Reportagens

Decreto de risco

Sem-terra estão queimando e desmatando naco importante da Mata Atlântica que fica em fazenda recém-desapropriada pelo governo para fazer reforma agrária.

Paulo Antunes ·
7 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás

O decreto de desapropriação assinado pelo presidente Lula no dia 30 de dezembro não significa um ponto final no longo “inferno astral” da Fazenda da Barra, em Ribeirão Preto (SP), onde sobrevive uma das mais bem preservadas áreas de Mata Atlântica no interior de São Paulo. Situada em um dos principais pólos do agronegócio do país, na chamada “Califórnia Brasileira”, a fazenda sofre há muito tempo com o uso intensivo de agrotóxicos e com a disputa por suas terras. Há dez anos começou o processo de desapropriação para reforma agrária, que culminou com a invasão de 400 famílias nos últimos dois anos.

A vitória dos sem-terra põe fim aos planos dos proprietários de implantar um “mega empreendimento imobiliário” na área, mas o discurso “agro-ecológico” dos movimentos sociais também não convence. Há evidências de que o apetite das famílias invasoras pelos 1.790 hectares da fazenda não tem poupado a floresta. A propriedade reserva 28,4% de sua área para a mata, mais do que os 20% obrigatórios por lei. Desmatamentos e queimadas recentes indicam que os acampados já estão avançando sobre a mata.

A importância ambiental da fazenda da Barra não diz respeito apenas às riquezas que se encontram sobre o solo. A propriedade está inserida em uma área de recarga — ou seja, rica em nascentes — do Aqüífero Guarani, um gigantesco manancial de água subterrânea, importante não só para as regiões Sudeste e Sul do Brasil como também para os países vizinhos: Argentina, Paraguai e Uruguai.

O que preocupa é o que pode suceder com os importantes maciços florestais ainda existentes na propriedade e os danos que possam ser causados ao Aqüífero. O risco de depauperação é grande, mesmo com a alegação dos defensores da desapropriação, que pretendem instalar ali um projeto “agro-ecológico”, sem uso de agrotóxicos e, portanto, sem impactos para o Guarani.

Durante um vôo sobre a área em dezembro, o agrônomo Francisco Graziano, que foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98), observou o corte de árvores por parte dos invasores do MST. As autoridades juram que não houve qualquer desmatamento. A zootecnista Eliana Velocci, chefe do escritório regional do Ibama, ordenou à sua equipe de fiscalização uma vistoria na área no último dia 13 de dezembro. João Batista Vedolin, um dos técnicos que fez a vistoria, disse ter conversado com lideranças dos sem-terra que estão acampados na propriedade e também com um funcionário da administração da fazenda, além de percorrer toda a propriedade.

Garante não ter encontrado vestígios de mato derrubado. Ele diz que os invasores estão acampados na parte interior da fazenda, junto a uma das cercas da propriedade, ao lado da Rodovia Anhanguera. Segundo ele o que está havendo é o corte da cana lá plantada para a construção dos barracos e o plantio de feijão, milho, mandioca e abóbora para o sustento dos invasores. Nem a madeira que está sendo utilizada para a construção dos barracos das quase 400 famílias que estão no local é proveniente dos maciços florestais, assegurou o fiscal.

O promotor público Marcelo Pedroso Goulart também não acredita que a área está sendo desmatada. Até porque, os assentados ter consciência de que toda a base para a desapropriação desta e de outras fazendas na região está sustentada em um dos requisitos constitucionais para a desapropriação para fins de Reforma Agrária: o ambiental. Melhor explicando: mesmo que produtiva, uma propriedade que não respeita a vocação natural da terra, degradando os seus potenciais produtivos, que não mantém as características próprias do meio natural, que agride a qualidade dos recursos ambientais, não contribuindo para a manutenção do equilíbrio ecológico, está sujeita a sofrer desapropriação, conforme preceitua também o artigo 186 do texto constitucional.

As motivações do promotor foram questionadas no artigo Barril de Pólvora, publicado por Francisco Graziano no início de dezembro, nos jornais O Estado de São Paulo e O Globo. O articulista qualificou a condução do processo de “festival de horrores”, que “não tem paralelo na questão agrária nacional” e afirmou que o promotor Marcelo Goulart comandava o processo de invasão das terras. O fotógrafo Fernando Calzanni também esteve no local em dezembro, registrando uma incursão de agentes da Polícia Militar Florestal, e comprovou que havia áreas desmatadas. “Dizer que não houve desmatamento nem queimada é mentira. Basta ver as fotos, que são recentes”, diz Calzzani.

O soldado Carlos Alberto dos Santos, que esteve na fiscalização, estima entre 100 e 150 metros quadrados o total de áreas desmatadas recentemente, mas não pode assegurar quem foi responsável pela derrubada. “Não flagramos ninguém desmatando, embora sejam picadas novas. Os invasores alegam que não foram eles”, afirma o policial.

O laudo do Incra que orientou o processo de desapropriação mostra também os impactos produzidos pela cultura de cana-de-açúcar, que exige o uso intensivo de agrotóxicos, nos mananciais subterrâneos. Em 2002, um estudo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) constatou que o Aqüífero Guarani sofre contaminação por agrotóxicos nas áreas em que está perto da superfície. A pesquisa encontrou níveis de agrotóxicos próximos aos limites considerados perigosos para a saúde humana, num dos trechos paulistas do Aqüífero.

O trabalho da equipe da Embrapa começou em 1995, avaliando justamente a área de recarga, em Ribeirão Preto. A região para os pesquisadores combina dois fatores interessantes: é dominada pelas plantações de cana-de-açúcar e o abastecimento público de água é proveniente quase que exclusivamente do subsolo. A contaminação então encontrada era formada pelos herbicidas diuron e tebutiuron, usados na lavoura de cana. Marcelo Martirani, do DPRN, diz que é fundamental a preservação das formações florestais nativas, que permitem a infiltração de água limpa proveniente das chuvas, sem contaminação por agrotóxicos, efluentes industriais ou esgotos urbanos.

Sobre a vegetação, Martirani explica que ela se caracteriza por fragmentos florestais da Mata Atlântica e Cerradão. Parte dela, 58,9 hectares, é de floresta estacional semidecidual (na qual parte das árvores perde todas as folhas na época de estiagem) em estágio avançado de regeneração. Há outros 115,5 hectares com a mesma vegetação, mas em estágio médio de regeneração e que se encontra em zona de transição entre a floresta e o Cerradão. Segundo o técnico do DPRN, existe ainda um fragmento de mata, entre os estágios inicial e médio de regeneração de floresta decidual, com área de 10,82 hectares. Por fim, tem ainda os ambientes de várzea, junto ao rio Pardo, que também são de grande importância para a fauna e as aves aquáticas. Ao todo, as oito áreas de Mata Atlântica somam 308,8 hectares e as matas de várzea 130 hectares, perfazendo 28,4% da área da fazenda.

Sobre a fauna, existe a ocorrência de capivaras, tamanduá-mirim, cachorro do mato, gato do mato, lobo-guará, seriema, lagarto teiú, anu preto, pomba do ar, pica-pau de cabeça amarela, pica-pau do campo, joão de barro, garça branca, entre outras espécies típicas destes ambientes de Mata Atlântica, cerradão, várzeas e matas ciliares.

Marcelo Martirani explica que as matas da Fazenda da Barra não são as únicas e últimas jóias da coroa, em Ribeirão Preto. No todo, estima que ainda restem cerca de 5% das matas nativas da região. Além da Fazenda da Barra, a nordeste do município, existe a Estação Ecológica Mata de Santa Tereza, a sudoeste, com outros 380 hectares de Mata Atlântica preservada. Mais distantes de Ribeirão Preto, há ocorrências de Mata Atlântica em municípios como Luiz Antônio, Cajuru e Santa Rosa do Viterbo.

A fragmentação dos ecossistemas remanescentes é uma realidade, mas a preservação dessas matas é uma história de resistência a todo o passado de café, cana-de-açúcar, queimadas, invasões, reintegrações de posse, novas invasões. As áreas vizinhas à cidade de Ribeirão Preto sofrem a pressão não só das disputas fundiárias, mas da própria cidade que cresceu e se aproxima de suas bordas. Com 504 mil habitantes, o município é a sede de uma das regiões mais ricas do país, um pólo de atividades industriais, comerciais e de prestação de serviços, cuja área de influência extrapola para as regiões de Franca, Barretos, São Carlos, São João da Boa Vista e até para outros estados.

A produção de cana-de-açúcar é a maior do país, de 80 milhões de toneladas por ano, ou cerca de 24% do total nacional. A região também é a maior produtora de açúcar e álcool, com 21 usinas que empregam em torno de 8 mil trabalhadores. Além das usinas, destacam-se os setores de suco de laranja, empresas de beneficiamento de café, soja, amendoim, indústrias alimentícias, de ração, fertilizantes, máquinas e equipamentos agrícolas.

* Paulo Antunes é jornalista de São Paulo.

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