Trinta anos mais um mês. Este é o tempo que levei para voltar a visitar a Masai Mara Game Reserve (Reserva de Fauna Masai Mara) no sudoeste do Quênia, na fronteira com a Tanzânia. Nesta ocasião não vou falar da Reserva. Prefiro falar dos Masai, do que eles eram, do que são e do seu futuro provável. O caso dos Masai é ilustrativo para os que seguem o debate sobre as virtudes que o socioambientalismo atribui aos povos indígenas da América do Sul.
A visão de uma figura humana estática, alta e magra, envolta em uma manta vermelha, apoiada em ângulo característico em um bastão e destacando-se na solidão aparente das savanas do vale do Rift é, inevitavelmente, a de um Masai. Ninguém que não seja um membro dessa nação consegue neste século impactar tanto o visitante de outras latitudes. E de fato, essa atitude não é pose para turistas. Os Masai, apesar das muitas influências a que estão submetidos há quase dois séculos, ainda conservam muitas das suas tradições seculares, dentre outras a sua vestimenta avermelhada para assustar as feras e suas prendas, como o bastão para apoio, o bastão curto para ser lançado, o facão típico e os diversos ornamentos de cabeça, orelha, braços e outros. A lança ficou apenas para as cerimônias. Os homens são mais vistosos que as mulheres, apesar de que elas usam roupa colorida e muitos ornamentos. A nação Masai é muito grande, estimando-se a sua população em mais de 900.000 pessoas. Seu território ocupa parte substancial do Quênia e da Tanzânia. Embora estejam organizados de modo tradicional e até possuam um chefe supremo, também dispõem de um ministro de estado e de representantes na assembléia nacional do Quênia. E, como veremos, tem muito mais. Com efeito, quando se observa os Masai de hoje com mais cuidado e menos emoção e, quando se percorre com olho atento o seu território, se descobre que muita coisa mudou nas últimas três décadas e que algumas aparências enganam.
No caminho de Nairóbi a Mara o território Masai começa apenas quando se chega ao Vale do Rift, ou seja, que as três quartas partes da viagem ocorrem na parte do país que os Masai dominam. Mas, o visitante não necessariamente percebe. Já na última parte da viagem resulta óbvio que se está em país Masai, pois as vestimentas vermelhas dos homens são evidentes demais. A primeira surpresa, particularmente notória para quem visitou a mesma região tempo atrás, é a enorme densidade atual de gente, de aldeias e, especialmente a proliferação do gado. Antes, dificilmente cada aldeia possuía ao redor de 50 vacas, mas agora se observam inúmeros grupos com mais de uma centena de vacas e com quantidades várias vezes maiores de cabras e ovelhas. Inútil é dizer que a vegetação ostenta evidências de sobrepastoreio e que em muitos locais simplesmente apenas subsistem arbustos não palatáveis. As árvores são cortadas intensamente para lenha, cercas, vivendas e alimento. Obviamente todos os cursos de água estão secos forçando os animais a percorrerem dezenas de quilômetros diários para obter um pouco de água lamacenta. Os animais estão visivelmente em mal estado. A fauna selvagem, que antes era comum em qualquer ponto do vale do Rift, hoje tem sumido ou se limita a uma que outra gazela ou zebra. Só subsistem mais animais nas proximidades da Reserva sendo evidente que, até lá, o principal limite para o seu desenvolvimento é a presença de uma população abusiva de animais domésticos. Mas, os Masai ainda assim os aproveitam para desenvolver safáris fotográficos (eles cobram 60 dólares por pessoa, mais gorjeta).
Por se alguém duvidara de que existe abuso de pastoreio na área periférica a Reserva basta entrar nesta para ver que, apesar de ter várias vezes mais fauna dentro que fora dela, a vegetação é mais abundante e diversa. Ainda é verde e bastante saudável e os cursos de água, embora também limitados, são muito mais numerosos que fora da Reserva. Não obstante, comparada ao que se observou trinta anos atrás, a área aparece notoriamente descuidada, com caminhos em péssimas condições, com sinalização antiquada e, sem presença de guarda-parques, embora eles se juntem por dúzias bem armadas nas entradas, quiçá para que ninguém roube os muitos milhares de dólares que coletam a cada dia por conceito de entradas. Os veículos dos visitantes vão por onde bem quiser se acumulado até formar engarrafamentos de trânsito ao redor dos grupos de leões ou de guepardos. Isso, pelo menos, é igual ao que era antes. O que é evidente é que a fauna já não abunda tanto como antanho. Já é quase impossível ver rinocerontes e os grandes predadores, que antes eram tão comuns, são agora raros. Verdade é que nesta segunda visita a região esteve castigada por um considerável atraso das chuvas, mas, isso não é suficiente explicação a ter percorrido trechos de até uma dezena de quilômetros sem ver nem uma triste gazela. O descuido da Reserva, que também cobra 60 dólares por pessoa de qualquer idade por dia, é atribuído pelos guias (que em geral são Kikuyu, ou seja, do tribo que domina o planalto) ao fato de que a Reserva é agora administrada diretamente pelos Masai que conformam praticamente todo o seu pessoal e que usufrutuam da renda derivada do enorme número de visitantes. Alem de mais eles tem participação nas utilidades de todos os hotéis, albergues e campings localizados e, assim mesmo, todo o pessoal destes locais e exclusivamente Masai. O Serviço Queniano de Fauna, que antes administrava a Reserva, teve que se afastar quando foi decidido “devolver” a área aos Masai.
Na entrada da Reserva, a poucos metros das portas desta, existe agora uma grande favela que dispõe não só de vivendas, mas, até de casas noturnas, bares e outros locais que são a antítese do que se espera ver na entrada de um dos locais naturais mais famosos do mundo. Nada de isso existia antes de os Masai terem assumido o controle da Reserva, pois o Serviço Queniano da Fauna o coibia. Os usuários da favela são, obviamente, Masai, quase todos parentes dos chefes da Reserva e dos guarda-parques mais influentes. A corrupção não é exclusiva aos povos mais desenvolvidos do ocidente.
Re-examinado o vermelho das mantas Masai se descobre que ele não é o mesmo de antes. O atual é de vários tonos de vermelho, todos sintéticos e lustrosos, made in China, obviamente. Muitos dos ornamentos têm reflexões estranhas e brilhantes, visíveis a muita distancia de dia e de noite, que só podem provir de materiais que não existiam décadas atrás. A atitude tampouco é a mesma. Perdeu dignidade, o que era uma característica de esse povo e, pelo contrario, ganhou atrativo para o turismo vulgar que agora predomina. Antes, os que às vezes aceitavam que os visitantes observaram suas danças, dançavam para eles mesmos. Eram, em geral, homens maduros e seus movimentos inspiravam respeito alem de admiração. Hoje, bandos de jovens disfarçados chegam aos hotéis na hora da janta e pulam ritmicamente em ordem, mais sem sentido e após uns quantos minutos de saltos e gritaria, estendem no chão o conteúdo de sacos recheios de objetos feitos em serie para venda. Eles são cuidadosos em não deixar os hospedes fugir sem passar pelo bazar. Na hora de vender, todos eles, sejam velhos, jovens, mulheres e meninos, têm-se convertidos em expertos. Como em outros lugares até vendem suas fotografias.
Voltando a Nairóbi se atravessa uma extensa região na que, surpreendentemente, se observam extensas plantações industriais e mecanizadas de trigo e, em menor proporção, de milho. As enormes máquinas de colheita pululam nas pequenas cidades tipicamente agrícolas, versão africana das que atendem aos produtores de soja no cerrado brasileiro… Quem é dono de isso? Acaso essa terra já não é dos Masai? Os Masai e seus mantos são ainda freqüentes e suas vacas, ovelhas, cabras e burros também, em procura aparentemente desesperada por água. Pois, essas “fazendas” sem, são dos Masai, dizem que organizados em cooperativas, que permitiram que as suas terras fossem usadas para agricultura, o que viola todos os princípios culturais desse povo. Os rebeldes ou os mais pobres devem fazer andar seus rebanhos exprimidos entre a estrada e os lotes de trigo, levantando uma poeira indescritível, para chegar aos poucos pontos de água barrenta que subsistem. O dinheiro recebido pela eliminação das árvores que a sua vez eram a base do ecossistema da região é, na teoria, usado pelas comunidades. Será mesmo? Segundo o que dizem, apenas alguns poucos chefes aproveitam disso para beneficio próprio, mais ou menos como muitos caciques amazônicos fazem com a madeira, o ouro, as pedras preciosas e, igualmente, com a terra, cedida a cultivadores de soja e a pecuaristas. A maioria só tem prejuízos.
A última etapa em território Masai da viagem de retorno a Nairóbi é a que fica mais perto da subida ao planalto, onde se abandona o Vale do Rift. Nessa região o que mais surpreende é a aridez extrema dominante. Não tem mais arvores e a poeira se eleva por todo canto ao céu em espirais a modo de mini-tornados. Na amplitude da savana podem se observar simultaneamente várias dúzias desses tornados, demonstrando uma erosão eólica fora de controle. Essa área foi utilizada até pouco para fazer agricultura intensiva de trigo, ou ainda é utilizada, havendo-se eliminado a rala cobertura florestal e, agora, nela subsistem uns poucos Masai com a mesma combinação de bovinos, ovinos e caprinos, embora, evidentemente, nesta zona predominam os últimos. Estes são os mais pobres e muitos deles já nem usam o vermelho característico, mas ainda se reconhecem pelo bastão e pelo jeito de andar. Culturalmente, eles já eram, tanto assim como seu entorno. Esses são operários e serventes nas cidades e apenas os velhos, as mulheres ou os meninos cuidam do que resta de seu patrimônio.
Os Masai não resistiram às pressões do resto do mundo. Apesar de ter seu território reconhecido e de dispor de autonomia desde muito tempo atrás, eles estão abandonando sua pratica ancestral de criação de gado bovino e as suas tradições para passar a fazer qualquer coisa, até agricultura intensiva. Mas, na verdade, o problema tem sua origem na sua estranha cultura, na verdade trazida de outras latitudes, que nunca foi ecologicamente sensata. Criar gado exótico nas savanas africanas para se alimentar apenas da sua carne, sangue e leite, aparte de ser muito esquisito onde a fauna selvagem é tão abundante, é uma atitude carente de senso comum. Pior ainda é acreditar que a riqueza se mede em numero de animais e numero de filhos. O dinheiro que eles recebem é dedicado a engrossar esses “patrimônios” que só aceleram a destruição do ambiente. Ecologistas rudimentares podem acreditar que isso é melhor para a fauna, pois eles só matam leões, mas, esquecem que o gado exótico é a pior noticia imaginável para a fauna, degradando ou destruindo o ecossistema que a sustenta. Os Masai, que ademais eram guerreiros bravos e respeitados que afastaram outros povos, sobreviveram do mesmo modo que quaisquer outros grupos tribais, ou seja, sem problemas mentas sua população era relativamente pequena e seu impacto sobre o entorno era menor. Mas, apenas sua população aumentou devido a ajuda do governo, especialmente a medicina moderna e as religiões crista e muçulmana, as coisas começaram a mudar para mal e andando o tempo, com mais influencia externa, para pior.
Agora os Masai alem de ter cedido suas melhores terras para uma agricultura intensiva e sem futuro, cada vez a mais criam cabras, animais que são o símbolo da destruição final de qualquer ecossistema semi-árido. O mais recente negócio por eles aceito é a fabricação e venda de carvão vegetal, o que fazem até não deixar mais nenhuma arvore na savana, que já virou deserto.
Então, como já fizeram com sucesso, com a ajuda solicita do socioambientalismo mundial vão reclamar mais parques nacionais e mais reservas de fauna para continuar fazendo nelas o mesmo que estão fazendo fora, ou seja, destruir os recursos naturais que os mantêm. Os ilusionistas sociais querem ver nos Masai, como em tantos outros grupos tribais, virtudes que eles não têm e que contrariam todas as evidências acumuladas sobre a história dos povos, sem mencionar outras tantas irrefutáveis provas científicas. Por exemplo, quando os colonos europeus introduziram gado nas savanas africanas, como o faziam os Masai, isso foi considerado um absurdo (e era mesmo!). Mas, quando os Masai fazem isso, eles merecem aplauso… Onde está a lógica de isso? O único fato que freia um pouco a destruição das áreas naturais protegidas no território dos Masai é a evidencia de que eles, ou alguns deles, tiram muito proveito dos milhões de turistas que as visitam a cada ano. Mas, os lobistas sociais internacionais continuam perseguindo a entrega irrestrita de parques nacionais quenianos aos Masai, alegando direitos que violam os dos demais quenianos e os de todos os cidadãos do mundo, que estão dispostos a pagar para ter o privilegia de conhecer o que resta da outrora esplendida natureza africana.
Os fatos descritos simplesmente demonstram, uma vez a mais, que os estados têm o dever de fazer seu trabalho para o bem da nação e não devem ceder as pressões de grupos ou de ideologias que apenas levam a destruição irreversível do patrimônio natural e cultural das nações. Os Masai têm obviamente o direito ou, mais bem, eles têm o dever de se converter em cidadãos quenianos como qualquer outro. Podem certamente conservar suas tradições na família, durante as festividades e nos museus, como o fazem os demais povos do mundo. Mas, não podem pretender viver no século XXI ao mesmo tempo em que nos séculos XVIII ou XIX.
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