam ao seu modo de vida. Também são conscientes dos imensos benefícios que podem advir dos usos não-extrativos de seu patrimônio natural, sendo o mergulho recreativo um dos que mais aporta emprego e renda e que motivou em boa parte a decisão de Palau de primeiro ter criado um santuário de tubarões, proibindo totalmente sua pesca, e agora dar proteção integral a 80% de todas as suas águas jurisdicionais.
Seguindo a liderança de Palau, cujo atual Presidente, Tommy Remengesau, Jr., tem sido por vários anos a maior liderança política global a favor da conservação marinha, vários outros países insulares estão seguindo o mesmo bom curso. Kiribati criou a Área Protegida das Ilhas Phoenix, com mais de 408.000 km2, hoje reconhecida como Patrimônio Natural Mundial; as Ilhas Cook estão implementando um santuário marinho com mais de 1 milhão de quilômetros quadrados (km2); a Nova Caledônia, possessão francesa, criou este ano um parque marinho com 1,3 milhão de km2; os ilhéus de Pitcairn estão exigindo do governo britânico agilidade para a criação de um Santuário Marinho apoiado por toda a comunidade; em Yap, Federação da Micronésia, um santuário de Raias-Manta criado em 2008 com o apoio dos empresários de mergulho locais está sendo considerado para uma enorme expansão e transformação em Patrimônio Mundial, um processo liderado pelo Manta Ray Bay Resort/Yap Divers; e aqui, no Pacífico oriental, o Chile aderiu à tendência criando o Parque Marinho de Motu Motiro Hiva, com 150.000 Km², e já anunciou a intenção de expandir suas áreas marinhas protegidas. Somando-se a isso, o governo Obama expandiu o Monumento Nacional Marinho das Ilhas Remotas do Pacífico para 1.269.000 Km², lembrando que até o troglodita republicano George W. Bush contribuiu decisivamente para a conservação marinha, criando o Monumento Natural Marinho de Papahānaumokuākea, no noroeste do arquipélago do Havaí, abrangendo mais de 392.000 km².
E a fiscalização? Difícil, mas factível. Sabe-se bem que os governos nacionais desses países insulares têm dificuldades logísticas e econômicas para controlar seus imensos territórios marítimos, mas a conjunção de grandes aportes financeiros e tecnologia de ponta está prestes a resolver esse desafio. Grandes instituições ambientalistas como a Pew e a Conservation International, em colaboração com iniciativas regionais como o Programa Regional de Meio Ambiente do Pacífico e o Desafio da Micronésia, estão aportando recursos para a construção de programas específicos de implementação das grandes reservas marinhas. Já o Google, esse ubíquo gigante, em conjunto com a ONG Sky Truth, está desenvolvendo uma impressionante ferramenta interativa de monitoramento da pesca global, permitindo aos governos controlar e sancionar quem adentra suas águas para pescar irregularmente. O sistema já está sendo testado na prática e os resultados mostram que dá certo. Além dele, o desenvolvimento célere de drones e mini-submarinos não-tripulados de pesquisa e monitoramento já antevê que a fiscalização ambiental marinha muito em breve será feita usando pouca gente, com custo relativamente baixo, protegendo áreas antes inviáveis de serem controladas adequadamente.
Papel(ão) brasileiro
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Onde isso deixa o Brasil? Na rabeira, como de costume. Apesar dos anúncios oficiais pomposos sobre supostos investimentos na criação de novas áreas protegidas, sequer saiu a muitíssimo necessária ampliação do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, vitimada por um conluio indecente entre acadêmicos recalcados e “líderes dos pescadores” a serviço, no fundo, dos esquemões da indústria do petróleo no sul da Bahia e Espírito Santo. O Arquipélago de São Pedro e São Paulo, parte da APA de mesmo nome e integrante de um Sítio do Patrimônio Natural Mundial, que deveria ser uma Reserva Biológica pela sua imensa importância para a biodiversidade marinha regional, segue sendo estuprado pela pesca industrial, nas barbas das autoridades navais, ambientais e científicas. E novas áreas marinhas de proteção integral, apontadas há anos pelas definições oficiais de áreas prioritárias para a conservação e com processos de criação já finalizados há anos, mofam nas gavetas da burocracia brasiliense, por força do diktat palaciano no sentido de não contrariar as máfias pesqueira e petroleira nacionais e estrangeiras.
Seria bom acreditar na recente entrevista da Ministra Izabella Teixeira sobre a prioridade a ser dada à proteção integral na criação de novas Unidades de Conservação, mas mesmo dentro da estrutura ambiental federal há feroz resistência a isso, advinda de uma parte da tribo mambembe dos pseudo-sócio-ambientais que veem a conservação da biodiversidade como anátema para suas teses, ignorantes que são, ademais, dos bons exemplos vindos das verdadeiras comunidades tradicionais do Pacífico.
É outro o vínculo que liga o Brasil ao que está acontecendo no Pacífico, um vínculo sombrio: nossa contribuição pornográfica à continuidade das mudanças climáticas e elevação do nível do mar, tanto pelo desmatamento como pelas emissões de carbono de nosso ineficientíssimo transporte rodoviário e urbano e de nossa geração de energia porca (com mais uma termelétrica a carvão recém-leiloada no Rio Grande do Sul, mais uma vez atendendo a lobbies do atraso). Ao não darmos passos efetivos para reduzir radicalmente nossas emissões de carbono através da adoção de tecnologias limpas e gestão adequada dos sistemas produtivos, e ao enviar delegações às negociações climáticas que arrastam os pés, boicotam e atrapalham a conclusão de um acordo se escondendo atrás do discurso furado das “responsabilidades históricas diferenciadas”, nós estamos literalmente afundando as nações-ilhas do Pacífico que tanto vêm fazendo pela conservação marinha. Tampouco temos contribuído um centavo ou uma linha para ajudá-las a mitigar os impactos das mudanças climáticas, preferindo dar bilhões a ditadores insanos de afinidade ideológica com o partido ora mandante. A cooperação sul-sul tão alardeada pelos propagandistas do regime simplesmente se esqueceu que existem dezenas de países afetados, sim, pela irresponsabilidade climática dos países desenvolvidos, mas também e muito pela nossa.
Conversando em Sydney durante o Congresso de Parques, o presidente de Kiribati, Anote Tong, lamentava que todo o esforço de seu país e seus vizinhos pela conservação, e seus clamores por ajuda contra o cataclisma climático, não vem sendo ouvidos. Eu respondi que, ao contrário, nós cidadãos daqui do outro lado do mundo ouvimos sim. O que precisamos é não apenas ouvir, mas FAZER mais para que o exemplo de conservação marinha das ilhas do Pacífico seja reconhecido e apoiado, e quem sabe um dia imitado, por países como o nosso que se vangloriam de suas “dimensões continentais”, mas que, na dimensão da responsabilidade global para com esta e as futuras gerações, continuam se portando como anões morais.
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